Hyposkillia: um nome estranho para uma situação mais frequente do que imaginamos

julho 9, 2018
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Por Ana Lucia Coradazzi:

Há alguns dias chegou às minhas mãos o artigo do Dr. Herbert L. Fred, intitulado Hyposkillia , publicado pelo Texas Heart Institute Journal. Pensei comigo: “Que síndrome estranha… nunca ouvi falar disso!” E comecei a ler o texto, por pura curiosidade. Logo no primeiro parágrafo percebi que já ouvi falar da tal hyposkillia, e não foram poucas vezes. Trata-se de uma séria “deficiência em habilidades clínicas”, que o Dr. Fred definiu como a incapacidade do médico em oferecer uma boa assistência aos seus pacientes. São profissionais que, embora tenham cumprido normalmente a extensa carga horária da graduação em Medicina e quase sempre também a dos anos de residência médica, não são capazes de extrair adequadamente a história clínica dos seus pacientes, executar um bom exame físico, associar seus achados a diagnósticos pertinentes e propor uma estratégia terapêutica coerente. Sua habilidade em se comunicar com pacientes e familiares, em geral, é mínima, e sua prática clínica costuma se restringir a solicitar exames (dezenas deles) e oferecer procedimentos e medicações para corrigir os resultados encontrados. É precisamente exercendo sua profissão dessa forma que eles perdem a chance valiosa de aprender algo sobre a história natural das doenças e, mais importante ainda, sobre as pessoas que estão sob seus cuidados.

Ainda nos meus anos de faculdade, ouvi muitas vezes de meus professores a máxima “A clínica é soberana”. Eles insistiam (muito) para que desenhássemos todo um raciocínio clínico antes de solicitar um mísero hemograma. E perguntavam: “Você pediu esse hemograma esperando responder que pergunta?”. O acesso a quaisquer exames diagnósticos, está certo, era mais difícil. Tomografias computadorizadas eram solicitadas somente com autorização do docente, pois eram caras e demoradas. Ainda não dispúnhamos de ressonância magnética, muito menos de PET-scan, e a variedade de exames laboratoriais disponíveis era incrivelmente menor. A clínica era soberana não apenas porque era, mas porque precisava ser. Quando a tecnologia começou a ficar acessível através de um simples pedido, passamos a viver a ilusão de que a clínica – aquela, que dava trabalho, lembra? – talvez não fosse assim tão necessária. Para que examinar o abdome de alguém, se a tomografia nos mostra cada órgão detalhadamente em poucos minutos? Para que perder tempo pensando em cada exame laboratorial a ser solicitado, se temos pedidos-padrão para cada queixa clínica? Foi assim, ano após ano, que fomos perdendo nossa capacidade de extrair dos pacientes as informações que nos fariam compreender o que está acontecendo com eles, e raciocinar de forma individual sobre que estratégia poderá ajudá-los. Deixamos de conversar com eles, de tocá-los, de estabelecer com eles a parceria que nos torna únicos em suas vidas. Nós migramos da medicina high-touchpara a medicina high-tech, sem perceber o quanto perdemos pelo caminho.

Durante meu último ano na faculdade, a tal hyposkillia ficou óbvia bem diante dos meus olhos. Orientada pelo Professor Doutor Mário Rubens Guimarães Montenegro, um desses mestres em Medicina que não vemos mais por aí, desenvolvi um trabalho no qual comparávamos os achados clínicos (história e exame físico) descritos nos prontuários dos pacientes com os achados de suas autopsias. As discrepâncias eram impressionantes em vários casos, mas lembro bem da nossa surpresa quando decidimos comparar a acurácia no diagnóstico de quadros neurológicos agudos, em geral acidentes vasculares ou tumores cerebrais. Nós avaliamos a capacidade dos médicos em levantar corretamente as hipóteses diagnósticas feitas à admissão dos pacientes, verificando à autópsia se estavam corretas. Fizemos isso com pacientes de dois períodos diferentes: 1975 a 1982, e 1992 a 1996. No segundo período, quando já dispúnhamos de tomografia computadorizada, os diagnósticos clínicos dos eventos cerebrais eram bem menos acurados que no primeiro! Em geral, víamos como hipótese diagnóstica algo como “hemiplegia direita a esclarecer” ou “convulsões”.

