Por Vera Anita Bifulco e Ana Célia de Souza:
A Vida continua para além da Morte física, do corpo biológico, do orgânico. Ainda estão vivas tantas pessoas que deixaram um legado universal, Gilgamesh, Odisseu, Aquiles, Jung, Shakespeare, Mozart, ou uma influência local, Cazuza, Raul Seixas, Villa-Lobos e Machado de Assis. E mesmo os que tenham sido importantes para uma única pessoa. Somos maiores por sermos importantes para alguém, por fazermos diferença, quer seja para uma pessoa ou para uma multidão. Somos maiores pelo legado que deixamos e, nesse sentido, podemos nos imortalizar na lembrança que terão de nós ou morremos de forma “socioculturalafetiva” no esquecimento do que fomos. A “vida” pode ser eterna no legado que deixamos, Ligia Py escreveu: “Todos os nossos mortos moram dentro de nós”! Acessamos conforme nossas lembranças. Vivemos nas memórias que perpetuamos. Quando alguém nos esquece desaparecemos, não há mais energia que una, que chegue a distâncias inimagináveis, que nos faça “viver” novamente.
Neste vibrante conto da Disney-Pixar (2018), repleto de diversão e aventura, um jovem aspirante a músico, Miguel, de 12 anos de idade, embarca em uma extraordinária viagem à terra mágica de seus ancestrais. Lá, Hector, um encantador malandro, torna-se um inesperado amigo que ajuda Miguel a descobrir os mistérios por trás das histórias e tradições de sua família.
“Prato cheio” para inúmeras reflexões, simbolismos e interpretações. Independente de qual seja a crença religiosa, ou mesmo se não houver nenhuma, ao assistir essa película que nos é apresentada como uma aventura dentro de um desenho animado fica impossível não ser tocado pela sua mensagem.
Por que será que fizeram um filme falando de Morte como um desenho animado cheio de efeitos especiais? Por que a necessidade de trazer esse tema revestido de tanto tabu no formato de uma animação? Cautela, sim, cautela, os estúdios da Pixar sabiam que estavam mexendo em terreno arenoso. Falar de Morte numa sociedade que a esconde no mínimo é desafiador, mas numa das mensagens do filme, o farsante galã que se apodera de uma história que não é sua, mas movido a uma vaidade sem escrúpulos prega: “Agarre seu momento”, imediatamente associado ao significado de Carpe Diem: “agarre o dia”. E a mensagem segue: ter fé no seu sonho é fazê-lo real. Também podemos pensar que é uma ótima ocasião para conversar sobre o conceito de morte com as crianças, elas aprendem que é um ciclo natural, mas que devemos nos lembrar e honrar aqueles que não estão mais entre nós, celebrando a vida.
A Pixar com certeza correu atrás de seu sonho e fê-lo acontecer de uma forma comestível, de fácil digestão, e os que assistem nem percebem como estão sendo envolvidos pela mais antiga e saudável proposta filosófica: pensar na Morte para aprender a Viver.
Entendendo o cenário onde a história se desenrola
O dia 2 de novembro é identificado como sendo um dia específico para se meditar e rezar pelos mortos. Milhões de pessoas cumprem o ritual de ir até os cemitérios levar flores para depositar nas lápides em memória dos que se foram; outras levam também velas e cumprem os rituais mais tradicionais, como orações, cânticos etc.
Uma vez que a morte é parte da vida, faz sentido que as pessoas de todo o mundo, de todas as culturas e origens diferentes tenham suas próprias festas reservadas para honrar aqueles que já faleceram. A data, que simboliza a lembrança e o legado de quem já se foi, é marcada por vários rituais. Uma tradição milenar que é considerada Patrimônio da Humanidade pela Unesco e é ‘comemorada’ de diferentes formas ao redor do mundo, seja com orações ou com festas.
No México (cenário da animação), o Dia dos Mortos (Día de los Muertos) é uma celebração de origem indígena, que honra os falecidos no dia 2 de novembro. Começa no dia 31 de outubro e coincide com as tradições católicas do Dia dos Fiéis Defuntos e o Dia de Todos os Santos. Além do México, também é celebrada em outros países da América Central e em algumas regiões dos Estados Unidos, onde a população mexicana é grande.
De origem indígena, o Dia de Finados mexicano comemora as vidas dos ancestrais, que nessa época voltam do outro mundo (só voltam ou tem permissão para voltar, os que são lembrados por suas famílias, os que têm o privilégio de terem suas fotos nas oferendas, os que conseguem que suas famílias os abençoem), para visitar os vivos. Os povos indígenas tinham cerca de um mês inteiro dedicado aos mortos: o nono do calendário asteca, equivalente ao nosso agosto. Quando os espanhóis chegaram naquelas terras, se assustaram com esses costumes e logo trataram de cristianizar a festa, que teve a data alterada para coincidir com o Dia de Finados católico. As famílias preparam verdadeiros banquetes, geralmente com comidas e bebidas e recuerdos que tinham significados para os falecidos, as pessoas se enfeitam e as crianças se divertem.
