Por Ladd Bauer:
“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.” (*)
Clarice Lispector
Recentemente, alguém teceu grandes elogios a um livro de Clarice Lispector, escritora brasileira desconhecida da maioria das pessoas nos Estados Unidos. Pesquisando sobre a vida de Clarice, fiquei fascinado com a história dessa artista verdadeiramente única, que levantava bem cedo todos os dias, antes que sua família acordasse, para escrever de um território tão novo e, no entanto, tão próximo que, naquele silêncio, suas palavras ainda ecoam. Mencionei seu nome a José Carlos, e ele me disse que o livro que escolhi é uma obra-prima.
Não cito aqui trechos do texto em inglês porque não quero que a beleza de seu trabalho seja arruinada pela tradução de volta ao português. Basta dizer que Água Viva (1), com suas oitenta e oito páginas, deixou marcas indeléveis depois de uma leitura muito demorada, frase por frase, intercalada por pausas para meditar e refletir.
Clarice lutava todas as manhãs para estar no momento de escrever e para escrever sobre isso. Isso é impossível. Palavras não podem ser reunidas com essa rapidez. No entanto, ela fez uma incrível e comovente tentativa de capturar momentos de presença e voltar continuamente ao momento depois de se afastar um pouco. E deixou claro que seu livro não é um livro porque ninguém escreve assim (isso é quase uma citação).
Por que — você poderia perguntar — eu escrevo sobre Clarice para uma publicação de Slow Medicine? É porque sua perseverança desperta algo nos leitores, de uma forma muito semelhante à maneira como eu, em minha loucura levemente tendenciosa, enxergo a função do meme da Slow Medicine.
Na maior parte do tempo, as discussões relativas à Slow Medicine giram em torno da forma. Há discussões entre defensores da medicina alternativa e da moderna medicina baseada em evidências. Ocorrem também polêmicas acerca da decisão de criar um organismo internacional organizado ou de deixá-la flutuar livremente. E então, uma organização internacional deveria ser formal, personificada e repleta de autoridades alinhadas com a academia ou um local de encontro social? Que tipos de princípios-chave serão definidos e sistematizados? Como devem ser divulgados? Quem estará na vitrine e receberá os méritos? Onde está o dinheiro? E assim por diante, tendendo aos mesmos padrões de comportamento que podem ter sido a causa original dos problemas na medicina.
Se ficarmos presos demais a esse tipo de coisa, podemos esquecer — se é que alguma vez já percebemos isso — uma ideia central que diferencia a Slow Medicine do sistema atual. O que falta na medicina moderna? O que a tornaria melhor?
A contínua sucessão de modernos sistemas médicos parece caminhar inexoravelmente em direção ao aperfeiçoamento de algoritmos para “atenção ao paciente”. Se levarmos a sério a avaliação de Yuval Harari (2) sobre a possibilidade de controle da medicina pela inteligência artificial, vamos então transformar tudo em uma lista de verificação. Enquanto isso, pacientes e médicos reclamam das telas de computador e da falta de interação pessoal. O pouco tempo disponível é absorvido na verificação de itens da lista.
Ainda podemos piorar a situação. Mesmo que haja bastante tempo, há realmente alguém ali? Quando estou na mesma sala que um paciente, ou mesmo ao telefone, onde estou? O momento que compartilhamos tem algum significado para mim? Tem alguém aqui?
Minha confissão é a seguinte: vivo dos dois lados da linha existente entre médico e paciente. E na maioria das vezes, não há realmente ninguém lá. Os médicos agem como algoritmos, e os pacientes estão na imaginação.
Desse modo, o que proponho é que prestemos muito mais atenção à Presença como fundamento da medicina curativa. Não apenas como uma ideia intelectual, mas como uma prática cultivada. Se a Presença for o cerne da Slow Medicine e nos lembrarmos sempre de voltar a este momento, onde estamos, com nossos médicos e nossos pacientes, algo pode mudar.
“Isso não é medicina, porque ninguém pratica medicina dessa maneira.” Você pode me citar. Obrigado, Clarice.
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Ladd Bauer é médico, foi editor do American Journal of Alternative and Complementary Medicine, onde foi publicado o primeiro editorial em língua inglesa com a expressão Slow Medicine. Ele também é responsável pelo site que nos revela a história da Slow Medicine no mundo e suas principais iniciativas.
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Claudia Araujo é médica e atua como tradutora especializada na área médico-farmacêutica desde 1987.
Contato: [email protected]
* A citação de Clarice Lispector no início do texto foi adicionada por José Carlos Campos Velho posteriormente, por acreditar que o fragmento, retirado do livro Água Viva, representava a liberdade de espírito que o autor propõe para a Slow Medicine.
Que texto lindo, e tão lúcido, e coerente. A proposta de voltarmos o tempo todo à Presença como o ponto de partida para nossas atitudes é tão simples e tão complexa ao mesmo tempo! E, como tudo o que é simples e complexo, exige tempo e perseverança. Manter-se atento à própria postura o tempo todo pode ser cansativo e desgastante. Pode ser frustrante, até, quando nos pegamos agindo de forma contrária ao que julgamos adequado. Mas aos poucos, com o tempo, as novas posturas viram hábito, e passam a fazer parte do nosso modo de ser. Passam a ser naturais para nós e para aqueles com quem convivemos (inclusive nossos pacientes). E é aí, bem nesse ponto, que essa “medicina impossível” deixa de ser desgastante, de exigir esforço. Só sobra espaço para vivenciarmos nosso significado neste mundo, com toda a leveza e beleza que nos cabe.