Luto sem pressa, cuidados paliativos e Slow Medicine

outubro 31, 2017
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Por Ana Célia de Souza:

A natureza da psique mergulha em obscuridades para além dos limites de nossas categorias intelectuais. A alma encerra tantos mistérios quanto o mundo com seus sistemas de galáxias diante de cujas majestosas configurações só um espírito desprovido de imaginação é capaz de negar suas próprias insuficiências.

                                                                                                          *** Jung (1984, § 815)

Gostaria de iniciar chamando atenção para a questão fundamental das perspectivas que utilizamos para apreender o mundo a nossa volta: quem, de onde, como e o que se olha? Penso que por meio de nossos olhares o mais flexíveis possível poderemos ter empatia e compreender de modo mais abrangente o sofrimento humano, para além dos julgamentos pessoais e, assim, auxiliando o outro em sua dor de modo mais eficiente.

O conhecimento científico é o que conduz a aventura da descoberta do universo, da vida e do homem visto que ele trouxe um majestoso progresso ao nosso saber. Hoje, podemos medir, pesar, analisar o Céu com suas constelações e planetas, decifrar a linguagem genética que informa e programa a organização viva. A ciência é elucidativa por resolver enigmas e dissipar alguns mistérios, além de ser enriquecedora por permitir satisfazer necessidades sociais, desabrochando a civilização. No entanto, “apresenta-nos, cada vez mais, problemas graves que se referem ao conhecimento que produz, à ação que determina, à sociedade que transforma” (MORIN, 2014, p. 15). Essa ciência libertadora, esse conhecimento vivo é o mesmo que produziu a ameaça do aniquilamento da humanidade.

Para Munné (2012), em artigo originalmente publicado em 2007 – A explicação do comportamento humano deve ser o mais Simples Possível ou o mais Complexo Possível? – a esse respeito cabem duas considerações opostas: reducionismo e antirreducionismo. O autor considera que a primeira posição é própria da ciência dominante, que exatamente por ser complexo, o comportamento deve ser entendido do modo mais simples possível, abstraindo-se o que não é essencial. A busca de um conhecimento da realidade que seja o mais simples possível inicia-se no século XIV, mas o impulso decisivo em direção à simplicidade como paradigma adotado pelo conhecimento científico deve-se a Descartes no século XVII, que encontra sua resposta no reducionismo de sua visão dicotômica de res extensa e res cogitans e na redução do ser humano como um ser pensante que exclui sua dimensão de ser senciente, esquecendo a emoção e a importância do papel das paixões e dos sentimentos.

Como modelo de antirreducionismo Munné sugere a “ciência complexa”, proposta por Morin, para quem a problemática da complexidade ainda é marginal no pensamento científico, epistemológico e filosófico, suscitando mal-entendidos, tais como: conceber a complexidade como receita, como resposta, em vez de considerá-la como desafio e motivação para pensar; confundir a complexidade com a completude, sendo o problema da complexidade exatamente o contrário, o da incompletude do conhecimento, porém trazendo a noção de totalidade. A complexidade luta contra a mutilação, por exemplo, se pensarmos que somos ao mesmo tempo seres físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais. A complexidade é aquilo que tenta articular a identidade e a diferenciação de todos esses aspectos, enquanto o pensamento “simplificante” (ou redutivo) separa esses diferentes aspectos ou unifica-os por uma redução “mutilante” (MORIN, 2014).

Ainda, o pensamento complexo comporta em si um princípio de incompletude e incerteza, aspirando ao conhecimento multidimensional, como também a importância da necessidade do pensamento reorganizar nosso sistema mental, para reaprender a aprender. “Os maiores progressos das ciências contemporâneas são obtidos quando o observador é reintegrado à observação, pois todo o conceito remete ao objeto concebido e ao sujeito conceituador” (MORIN, 2013, p.23).

