Illich e a obsessão pela saúde perfeita

abril 24, 2023
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Por André Islabão

“Se você procurar pela perfeição, nunca estará contente.”

(Leon Tolstói)

Ao completar 25 anos do lançamento de seu famoso livro Nêmesis da medicina – A expropriação da saúde, o pensador austríaco Ivan Illich escreveu um pequeno ensaio para o periódico Le monde diplomatique[i], onde revisitava sua obra e analisava a maneira como suas previsões haviam se confirmado. Tanto o livro original quanto o ensaio de 1999 parecem ser leituras muito úteis para quem quiser conhecer um pouco das ideias deste que foi um dos pensadores mais interessantes do século XX e para compreender algumas deficiências do modelo médico que estimularam a criação de várias iniciativas importantes, entre elas a própria Slow Medicine.

Da escuta empática à ausculta prática

Para Illich, ao final do século XX “a obsessão pela saúde perfeita havia se tornado o fator patogênico predominante na sociedade”. Isso difere um pouco da frase de abertura do clássico Nêmesis, onde o autor afirmava que “a medicina institucionalizada era uma ameaça à saúde das pessoas”, embora ambas as frases remetam aos excessos da medicina e a mudanças culturais que levaram as pessoas a buscarem cada vez mais uma saúde que nunca deixaram de ter. Este novo modelo de saúde “otimizada” visa acabar com todo e qualquer tipo de sofrimento, prolongar ao máximo o frescor da juventude e estender a vida ao infinito. O problema para Illich era que esse tipo de saúde exigia que se evitassem também coisas como a velhice, a dor e a morte, o que para o autor representava uma forma de negação da própria condição humana.

É na cidade italiana de Bolonha do século XII, onde foi criada uma das primeiras faculdades de medicina do Ocidente, que o autor localiza o início da separação entre a medicina puramente técnica e as outras formas de conhecimento que até então estavam ligadas a ela, como a filosofia, a teologia e o direito. O autor faz aqui uma separação entre a ars medendi (a arte de curar) e a ars curandi (a arte de cuidar). Até essa época, os médicos adquiriam um conhecimento mais amplo e baseado em diversas “humanidades”, o que os permitia acolher e lidar mais facilmente com a doença, o sofrimento e a morte como parte da vida humana. A partir de então, o médico passaria a repelir e a tentar evitar a qualquer custo esses infortúnios, como se isso fosse possível ou até mesmo desejável. Ao passar por essa transformação, Illich afirma que o médico passa também a trocar a arte de ouvir atentamente e acolher as queixas da pessoa que o procura pela simples aplicação de uma atividade puramente técnica, trocando assim a escuta empática pela ausculta prática.

A contraprodutividade paradoxal

É fundamental percebermos que Illich jamais considerou a medicina como seu tema principal, mas sim como um exemplo para a demonstração de suas ideias. Ele escreveu igualmente sobre transportes, educação e diversas outras áreas, muitas vezes usando as mesmas ideias de base, como o seu interessante conceito de contraprodutividade paradoxal. Segundo essa ideia, o excesso pode ser contraprodutivo em diversas atividades humanas. Aqui fica claro que a grande crítica de Illich era contra a sociedade moderna industrializada, a qual prezava o excesso em detrimento do estritamente necessário. Para entendermos como funciona essa ideia da contraprodutividade, basta analisarmos a questão do transporte urbano. Nossa predileção pelas formas individuais de locomoção e nosso apreço pelo excesso e desperdício nos deixa diariamente engarrafados no trânsito. Em outras palavras, nosso excesso de transportes acaba sendo paradoxalmente contraprodutivo, pois reduz a nossa capacidade de locomoção em vez de aumentá-la. 

Na saúde, isso não é diferente. Nosso excesso de cuidados médicos na forma de intervenções muitas vezes desnecessárias, como medicamentos, exames, cirurgias e campanhas preventivas, pode acabar produzindo mais doenças na população não apenas pela possibilidades de causar danos diretos, mas também por criar uma cultura da busca ativa de saúde por pessoas já saudáveis. Nesse aspecto, Illich retoma neste ensaio sua ideia sobre os três níveis de iatrogenia a que as pessoas estão expostas: clínica (como os efeitos colaterais das intervenções médicas), social (como a medicalização de aspectos normais da vida que vão desde a tristeza até a velhice) e cultural (como a expropriação da capacidade de autocuidado das pessoas pela medicina).