Sim, a tecnologia nos deixou mais preguiçosos. Assim como a invenção do controle remoto. No entanto, não seria nem minimamente razoável imaginar que ter a tecnologia à disposição foi o que nos tornou médicos piores. O que nos fez menos capazes fomos nós mesmos. Foi nossa inabilidade em associar nosso raciocínio clínico, com toda sua complexidade e beleza, ao poder da tecnologia moderna. Fomos nós que substituímos o primeiro pela segunda, em vez de fazê-los caminhar de mãos dadas. A boa notícia é que cabe também a nós dar alguns passos numa nova direção. Todos nós, mesmo os que não foram treinados à luz da bendita “A clínica é soberana”, temos a inteligência e a capacidade necessárias para praticar a medicina em sua forma mais soberba: aquela que é feita pelo paciente e para o paciente. Bem ao estilo Slow Medicine.

Aqui você tem acesso ao artigo traduzido em português.

___________________

Ana Lúcia Coradazzi: Sou médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Concluí a residência médica em Hematologia e Hemoterapia na UNESP e, posteriormente, a residência em Cancerologia Clínica no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú/SP. Foram o imenso desconforto e a sensação de impotência ao lidar com pacientes em sua fase final de vida que me levaram a cursar uma pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da minha vida. Criei a Unidade de Controle da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho, onde permaneci como coordenadora até outubro de 2015. Atualmente sou responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu, e sou médica do Centro Avançado em Terapias de Suporte e Medicina Integrativa (CATSMI) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Sou autora do livro No Final do Corredor e do blog homônimo, nos quais escrevo sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos.
Moro em Jaú, no interior de São Paulo, com meu marido Fábio e as duas luzes da minha vida, Mariana e Lorena, além da minha coelha de estimação, Julieika. Junto deles, busco o equilíbrio de que tantos dos meus pacientes falam, encontrando na corrida e na prática do yoga a paz que preciso para manter a mente saudável.

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Vera Bifulco
Vera Bifulco
6 anos atrás

Tenho motivos de sobra para QUERER comentar esse artigo. Primeiro por se ter sido escrito por uma grande amiga médica, sensível, um ser humano da mais alta qualidade que sempre vou querer ter por perto; desejo no futuro morrer bem e ela é bem mais jovem que eu, assim advogo em causa própria…. Segundo por que esse artigo me remete a questões urgentes e prementes que estão acontecendo há anos na nossa cultura voltada à área da saúde. Desde que ingressei nos Cuidados Paliativos nos idos anos de 2002, vejo que os princípios de deveriam reger a todos que militam na área da saúde estão esmorecendo e dando lugar a uma tecnologia massiva. O nosso sistema de CUIDADO de saúde está falhando cada vez mais porque não dirigimos mais o foco à arte de curar, que se inicia com OUVIR E PRESTAR atenção ao paciente. Ouvir não é um ato passivo e dele podemos tirar diagnósticos ocultos para além do discurso do paciente. Esse “namoro”, dos jovens médicos principalmente, com a tecnologia irracional a que foram lançados e se deixaram encantar é em parte uma forma de aumentar ao máximo sua receita ou a do serviço em que se filiam. Citando Lown em seu genial e obrigatório livro de cabeceira, A ARTE PERDIDA DE CURAR: “Como se considera um desperdício gastar tempo com os pacientes, o diagnóstico é feito por exclusão, o que abre as comportas a um sem-número de testes e técnicas. O sistema de cuidados médicos não poderá ser curado enquanto o paciente não tornar a ser novamente o elemento central da agenda médica”. O movimento Slow Medicine, através de seus princípios, vem tentando e conseguindo cobrir essa lacuna e provocar uma mudança de paradigmas. Parabéns Ana, como sempre, por mais esse artigo comentado.

Telma de imperio
Telma de imperio
6 anos atrás

Amei, amei! Vejo Hyposkillia acontecer a todo minuto na minha volta, infelizmente. Mas o que mais me dói é esta pouca vontade de querer aprender o melhor, crescer diante da história e do exame físico.

Nivaldo Ve6 Borgato
Nivaldo Ve6 Borgato
5 anos atrás

A Medicina de hoje, que deveria ser MUITO mais avançada do que outrora, se restringe a um aprendizado humilde, sem um critério palpável, de conteúdo. A começar pelos “professores”, que são escolhidos aleatoriamente, e o uso do famoso QI, QUEM INDICA. As Faculdades de Medicina nos dias de hoje, ESTÃO proliferando como cursinhos preparatórios, sem a mínima condição de serem FACULDADES DE MEDICINA e em cidades que, além de “professores” sem a formação necessária, tem um hospital que funciona MUITO precariamente. Hoje, MESMO os colegas que são bons profissionais, caíram nos encantos da lei do menor esforço, solicitando exames de altíssimo custo, em profusão. Na grande maioria das vezes, sem ter nada em relação a patologia em tela, levando os famigerados planos de saúde, quase a falência, ALÉM de serem obrigados a pagarem uns míseros reais por uma consulta, impondo ao profissional um volume grande de consultas, para compensar a atender planos de SAÚDE. Prostituiu o MÉDICO, principalmente os que estão em áreas de baixo poder aquisitivo. Tudo ISSO, com forte tendência a piorar.