Os mexicanos acreditam que o legado daqueles que se foram podem ser revividos pelo os que aqui estão encarando a data com festas que reúnem a família e os amigos. Para acolher a alma dos finados, a maioria das casas criam altares para ‘receber’ as visitas anuais. Fotos dos mortos, flores, doces, cigarros e brinquedos (para as crianças), além das famosas caveiras coloridas fazem parte da decoração.
Detalhe: se divertem nos cemitérios. À noite. E com os mortos!
O escritor Carlos Fuentes, em seu O espelho enterrado (1992), afirma que a morte é “o grande espetáculo igualitário que dissolve as fronteiras entre o cenário e a plateia, entre o autor e o espectador, entre o que olha e o que é olhado”.
No Brasil, as cerimônias seguem um ritmo diferente do mexicano. Nada de festas. Aqui os familiares costumam ir aos cemitérios levar flores e velas aos túmulos dos falecidos e são realizadas missas e cultos para orar pela alma dos finados.
Dependendo da cultura, o dia ganha um viés festivo, como explicitado acima no México.
Na Espanha o que na verdade é comemorado é o Dia de Todos os Santos, Dia de Todos Los Santos, que acontece em 1º de novembro. Sendo um feriado nacional, as pessoas retornam para suas cidades natais e visitam os cemitérios nos quais seus entes queridos estão. Flores são levadas para os túmulos à noite e um doce especial chamado Hueso de Santos (Osso dos Santos), feito de marzipã, ovos e syrup (calda semelhante ao mel, feita de açúcar e água) é comido como sobremesa especial da data. Durante o dia, as cidades espanholas recebem paradas em honra aos mortos. Assim como na tradição mexicana, os espanhóis também usam roupas de tons coloridos e vibrantes no dia. Mesmo sem as grandes festas que caracterizam o feriado no México, o Dia de Todos os Santos na Espanha também possui um clima mais festivo. Os espanhóis apresentam um misto das celebrações entre Brasil e México.
No Japão, a data da comemoração é 15 de agosto (e no dia 15 de julho, na região de Kanto), o dia é um momento especial, no qual os japoneses prestam homenagens aos seus ancestrais. As celebrações duram três dias e incluem danças e comidas especiais para a data, além do retorno ao lar em que os antepassados da família viveram. Uma das tradições japonesas é limpar as lápides dos falecidos, já que acredita-se que seus espíritos retornam nessa época, para visitar os vivos. Na região de Kyoto, na noite de 16 de agosto, cinco símbolos feitos com fogo, semelhantes a uma estrela do mar, são postos nas montanhas em saudação aos espíritos, pois esse povo acredita que será neste momento que os espíritos retornarão. A celebração foi incorporada e adaptada em regiões de outros países por imigrantes japoneses, inclusive em pequenas comunidades brasileiras.
No interior da Guatemala, onde há influência dos povos indígenas, pipas gigantes são soltas no ar, próximo aos túmulos dos mortos;além de decorar o céu, simbolizam a alma de quem morreu.Há ainda pratos típicos feitos somente neste dia do ano.
Já no Haiti, duas tradições – católicas e vudu – se misturam para celebrar o dia dos mortos. Tambores gigantes são tocados durante toda a noite para que o Deus dos Mortos acorde.
Em Pitru Paksha, Índia, os hindus honram os seus antepassados, tanto quanto as sete gerações passadas – o que é um tempo muito longo. Eles começam tomando banho em lagoas e rios sagrados e continuam oferecendo orações e comida para seus antepassados que retornam da vida após a morte para a noite de festa.
Em Pchum Ben, no Camboja, a cultura Khmer realiza um festival. As pessoas visitam seus templos, locais para rezar e fazer oferendas aos mortos. Depois todos comemoram com corridas de búfalos e lutas.
No Equador celebra-se o Día de los Difuntos, que é o Dia dos Mortos, também no dia 2 de Novembro. É um feriado para se honrar a memória das pessoas que já se foram. A tradição do Dia dos Mortos é que as famílias visitem os cemitérios e levam flores e comida àqueles que já morreram. Dentre as comidas bem tradicionais que são preparadas especialmente para o Dia dos Mortos tem-se a colada morada, uma bebida roxa de milho e guaguas de pan, pão doce em formato de bebês. Guagua é uma palavra quéchua que significa bebê ou criança. Embora as guaguas de pan sejam as mais populares, em algumas partes do país, especialmente no Sul, as pessoas fazem os pães em formato de animais, tais como: cavalos, porcos, pássaros e outros formatos, podendo em algumas regiões serem referidos como puerquitas de pan ou porquinhos de pão. Outra tradição em muitas partes do Equador é que os padrinhos presenteiem seus afilhados com puerquitas ou guaguas de pan nessa época do ano. Anteriormente se faziam essas figuras com massa que não era comestível e então eram usadas como oferendas aos túmulos. Esses túmulos também eram conhecidos como guacas e algumas vezes foram violadas por pessoas que procuravam por ouro ou coisas de valor. Roubar de um guaca traz muito azar e má sorte.