O paradoxo da saúde atual

No período de 25 anos que separa o livro do ensaio, Illich pôde perceber algumas mudanças importantes no conceito de saúde e na própria medicina. Uma delas seria o fato de os médicos terem perdido o controle da instituição médica para a indústria. Para o autor, o fato de ainda existirem alguns poucos médicos entre as pessoas que detêm o poder dentro deste modelo “biocrático” serviria apenas para legitimar a pretensa vontade da indústria para melhorar a saúde das pessoas. Illich sabia muito bem que os interesses da indústria diferem muito daqueles dos profissionais médicos, e costumam ser bem menos altruístas.

O grande paradoxo visto por Illich em relação à saúde se deve à evidente discrepância entre a saúde medida pelas estatísticas de morbimortalidade e a sensação subjetiva de saúde conforme compreendida e desejada pela população. Illich alertava para a gritante diferença na percepção de saúde entre as populações de países ocidentais ricos – onde, apesar da extensa oferta de serviços médicos, as pessoas nunca se sentiram tão doentes – e as populações dos chamados países subdensenvolvidos – onde as pessoas se consideram mais saudáveis apesar da pouca oferta de serviços de saúde à população. 

A desumanização pelos números

No ensaio de 1999, Illich ainda retoma a ideia do que ele chamava de “indivíduo estatístico”, um ser sem nome nem narrativa que é obrigado a se adaptar às probabilidades aplicadas a uma determinada população. Illich via com certo horror o fato de que as decisões das pessoas de carne e osso (médicos e pacientes) eram feitas com base em estatísticas abstratas, o que segundo ele identificava essas escolhas pessoais em relação à saúde com bilhetes de loteria tirados ao acaso e desumanizava de maneira brutal o processo dos cuidados de saúde. 

O futuro pós-Illich

Passados mais 25 anos desde a publicação do ensaio do Le monde diplomatique vemos que as ideias de Illich seguem fazendo sentido mais do que nunca, tanto em relação à medicina como em relação à nossa sociedade em geral. O conceito de contraprodutividade paradoxal nunca esteve tão claro como em nossa atual “sociedade da informação”, na qual as pessoas nunca tiveram tanta dificuldade para se informar adequadamente. Para piorar, o ruído causado pelo excesso de (des)informação alcançou a área da saúde e das ciências médicas, o que em nada contribui para o progresso da ciência e a melhora da saúde da população. 

É compreensível que muitas pessoas da área da saúde tenham ficado muito descontentes com os posicionamentos de Illich em seu livro Nêmesis, pois suas ideias feriam em cheio as pretensões de um establishment médico que já naquela época pretendia crescer de forma desmedida. Como as ideias de Illich ainda permanecem restritas a um pequeno número de pessoas de visão até certo ponto heterodoxa, é fácil entender como a medicina passou a ocupar um espaço cada vez maior na vida das pessoas, confirmando em grande medida as previsões de Illich e legitimando cada uma de suas críticas. A leitura dessas ideias pode nos fazer repensar e melhorar muitos aspectos da medicina atual. Ainda mais para quem concorda com a necessidade de uma medicina sóbria, respeitosa e justa proposta pela Slow Medicine e já percebeu que fazer mais nem sempre é fazer melhor.


[i] https://www.monde-diplomatique.fr/1999/03/ILLICH/2855

André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio. 

O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos. 

Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta. 

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Ruy Hizatugu
Ruy Hizatugu
1 ano atrás

Trata-se de um dos textos mais mais esclarecedores que li em toda minha vida sobre Slow Medicine. Abordagem didática exemplar e impressionante. Na época do Tik Tok muita gente não terá tempo pra ler esta obra prima do Dr. André Islabão. Imperdível. Saúde e Paz 🙏

Marilena Nakano
Marilena Nakano
1 ano atrás

Belo artigo. Como educadora, illich também cruzou meu caminho com seu livro provocador *Sociedade sem escolas* . Em tempos de violência dentro da escola e fora dela, talvez precisemos de menos escolas e mais humanidade . 

Rejane Limaverde
Rejane Limaverde
8 meses atrás

Diria que o artigo confirma minha prática de vida ” menos é mais” adotada desde minha aposentadoria. Saí das cidades grandes onde residi por quase 50 anos de vida profissional no radio-jornalismo e me instalei em um bucólico bairro chamado Arroio , interior de Santa Catarina. Aqui não resido, vivo. Bem próximo ao mar e a exuberante natureza local. Ainda acordo com o cantar de galos. Fico, às vezes, semanas sem precisar sair às compras e ainda me gabo de , aos 72 anos, tomar apenas um remédio para corrigir atrofia da tireoide. Os doutores André e Ivan teem razão. Como indivíduo confirmo a base teórica desses pensadores: menos é mais.

André Islabão
André Islabão
4 meses atrás

Agradeço os comentários Ruy, Marilena e Rejane! É ótimo que essas ideias encontrem eco por aí!😉

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