Por Carla Rosane Ouriques Couto e Vera Anita Bifulco:
“Não é um filme sobre câncer, e sim sobre o amor, sobre encarar fardos a dois”.
Maria Sodahl
Nos muitos projetos que fazemos em vida, em nenhum momento incluímos eventos ruins, sofridos, inacabados, ameaçadores. Isso nos desprepara para as intempéries que podem acontecer.
Nossa sociedade não nos prepara para a morte e diante da sua presença próxima nos toma nus, desprovidos, despreparados. Assim deu-se para Anja e Tomas, assim se dá para todos nós.
Anja e Tomas são pais de uma grande família reconstituída. Tomas é vinte anos mais velho que Anja, e já tinha 3 filhos do primeiro casamento, quando se encontraram e se apaixonaram. Ele então se separa e passam a viver juntos, tendo então mais 3 filhos, o mais novo com 10 anos. Ambos trabalham com arte, ele como diretor de teatro, ela como coreógrafa.
A família vive uma fase de ciclo de vida complexa. Anja está em acompanhamento de um câncer de pulmão em remissão, e o casal se reaproximou com a doença, após uma fase de distância. Anja tem excelente relação com os filhos mais velhos de Tomas, e estes estão sempre juntos aos filhos menores. Está claro que Anja é a base de todo o grupo.
A narrativa inicia perto do Natal, com a descoberta de uma metástase cerebral em Anja. Muito sintomática, ela começa a se indagar como contará aos filhos sobre o prognóstico, nada positivo no momento. A preocupação consigo é bem menor, do que esta: como contar às crianças. E é esta a demanda que faz aos médicos. A procura de um plano de tratamento, Anja e Tomas são atendidos por vários médicos, clínicos, oncologistas, cirurgiões e neurologistas. Todos convocados num momento difícil, pelas festas de fim de ano.
Do ponto de vista dos princípios Slow Medicine de tempo adequado, escuta, compaixão, compartilhamento de decisões, é bem interessante ver e rever as várias entrevistas e devolutivas que o roteiro traz magistralmente. Uma das médicas inicia a conversa colocando-se de forma empática, ao dizer que sente muito ter que dar a notícia sobre os exames de imagem. É a mesma médica que no segundo encontro inicia a consulta com um abraço e sorriso feliz, ao dizer que a tomografia mostrou um tumor restrito localmente no cérebro, e sem disseminação pelo pulmão. Nestes dois momentos há escuta atenciosa do casal, muitas perguntas e respostas francas. A médica diz várias vezes que não tem a resposta, mas indica quem poderia ter. É o comunicado de más notícias mais adequado da história. Nem sempre a linha de raciocínio do casal é a mesma. E a médica precisa harmonizar necessidades e demandas dos dois. Tomas é mais pragmático e silencioso. Anja muito tensa, angustiada e ansiosa. Sempre pensando na família acima de seus sentimentos. Em alguns momentos parece sentir falta de algo no marido, em outros acha que ele está se intrometendo em suas decisões. São reflexos da dinâmica familiar que se tornam importantes para o cuidador, e que devem ser de seu conhecimento. Preferencialmente deveríamos dar más notícias a quem já conhecemos como paciente ao longo do tempo. Como o filme mostra, nem sempre isso é possível. E como todos sabemos, quase nenhuma família se apresenta como predominantemente funcional. É mais comum a disfunção.
Travando contato com médicos diferentes e desconhecidos, temos o sofrimento do casal, ao ser tratado com frieza, excessiva racionalidade e tendenciosidade para escolhas mais afeitas ao médico do que ao paciente, quanto a práticas alternativas ou excessivamente agressivas. Anja reage com raiva ao término desses encontros, que se mostram desencontros na verdade. Temos a médica “sem tempo” que sequer suspende seu percurso de corredor para ouvir o casal. Apenas diz que serão atendidos em algum momento. Temos o médico “vip” que se importa mais com seu marketing pessoal do que com o que o paciente precisa realmente.