Então, só se pode começar ignorante e incerto, tendo em vista que a dúvida sobre a dúvida ganha uma nova dimensão, a da reflexão e, “a aceitação da confusão pode se tornar um meio de resistir à simplificação mutiladora” (op. cit.: p. 29).

Nesse ponto entram tanto os Cuidados Paliativos como o movimento  Slow Medicine, que penso estarem mais próximos dessa proposta de Morin: a da “ciência complexa”.

Como pano de fundo dessas temáticas penso ser de muita relevância o modo como encaramos a morte. Dar importância às nossas perdas é o que possibilita dimensionar nossos valores e percebermos o que é realmente significativo na vida. A aceitação da morte ou o modo com que lidamos com ela é fundamental para esse processo. Há que se ter coragem para essas vivências!

Philippe Ariès (2003, 2014), historiador francês que faleceu aos sessenta e nove anos em 1984, denominava de morte domada àquela que ocorria em casa acompanhada dos parentes e amigos, seguida de um luto selvagem, isto é, da expressão de intensas emoções provocadas pela perda, que era aceita, permitida e compreendida, na Idade Média. De lá para cá essa vivência foi se transformando e a partir do século XX, temos o que o autor denomina como morte invertida, interditada, “selvagem” que ocorre nos hospitais, acompanhada da solidão e do luto domado, no qual a expressão dos afetos intensos é substituída pelas vestes negras e a contenção do que hoje poderia nos parecer exagerado, teatral, “histérico”.

Apesar de sentirmos a morte como nossa inimiga a ser combatida a qualquer custo, inclusive com a obstinação terapêutica, repleta de ações médicas fúteis e inúteis, tentando impedir o inevitável, também a partir das décadas de 60-70 do século XX, temos ao lado da morte invertida, um movimento de reumanização, encabeçado principalmente pelas dras. Cicely Saunders e Elisabeth Kübler-Ross, expresso pelos cuidados paliativos, nos quais um dos princípios fundamentais é a preocupação com a dignidade do ser humano no processo de morte.

Os cuidados paliativos e o movimento da Medicina Sem Pressa apresentam princípios básicos comuns, tais como:

  • Enfatizar o cuidado focado no paciente, com a escuta cuidadosa e respeitosa de sua história, seus valores e sua individualidade, pois a falta de escuta é uma das maiores enfermidades atuais;
  • Apresentar como “eixo essencial do exercício da medicina: uma relação médico-paciente” (BIROLINI, 2016, p. 12) sólida, criando laços estreitos e duradouros; implicados na empatia, no respeito mútuo, na compaixão e na preocupação com a dignidade do outro;
  • Considerar que o tempo e a atenção ao paciente melhoram a tomada de decisão que deve ser compartilhada;
  • Cultivar a arte tanto de não intervir na autonomia e autocuidados, como da sabedoria da observação clínica; “na dúvida, não fazer o mal”;
  • Focar na humanização e não na tecnologia, que deve ser utilizada com bom-senso;
  • Acolher multidimensionalmente o outro: familiar, social, psicológico e espiritual;

– E por fim, defender a aceitação do inevitável.

Essa arte de cuidar navega contra corrente na nossa “pós-modernidade líquida”, termo cunhado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1998), que faleceu aos noventa e um anos de idade, em janeiro desse ano. Segundo Bauman (2009), não só a morte, como também a dor e o sofrimento devem ser evitados, banidos, à custa de uma busca obrigatória pela felicidade a qualquer preço, sendo a felicidade considerada como um estado eterno e que, além disso, necessita ser legitimada pelos outros nas redes sociais, por exemplo. Lembrando que se a felicidade fosse um estado eterno, talvez, não soubéssemos o que ela é e não estaríamos a buscá-la. Consequentemente, observamos um aumento assombroso do número de pessoas que se reconhecem como deprimidas, sem poder estar assim.

