por Sylvia Mello Silva Baptista:
O autor Dante Marcello Claramonte Gallian é um historiador que criou um laboratório de leitura para o mundo corporativo; mas antes, para círculos domésticos; mas antes para alunos de Medicina; mas antes… Quero dizer que essa história levou tempo, e é sobre esse caminho do entrelaçamento da medicina e da literatura que ele fez sua narrativa. Foram muitas as andanças, as desidealizações, as reformulações do olhar para sua posição de professor.
Seu livro trata de contar como chegou à conclusão, não intelectiva mas experiencial, de que ler os clássicos é algo potente para a transformação dos indivíduos. Ele privilegia o termo “remédio” com que batiza o livro, em contraposição a “medicamento”, por acreditar que o primeiro traz uma atmosfera mais caseira e pessoal, enquanto o medicamento nos joga no âmbito do coletivo e impessoal. Mas a pergunta “remédio para quê?” se coloca, e Gallian a responde com uma ampliação histórica e contextual própria do seu olhar. Qual o papel da literatura na história das civilizações? Nos lembra que a educação humanística, focada na formação do homem a partir de modelos virtuosos, reinante durante longos anos desde os idos da Grécia Antiga, foi perdendo espaço a partir do século XVII com a revolução científica, num processo crescente de caráter técnico-cognitivo. E é para a experiência estético-reflexiva que o autor quer chamar nossa atenção. “Estética” porque aesthesis – palavra vinda do grego- significa despertar; portanto, despertar para uma reflexão sobre aquilo com que se entra em contato.
Gallian conta de forma detalhada e leve como suas primeiras aulas para recém e futuros médicos foram se transformando e ganhando novos espaços. O que no início parecia um sonífero sem sentido para alunos desinteressados e incrédulos no valor da literatura para a Medicina, foi revolucionado quando alguém sugeriu que lessem a tragédia Antígona, de Sófocles. Particularmente acho digno de nota que tenham saltado de trechos de obras clássicas de Hipócrates, Galeno e Paracelso para esse texto literário em especial. Ali, a heroína é símbolo universal da ousadia e do questionamento das leis impostas pelos homens, trazendo à tona profundas questões sobre o humano. Discussões sobre temas que até hoje se fazem vivos (quantas montagens de Antígona estarão acontecendo agora apenas em nossa cidade?).
Antígona abriu uma avenida para a experiência do autor na sua empreitada de abertura de um Laboratório de Leitura (LabLei), que antes precisou denominar-se Laboratório de Humanidades (LabHum) para conseguir espaço no território da saúde – ou antes, na burocracia institucional e nas vaidades feridas daqueles que se incomodam com o novo.
Não custa lembrar que a palavra “Laboratório” é composta de duas partes que lhe dão um sentido singular, como muitas vezes sublinhou C. G. Jung em seus estudos sobre alquimia: Labor + Oratório. É nesse contexto que o trabalho, a ação do homem no mundo se une ao sagrado, ao âmbito do divino, e faz surgir um terceiro elemento que é pedra filosofal, o ouro invulgar. Na prática, o que Gallian foi recolhendo de suas experimentações foi a constatação viva das mudanças que a leitura compartilhada dos clássicos era capaz de catalisar.
O movimento de humanização que começava no início do século XXI foi favorável à iniciativa. Afinal, o tal remédio se dirigia ao processo de desumanização da Modernidade e pós-modernidade. Citando Antoine Compagnon –autor de Literatura para quê?, Ed. UFMG, 2009- sublinha que “a literatura, ao mesmo tempo sintoma e solução do mal-estar na civilização, dota o homem moderno de uma visão que o leva para além das restrições da vida cotidiana”(p.72). Mas o que os clássicos curariam? Responde: “Além de antídoto contra a alienação causada pelos sistemas políticos e ideológicos e de antídoto contra o enrijecimento tecnicista da linguagem, ela (a literatura) vai sendo vista, cada vez mais, como um antídoto contra a tecnificação do próprio pensamento filosófico”.(p.76).
Através de inúmeros relatos em primeira pessoa, Gallian nos fará saber como sentiram e o que observaram as pessoas que passaram pela leitura de grandes textos. Ao longo do tempo, seu trabalho foi buscando o prazer pelo encontro com os clássicos, bem como a formação de novos leitores, mirando tocar três importantes dimensões da experiência humana: a afetiva, a intelectual e a volitiva. A ampliação que se dá ao passar pelo LabLei, segundo o autor, vai além do repertório literário, expandindo-se para o cultural, histórico e filosófico.
Dentre muitas experiências em que a literatura toma lugar de destaque no processo de transformação das pessoas, eu mesma posso citar um exemplo que me chegou às mãos há pouco tempo: a tese de doutorado pela FEUSP (Faculdade de Educação da USP) da Professora de Língua Portuguesa e mestre em Comunicação e Semiótica Eliana Braga Atihé. Ali, Atihé reconhece na sua leitura de três clássicos –Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Decamerão, de Giovanni Boccaccio, e O morro dos ventos uivantes, de Emile Brontë- a potência de levá-la a ser quem é, uma educadora que trabalha com a literatura, e cujo olhar para o texto enquanto mito tece e cultiva a alma. (Uma educação da alma: literatura e imagens arquetípicas, FEUSP, 2006).