Finalmente o casal se encontra com uma enfermeira paliativa que consegue orientar os dois a como conduzir a conversa com os 6 filhos. O que fazem com cuidado, em reunião familiar, fornecendo aos filhos o nível de informação suficiente para seu entendimento. As reações são diversas, como de se esperar. Há os que demonstram coragem, e os que se fragilizam. Todas essas emoções são alvo de trabalho de uma boa equipe de Cuidados Paliativos. Anja sente culpa por ter fumado por muitos anos. Sente raiva de ser mais jovem que o marido e partir antes. Sente muitas coisas, as vezes pouco claras.
Há um idoso no grupo familiar. O pai de Anja. Para ele não houve segredo, percebe o que se passa com a filha e a apoia com delicadeza e presença suave. No entanto ele é mais uma preocupação de Anja, ao pensar na morte. Quase como se não tivesse licença para partir. Quem vai cuidar do pai, de Tomas, de cinco jovens e de uma criança? Uma questão típica da mulher que por amor controla toda uma família. E quando o controle escapa…há desespero.
No entanto, tudo isso é um uma perspectiva extra de reflexão que a trama oferece. O principal sentido do filme é na verdade, o amor que desperta, na adversidade, entre o casal. O amor, que a diretora Maria Sodahl chama de “analgésico”. A princípio com pressa e urgência com os primeiros movimentos de aproximação de Tomas. Mas à medida que se quebram as barreiras de ressentimentos e mágoas, Anja tem a chance de ressignificar a longa relação, que como todos os casamentos que duram, teve altos e baixos.
No processo de reencontrar o marido, Anja se reencontra como pessoa, para além da matriarca responsável por muitas vidas. E o amor expresso por Tomas, ainda que de forma um pouco rude às vezes, é o fio que permite essa viagem. Esse é o poder da narrativa: mergulhar fundo nas ambiguidades, paradoxos, dores e alegrias do tempo próximo a finitude.
Não se trata realmente de mais um filme sobre câncer, mas um filme sobre o AMOR, sobre como é encarar a dois a difícil travessia dos últimos tempos juntos e o desdobramento de como comunicar esse diagnóstico para os filhos, o pai, os amigos. Os amigos, e em especial a melhor amiga de Anja, desempenham importante papel de apoio a família. Principalmente nas horas de festejar o que foi vivido.
Algumas questões são desveladas no contexto dessa família, que são universais. Por que deixamos para um tempo distante questões prementes da vida, por que não a resolvemos em tempo hábil? O homem de maneira geral “empurra” essas questões para um tempo indeterminado e com isso acumula um cem número de resoluções que talvez não dê conta de resolver quando surpreendido por um diagnóstico de uma doença que limite sua vida. Esse contexto tem a ver com o pedido de casamento feito por Tomas a Anja. Em outros tempos era ela quem queria se casar. Mas por diversos motivos não chegaram a concretizar o desejo flutuante de ambos. Diante do tempo escasso, emoções tomam proporções gigantescas, exigindo cuidado de todo o entorno, que inclui as equipes de saúde.
Somos imortais em nosso inconsciente, mas assim como precisamos de um tempo para viver, precisamos de um tempo para morrer, para se acostumar com a ideia da morte. Se não fazemos isso acontecer homeopaticamente em cada átimo de nossa existência, a aparição da morte nos pegará totalmente desarmados.
Anja tem diante de si um tempo curto, dias, com sorte meses, para dar vazão a desejos acalentados por anos. Organizar a vida, hierarquizar o que é mais importante, o que ainda dá tempo de fazer, o que deve ser deixado, tudo em meio aos efeitos colaterais provocados pelos medicamentos.
Tomas se mostra profundamente triste, mas firme e presente. Consegue resgatar as nuances de um amor que não acabou, apenas se transformou, foi colocado em segundo plano, mas resistiu. Amar alguém, dizia Gabriel Marcel, é dizer: você não morrerá nunca!