Moore (2009, p. 17-18) aponta que

por mais sufocante e perturbador que seja o que chamamos de ‘depressão’, é afinal de contas, uma experiência humana, atrelada a todos os outros eventos significativos da vida. […] é um período de transformação […] é mais um estágio da alquimia do que um obstáculo à felicidade […] e durante ‘a noite escura da alma’ [denominação do autor para esta vivência, expressão do místico espanhol São João da Cruz], não há escolha senão abrir mão do controle, ceder ao desconhecido e fazer uma pausa para atentar a quaisquer sinais de sabedoria que possam surgir […] a noite escura é uma iniciação profunda em um reino para o qual nada em nossa cultura, tão preocupada com interesses externos e sucesso material, prepara o indivíduo.

 

Proponho, então, um aprofundamento da compreensão do termo “depressão”, utilizado pelo senso comum, considerando-a como os afetos relacionados a todas as vivências de perdas concretas ou metafóricas, as mortes simbólicas, que nos ocorrem no cotidiano e em todas as etapas da vida, seguidas do processo de elaboração dessas perdas, os lutos simbólicos.

Em um momento ou outro da vida, a maioria das pessoas experimenta um período de tristeza, sofrimento, perda, frustração ou fracasso, tão perturbador e duradouro que pode ser chamado de ‘noite escura da alma’. Se seu principal objetivo na vida é a saúde, você pode tentar vencer rapidamente a escuridão. Mas, se estiver procurando por significado, caráter e substância pessoal, talvez descubra que a noite escura tem grandes dádivas a lhe dar […] Hoje em dia, rotulamos muitas dessas experiências de ‘depressão’ […] e a palavra é demasiadamente clínica para algo que nos faz questionar o próprio sentido da vida. Está na hora de encontrarmos uma maneira diferente de imaginar essa experiência comum e, assim, um modo diferente de lidar com ela. Mas fica o alerta – essa questão é sutil, e você terá que fazer um exame apurado de si mesmo […] para perceber como um episódio profundamente perturbador pode representar um precioso momento de transformação […] Toda vida humana é feita de luz e escuridão, felicidade e tristeza, vitalidade e embotamento. O modo como você pensa nesse ritmo de estados de espírito faz toda a diferença. Você vai se esconder no autoengano e nos entretenimentos? Vai se tornar cínico? Ou vai abrir o coração para um mistério tão natural quanto o sol e a lua, o dia e a noite, o verão e o inverno? (MOORE, 2009, p.13).

Já que estou propondo uma perspectiva que aborda a morte e o luto simbólicos, os símbolos “representam uma situação concreta e real, mas que também remetem a um significado que transcende a situação, inserindo uma experiência num contexto maior” (KAST, 2016, p.130). Por exemplo, podemos citar a hóstia, como símbolo do corpo de Cristo no ritual da missa cristã, uma situação real e concreta, mas que também remete a uma experiência muito mais ampla, relatada pelo mito cristão.

Como exemplos de mortes simbólicas podemos citar: a perda de uma pessoa significativa, sobreviventes de tentativas de suicídios, a saída de casa dos filhos crescidos, o casamento, o nascimento do primeiro filho, uma separação conjugal, decepções conosco mesmos por auto idealizações, uma aposentadoria compulsória. Além disso, a perda de todas as etapas da vida: da infância, da juventude produtiva, o envelhecimento e por fim, a perda de si mesmo por uma patologia fatal. O encontro com todas essas vivências demanda um tempo de reorganização psíquica, um tempo para uma construção da presença da ausência, o luto.

Penso ser necessária a ampliação do conceito de luto, que geralmente é utilizado apenas para a perda concreta de uma pessoa significativa. No entanto, todas as vivências de mortes simbólicas demandam um trabalho de elaboração, de (des)construção da presença e (re)construção da ausência do elemento perdido, um processo de transformação de si mesmo, o luto simbólico. Fenômeno este, também alocado na categoria dos eventos interditados, juntamente com a morte, a dor e o sofrimento na atualidade.