A festa do Halloween faz referência ao dia de todos os Santos e, simultaneamente, ao dia de finados. Geralmente o Halloween é mais difundido em países de língua anglo-saxônica, os países de língua hispânica não celebram essa festa, e sim o dia dos mortos. A Irlanda é considerada o “berço” da tradição do Halloween, as pessoas comemoram construindo fogueiras, no caso, os adultos, pois as crianças andam nas ruas exclamando o famoso “tricks or treats”, em português: “doces ou travessuras”.
Já em Portugal, o Dia de Fiéis Defuntos (01 de novembro) tem uma índole fortemente católica e como tal, ligada à celebração da morte e ressurreição cristãs. É o dia de lembrar os entes queridos que não estão entre nós. Por todo o país, no dia de Todos os Santos (01/11), vê-se uma romaria de famílias indo às suas cidades de origem para encher de flores os túmulos de seus parentes e amigos, arrumando tudo para o dia de Finados (02/11). Ainda que uma festa silenciosa e mais ligada à reflexão do que às grandes manifestações festivas mexicanas é uma das mais importantes comemorações do povo português, saudoso de seus defuntos.
Segundo Léon Denis (filósofo francês e espírita nascido em 1846) a prática de quase dois mil anos de dedicar um dia aos mortos seria uma iniciativa dos druidas, pessoas encarregadas das tarefas de aconselhamento e ensino na sociedade celta, que acreditava na continuação da existência depois da morte. Reuniam-se nos lares e não nos cemitérios, no primeiro dia de novembro, para homenagear e evocar os mortos.
Retornando ao filme, quase no final, quando numa luta contra o tempo de se tornar imortal pelo não esquecimento, Hector, nosso filósofo “malandro” ‘solta’ essa preciosidade: “Você não tem de perdoar, só não pode esquecer”! Ah! Que frase monumental. Há tempo para o perdão, só não pode ser esquecido. Somos espíritos imortais. Dentro da nossa imortalidade sempre haverá essa espera atemporal, o momento certo para a prática da libertação, a ampliação de nossa consciência para o que realmente importa dentro de uma vida eterna.
Qual a confluência de toda essa mensagem com a filosofia Slow. Primeiramente trabalhar o tempo, as relações, Coco honra as crianças e as histórias mágicas que povoam e formam as suas personalidades. Honra a família, através das histórias e consequências dos descendentes de Miguel, demonstrando particular afeto pelos idosos e honra o cinema de animação, pois ao contrário de outros filmes do gênero é um exemplo de mestria técnica ao serviço de uma boa história. Vamos lembrar que as histórias, as narrativas facilitam transformar o caos em histórias de construção. Honra a utilização das artes como forma de aprender Empatia, que contrariamente ao conceito simplista, pode ser entendida como a tentativa de ver o mundo pela perspectiva do outro.
E finalmente, mas sem encerrar, pois o processo será sempre refinado ao olhar do observador, o filme retrata a morte como um fechamento de um ciclo vital. A morte é apenas a vida que termina, é o epílogo do que se viveu. Não se pode escrever um fim diferente, não compatível com o que foi toda a história, o transcurso da vida, a biografia da pessoa.
Somos pequenos grãos de areia nesse universo imenso, dentro de um planeta que ainda conserva uma pequenez de consciência, mas mesmo como grãos de areia, somos à semelhança de Deus, capazes de fazer acontecer o inédito, o transformador para o bem ou para o mau, e é nisso que se encontra o sagrado.
Referências:
Saiba como é celebrado o Dia de Finados em seis culturas diferentes
Saiba como é a ‘celebração’ do dia de Finados pelo mundo
A tradição do Halloween pelo mundo
(Todos acessados em 24 ago 2018).
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Vera Anita Bifulco é psicóloga, especialista em Gerontologia e Psico-oncologia, tem mestrado em Cuidados Paliativos na Unifesp. É coautora de 3 livros, Câncer – Uma Visão Multiprofissional , Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde e Cuidados Paliativos: um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais. Vera tem 3 filhas e um neto, gosta de viajar, de música, cinema e livros. Como legado, gostaria de deixar o seu sorriso e seu amor pela vida.
Ana Célia Rodrigues de Souza é médica psiquiatra, formada pela FMUSP em 1992, mestre em Ciências do Comportamento pelo ICB – USP em 1998 e doutora em Psicologia pelo IP-USP em 2017. Analista junguiana, uma apaixonada por orquídeas e jardins botânicos, “cinéfila” e leitora voraz, que como Jorge Luis Borges, pensa que o Paraíso deve ser uma espécie de Biblioteca. Buscadora, andarilha, caminhante, adora viajar tanto para locais conhecidos – seguindo o conselho de Proust, com novos olhares para os mesmos lugares – como se aventurar por onde desconhece.
Uma correção: o dia dos fiéis defuntos é no dia 2 de novembro e não no dia 1, como é mencionado