Fato é que, ao ler “A literatura como remédio”, começamos a escrutinar nossas estantes e a lembrar quais grandes livros nos formaram, quais os nossos preferidos, os que nos marcaram profundamente; e vemos aí o quanto esses escritores tocados pelas Musas participaram daquilo que hoje nós atribuímos ao “eu” que somos. Aos que se sentem tentados a participar de um grupo de leitura, foi criado um centro cultural chamado Casa Arca, onde pessoas se encontram com o objetivo de ler os clássicos e trocar impressões.
E por que esse tema tem relação com a Medicina Sem Pressa? A relação é direta. Além dessa iniciativa ter nascido na casa da medicina, ou seja, em hospitais-escola, inicialmente com o intuito de trazer um pouco da história da medicina aos alunos, aquilo que o projeto se tornou tem muito a ver com os valores pregados pela assim chamada Slow Medicine, uma vez que também diz respeito a um movimento que vai na direção contracultural de desaceleração e atenção, tão necessárias nos dias atuais. Para se ler um livro é preciso tempo. Para se saborear um livro e refletir sobre o que está ali dito é preciso tempo. Para se acordar e absorver as verdades fundamentais que estão contidas nas leituras é preciso tempo. Segundo Gallian, “a proposta do Laboratório de Leitura apresenta-se como um convite ao resgate da experiência da leitura; experiência esta que proporciona uma relação diferente com o tempo, com o corpo e com a mente”. (p.164)
As questões despertadas pelos clássicos resultam, segundo o autor, no efeito denominado por Blaise Pascal como ‘conversio’ –conversão- em contraposição a ‘diversio’ –diversão-, onde o primeiro seria um voltar-se para dentro de si mesmo, conhecer-se, enfrentar-se. Parece claro que, para tal, a pressa da modernidade, bem como o anestesiamento causado pelas medicações excessivas e desnecessárias que tomam o lugar da troca humana, perdem o sentido. O resgate do olhar cuidadoso para o outro, tão fundamental para o exercício da Medicina Sem Pressa, é o que Gallian propõe com seu livro. O outro é a literatura; o outro são os personagens, o outro sou eu, leitor interessado em me saber mais e melhor; o outro é você, que traz uma pequena chama interna capaz de ser reavivada pelas palavras de um poeta.
Finalizo dando voz a esse escritor-historiador, que, como tendo um receituário em mãos, recomenda a um imaginário leitor ocupado:
“Assim, extremamente apressado e ocupado leitor, concluo e me despeço. Porém, se ainda te interessar a cura para os males de nossos tempos desnorteados, creio que deixei claro aqui a prescrição; desocupa-te, despreocupa-te e, sem pressa, desfruta do substancioso remédio da literatura. E, de preferencia, tomando-o segundo a posologia do Laboratório de Leitura. Não te prometo a cura, mas garanto que, pelo menos, te sentirás cuidado e aliviado de tua pressa, preocupação, e , talvez, da tua solidão. O que não deixa de ser algo bastante importante para a saúde da alma. Não é mesmo?”(p.212)
Vamos aos clássicos!
A LITERATURA COMO REMÉDIO – Os clássicos e a saúde da alma, Dante Gallian / São Paulo: Martin Claret, 2017.
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Sylvia Mello Silva Baptista formou-se em Psicologia pela PUC-SP. É analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, professora de cursos abertos e de formação da SBPA, coordenadora do MiPA, Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica da Clínica da SBPA. Como escritora, publicou “Maternidade e Profissão: Oportunidades de Desenvolvimento”, “Arquétipo do Caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas”, “Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas” e “Ulisses, o herói da astúcia”, todos editados pela Editora Casa do Psicólogo.
Sylvia, adorei o texto e a concepção do livro! Indiquei para duas amigas, uma psquiatra e outra pediatra que tem se aberto para outras formas de tratar além da medicina. Seu texto está saboroso e desperta avontade de ler o livro e de retomar os clássicos da literatura! Bjos, Mônica Andrigo Coelho
Querida Sylvia, como sempre, um texto muito legal, escrito com alma, servindo de aperitivo ao suculento banquete anunciado: clássicos da literatura! Nada melhor! Que delicia! Muito grata! Bj gde
Puxa Sylvia, adorei seu texto! Como sempre, claro, rico e instigante; me deixou com muita vontade de ler o livro. Muito obrigada pelo post maravilhoso. Grande beijo
Querida Sylvia,
Que delícia o seu texto, trouxe aquela vontade de quero mais… adorei e vou atrás.
Beijo, Renata