Com cada sofrimento experimentado, cedemos um pedacinho de vida e passamos pela perda, o pesar e o luto, vivências repletas de ambivalências que nos mobiliza, desorganiza-nos, pedindo-nos transformações.

Com cada fase de desenvolvimento também experimentamos a morte em vida, visto que o futuro representa perda, morte e sacrifícios de formas anteriores. A perda e sua elaboração são elementos contínuos no existir humano, podendo ser chamada “de morte consciente ou de morte vivida” (KOVÁCS, 2013, p. 154), ou como aqui é tratada de morte e luto simbólicos. Sacrificar perspectivas pessoais é necessário a cada avanço (FREITAS, 2013).

Venho atendendo como analista, nesses últimos doze anos, tendo como referencial os pressupostos da psicologia analítica e arquetípica. Aprendi que com a escuta simbólica a psique responde de modo eficaz, favorecendo o processo de autoconhecimento e de compreensão da estrutura e dinâmica psíquicas, como também, que cuidar vai além do alívio dos sintomas e como diz Boff (2014, p.37, itálicos do autor): “cuidar é mais que um ato; é uma atitude […] abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”.

Ao vivenciarmos uma morte simbólica, temos uma grande oportunidade para refletirmos – fletir-se duas vezes – isto é, voltarmo-nos para nós mesmos e revermos valores, crenças, prioridades e atitudes. É um movimento psíquico de introspecção, um recolhimento ao mundo interno, no inconsciente; uma “descida iniciática” ao mundo de Hades do mito grego, um enfrentamento da “noite escura da alma”.  É a hora para se desapegar de velhas ideias, sentimentos, emoções e ações, permitindo assim, que uma “nova pessoa” renasça das cinzas do que está velho, ultrapassado, de acordo com as novas exigências  do momento atual de nossas vidas  – o luto.  Demanda tempo, paciência e tolerância ao desconforto. É uma vivência de sacrifício – sacro-ofício, sacro=sacere= sagrado e oficio=fazer; daí, tornar sagrado. Consagrar a morte simbólica com o sentido do renascimento. Transformar a maneira de compreender a vida e o modo de estar nela, modificando as perspectivas.

Em relação aos cuidados paliativos, quando diagnosticada uma patologia sem possibilidades de cura, vivenciamos a difícil tarefa de elaborar a perda de nós mesmos, um luto em vida. Como também após a morte da pessoa que estava sendo cuidada, auxiliar no processo de luto tanto dos familiares como dos cuidadores.

Gawande (2015, p.243), quando discute sobre decisões compartilhadas com pacientes portadores de doenças graves sem possibilidade de cura para dar sequência ao acompanhamento médico, apresenta as seguintes questões orientadoras de procedimentos no cuidado: “Como você entende a situação e seus possíveis resultados? Quais são suas prioridades? Quais são seus medos e suas esperanças, [quais deles guiam suas escolhas]? Quais são as concessões que você está disposto a fazer e as que não está?” Questões fundamentais para guiar a reflexão nas profundezas do Hades, na experiência da morte e luto simbólicos.

O processo psíquico de se refazer a partir das perdas é um momento de afetos confusos, muitas vezes, paradoxais: de alívio e culpa, ainda acompanhado por “dor, tristeza, pesar, desgosto, angústia, entorpecimento, exaustão, remorso, (‘desejo de’) solidão”, entre outros, conforme relata ter sentido Butler (2014, p. 286) após a morte de seus pais. É um momento de se experimentar as ausências e da oportunidade de se retomar a vida, compreendendo aspectos diferentes de nós mesmos, que só notamos após essas vivências. Como exemplo, podemos citar a viuvez de uma mulher que só trabalhava em casa e tinha na figura de seu esposo o provedor da família. Com a morte concreta do mesmo, ela vai poder se experimentar como provedora dela mesma. E podemos pensar no divórcio como modelo da morte metafórica do marido provedor, possibilitando à divorciada a mesma vivência da viúva.