Carlos Alberto Alves tavares
Carlos Alberto Alves tavares
5 anos atrás

Concordo com tudo comentado, mas hoje o que mais proliferam são as faculdades de Direito, com cursos baratos (somente salas de aulas e professores,sem exigência de hospitais e laboratórios, muito mais fácil, criam um novo curso em cada esquina). Tenho 66 anos , sou professor universitário há 44 anos, trabalho e moro em Pelotas. Aqui tem 3 universidades, 1 pública e 2 privadas. As 3 tem curso de Direito, com turmas noturnas e diurnas. São 6 turmas formando-se a cada semestre. Hoje o SIMERS contabiliza no Rio Grande do Sul uma ação judicial para cada 5 médicos atuando. É uma proliferação de ações com assistência judiciária gratuita. Não acredito em incompetência médica, mas sim uma judicialização desmedida. Para se protegerem os médicos novos pedem exames e mais exames. É a primeira alegação que o advogado da parte aciona.São ignorantes em saúde e fazem aberrações para vantagens financeiras para seus clientes. É um desencanto na medicina.

Lizarb Guimarães Gomes
Lizarb Guimarães Gomes
5 anos atrás

Se nós médicos tentássemos, com um esforço herculeo, voltar a acreditar que a Clínica é Soberana, poderíamos reverter a curto prazo, esta situação, a nosso favor!
Sou formada há 40 anos pela faculdade de medicina de Vassouras, onde tivemos excelentes professores, e cumpríamos carga horária elevadíssima, de segunda a sábado.
Lá aprendemos que anamnese bem feita é fundamental para o diagnóstico, se seguida de detalhado exame físico! Então, com pouquíssimos exames , ou não, era selado o diagnóstico, preconizado o tratamento e reavaliado de perto, mesmo que não tivesse vaga na agenda, criávamos a vaga. Sem muita preocupação com a remuneração.
Se tivéssemos resistido à pressão da nova tecnologia, usando-a sempre que necessário, e somente quando houvessem dúvidas, acreditando no nosso potencial enquanto médicos…..acredito que hoje poderíamos exigir melhor remuneração para clínicos, pediatras,… por parte de convênios, que correm o risco de falir, tamanhas as exigências até na esfera judicial…..
Sim, poderíamos valorizar o exame médico, a consulta….e evitar tantos exames que visam interesses diversos.
Parabéns aos colegas que não se rendem ao excesso de pressão! Podemos fortalecer os jovens médicos, que, afinal de contas, tratam de nós, os mais experientes…
Dediquei minha vida médica à Fisiatria (Reabilitação) e à Medicina Psicossomática, hoje aposentada, mas com muita esperança nos jovens médicos!

Luiz Antônio Silva
Luiz Antônio Silva
5 anos atrás

Fantástico tema e excelentes comentários!! São várias arestas que embasam esta situação, como as citadas faculdades de direito e a mercantilização da saúde, onde juízes que determinam qual o paciente deve ocupar a vaga de UTI. Como se não bastasse os convênios de saúde, temos o convênio de defesa do profissional médico onde os julgadores não têm o mínimo de conhecimento sobre o assunto e isso faz a corrida galena a ancorar exames em excessos e desnecessários nos prontuários médicos que estão sendo substituídos por processos médicos! A lama política que vem devastando a paz dos profissionais médicos, vem amputando a boa relação medico-paciente onde os enfermos já vêm armados de direitos ao se preocupar com a própria vida!
Vários outros motivos aparecerão em outros comentários!
Sou Luiz Antônio, formado pela UFMT, em 1987, quando a ecografia engatinhava e a tomografia estava prometendo mudanças! O diagnóstico era na raça, na história e exame físico, nos antecedentes pessoais, familiares e patológicos complementados por exames complementares! Ainda preservamos estas regras e sabemos aproveitar os recursos laboratoriais e de imagem para ajudar quando se faz necessário, mas somos bombardeados por colegas mais jovens que enxergam a abordagem de traz pra frente, colegas que já começaram o curso com a tecnologia que é sempre bem-vinda, mas não tem o calor humano e a essência do coração !!!

Werner André Weissheimer
Werner André Weissheimer
5 anos atrás

Texto excelente!

Jane Dullius
Jane Dullius
5 anos atrás

Brilhante
Muito obrigada pelas reflexões e excelente apresentação sobre boa parte da situação atual.

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