“HOPE” traz aos profissionais de saúde que desejam uma prática integral Slow, importantes lições: a tarefa de conduzir a última viagem de alguém e sua família, NUNCA será simples ou fácil. Cada paciente terá um universo a desvelar, uma imensidão de
dúvidas e angústias a expressar, um infinito de questões a serem mais que ouvidas, escutadas e acolhidas. Para tanto são necessárias as habilidades SLOW: tempo, compaixão, escolhas compartilhadas, racionalidade medicamentosa, prevenção de danos, uso adequado de tecnologias, abandono de crenças pessoais ou julgamentos e respeito profundo pelo desejo do paciente e sua família. A Slow Medicine pressupõe o cuidado que considera sempre o contexto familiar, de trabalho e da comunidade de cada paciente.
Segundo o inesquecível paliativista Derek Doyle, em seu livro “Bilhete de Passaporte” até mesmo a tristeza e a dor podem ser criativas, quase purificadoras, mas a relutância da nossa moderna sociedade diante do enfrentamento desse fato é enorme. “O desafio – parece a nós – é como capacitar o bem a partir da tristeza e da perda; é como reconhecer o bem, por mais estranho que ele pareça.”
A excelência do cuidado amparado pela filosofia Slow Medicine pode ser potente para conceder ao paciente paliativo um outro tempo, senão o tempo cronológico suficiente em extensão para a resolução do que for preciso, o “tempo espaço”, o “tempo acolhida”, o “tempo partilha”. Afinal, quem já amou de verdade sabe que o tempo junto ao ser amado, não é medido pelos ponteiros do relógio. Um segundo pode conter doses absurdas de esperança. Esperança que fica, mesmo após a partida.
“Esta vida é uma estranha hospedaria/De onde se parte quase sempre às tontas/Pois nunca as nossas malas estão prontas/E a nossa conta nunca está em dia.”
Mario Quintana
Ficha Técnica: Hope (nome original)
Noruega, 2019. Direção de Maria Sodahl.
Elenco: Andrea Braein Hovig e Stellan Skarsgård
Filme Detentor de 7 prêmios e 15 indicações, incluindo o Oscar de filme estrangeiro.
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VERA ANITA BIFULCO é psicóloga clínica, psicooncologista, integrante da Equipe Multiprofissional de Cuidados Paliativos do Instituto do Câncer Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho. Mestre em Ciências pelo CEDESS/ UNIFESP-EPM. Diretora da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia, gestão 2008/2010. Organizadora do livro “Câncer: uma visão multiprofissional”, editora Manole, Volumes I e II. Co-autora do livro Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde, editora Manole 2016. Co-organizadora do livro “Cuidados Paliativos – um olhar sobre a prática e as necessidades atuais”, editora Manole 2017. Coordenadora do grupo de Apoio a Cuidadores de Alzheimer, Hospital 9 de Julho.Tive a honra de ser integrante e trabalhar junto ao professor Marco Tullio durante os anos onde ele foi chefe da Disciplina e Ambulatório de Cuidados Paliativos na UNIFESP, anos decisivos de uma verdadeira universidade de Cuidados Paliativos, onde a prática, a teoria e o estudo se faziam acontecer magistralmente e magicamente em nossos atendimentos e aulas. O Professor Marco Tullio nos ensinou “que a vida é muito maior daquilo que os olhos veem”, assim os Cuidados Paliativos são ao mesmo tempo Ciência, Arte, Filosofia e Espiritualidade. Minha eterna gratidão ao mestre Marco Tullio, my daddy!
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CARLA ROSANE OURIQUES COUTO é pediatra, Médica de Família e Comunidade, especialista em Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Aprendiz recente da arte de envelhecer e de considerar a finitude todos os dias: mais presença e menos virtual. Mais palavras e menos silêncios. Mais decisões, menos adiamentos. Mais Cinema como Terapia.
Perfil no INSTAGRAM: Carla Rosane Ouriques Couto – Cinema e Terapia