Saber lidar com a morte possibilita saber viver a vida! Eros (a energia de vida) e Tânatos (a energia de morte) estão constantemente medindo forças dentro de nós. Temos células nascendo e morrendo a todo o momento.  A vida implica um movimento constante de abertura, a eterna renovação, um fluxo contínuo. Mas, constante, contínuo não significa rapidez, pois há que se respeitar o tempo apropriado para a transformação psíquica de cada um (SOUZA, 2016).

Porém, a insensibilidade, a intolerância, a dificuldade de lidar com a dor física ou psíquica, as mudanças de valores culturais, a pressa, a perda de contextos, a falta de tempo e de paciência com e das pessoas, a supremacia do biológico ao biográfico do ser, a hipervalorização da materialidade, do racionalismo, da objetividade, e o abuso de psicofármacos, que promovem uma anestesia e bloqueio da capacidade de reflexão crítica sobre questões fundamentais da vida – como a morte, por exemplo, que é negada, dissociada – além da anestesia promovida pelo consumismo desmedido, incapacita-nos ainda mais para esta vivência de ser mortal (op. cit.: idem).

A pressa da atualidade, pressa de ter tudo na hora, pressa de resolver os problemas, as dores e os sofrimentos, esta sim é a verdadeira inimiga a ser combatida e não a morte (op. cit.: idem).

E muitas vezes, a pressa começa num momento muito delicado e íntimo. Quando temos um parente que morre no hospital ou outra instituição, nem se dá um tempo para que os familiares, amigos e cuidadores possam se despedir junto ao corpo – uma atitude que auxilia algumas pessoas a se organizarem emocionalmente após a notícia – pois o leito precisa estar rapidamente disponível, entre outros procedimentos logísticos das instituições (McCULLOUGH, 2009, tradução nossa).

O processo de elaboração das perdas, isto é, o luto, necessita de tempo. Assim como um processo de cura de uma ferida física precisa de tempo, assim como tudo demanda tempo para recuperar seu equilíbrio, a alma também precisa de tempo para cicatrizar. As cicatrizes, por vezes, até continuam doendo, incomodando, mas podemos dar outro significado a elas quando encontramos sentido no sofrimento. Além disso, essas marcas de momentos tão importantes de nossa existência nos dão identidade (SOUZA, 2016).

Antes de rotular com qualquer diagnóstico e medicar – o que geralmente é feito numa primeira consulta psiquiátrica – é necessário muito tempo de observação: da pessoa, de sua história de vida, de seus valores, como também, da compreensão da ‘vivência de perda seguida de luto’ – como uma expressão natural da psique (alma), que nos transportaria para um lugar simbólico promotor de reflexões sobre nossos valores e estilo de vida. Há muito trabalho a ser feito pelos sobreviventes! Muitas peças de si mesmo para serem reencaixadas (op. cit.: idem).

Quando discutimos sobre a questão se um período de luto superior a duas semanas já deveria ser diagnosticado como doença, conforme proposto no DSM-V, torna-se duvidoso se realmente estamos dispostos a dar o tempo necessário para nossas psiques se adaptarem às mudanças importantes, como à perda de pessoas significativas em nossas vidas, por exemplo. A psique está confusa, aflita e surgem novos problemas com os quais talvez não saibamos lidar nesse estado ferido (op. cit.: idem).

E é nesta situação que esperam que voltemos a funcionar “normalmente” dentro de duas semanas? Luto não é doença e sim, uma reação normal e sensata frente à confrontação com a morte e que ajuda a lidar com a perda, reorganizar-se, harmonizar-se; é uma das experiências existenciais mais fundamentais (KAST, 2016, p. 14-15).

Para Pessini (2011, p. 286):

[…] vivemos em um momento cultural sócio-histórico, no âmbito das terapias de saúde dominado pela analgesia, em que fugir da dor é o caminho racional e normal. À medida que a dor e a morte são absorvidas pelas instituições de saúde, as capacidades de enfrentar a dor, de inseri-la no ser e de vivê-la são retiradas da pessoa. Ao ser tratadas por drogas, a dor é vista medicamente como um barulho disfuncional nos circuitos fisiológicos, sendo despojada de sua dimensão existencial subjetiva. Essa mentalidade retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal, e transforma a dor em problema técnico.

Em entrevista sobre seu livro Antropologia da Dor (2013), o antropólogo francês David Le Breton refere:

A experiência mostra que o médico fixado no organismo só se interessa pela dor, e não pelo sofrimento. Ou seja: a experiência vivida por seu paciente, ele nem mesmo a escuta. Seus olhos estão fixados nas imagens ou nos exames. Para mim, o trabalho do médico implica capacidade de criação, de invenção, de recuperação, um jogo entre o conhecimento e o que ele sente, e que o leva a retomar uma conversa ou um sintoma. […] Penso que a eficácia terapêutica implica um mínimo de empatia. Acontece que o ser humano não é uma máquina nem a dor um mecanismo. O elo entre o primeiro e a segunda está costurado por ambivalências, afetividades e contextos socioculturais, que as tomografias não conseguem mapear (MANIR, 2015).

Atualmente, de modo geral, não se trabalha a história, não se respeitam os valores individuais dos pacientes, que são atendidos por meio de entrevistas dirigidas e objetivas, com o propósito de se preencher categorias diagnósticas com um conjunto de sintomas, sem tempo para uma escuta respeitosa e cuidadosa, com real interesse no sofrimento do outro, e muitas vezes sem a capacidade de acolher angústias existenciais, que geralmente são mútuas, isto é, tanto de quem fala como de quem ouve. Considero fundamental acolher a angústia de ambos, em função da impotência perante a morte, aceitando-a como natural e parte integrante da vida. Sem morte, não há vida! (SOUZA, 2016). E é por meio dela que percebemos o que realmente tem valor, o que de fato nos importa.

Pelo próprio significado etimológico de ‘psiquiatra’ – do grego: psykhè, alma; e íatros, médico – como médico da alma, fica muito difícil aceitar o manejo proposto na atualidade. Do ponto de vista pessoal, não consigo considerar o complexo comportamento humano como apenas um epifenômeno de uma sinapse, embora tal complexidade permaneça no campo do mistério, suspenso entre dois outros mistérios: a vida e a morte (op. cit.: idem).

No entanto, do modo como as consultas psiquiátricas têm sido realizadas, seguindo os manuais diagnósticos e focando na tecnologia, ficamos obrigados a fingir que nada aconteceu, nada mudou e a vida deve continuar; não se pode chorar, ficar triste, ou perder a alegria de viver. “Com o crescimento do componente científico, a medicina perdeu o componente humano. Fala-se aos pacientes com números e não mais com o coração” (BOBBIO, 2016, p. 18). Os sofrimentos humanos são considerados pela nossa cultura, por meio de suas fantasias, como patologias por alteração no funcionamento cerebral, doenças orgânicas, reduzindo a complexidade do humano apenas a essa dimensão biológica, entretanto temos muitos outros aspectos, tais como: cultural, espiritual, psíquico etc.

Dentro dessa perspectiva é que o movimento Slow Medicine – ou a medicina sem pressa – e os cuidados paliativos podem nos ajudar a promover um resgate de uma prática psiquiátrica mais humanizada, auxiliando na elaboração de nossas perdas e possibilitando um luto sem pressa.

E como diz Rubem Alves (2014, p. 273): “Os que bebem juntos da mesma fonte de tristeza descobrem, surpresos, que a tristeza partilhada se transmuta em comunhão”.

Referências

ALVES, R. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Planeta, 2014.

ARIÈS, P. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

                   O Homem Diante Da Morte. São Paulo: UNESP, 2014.

BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

                         A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2014.

BIROLINI, D. Prefácio, in: BOBBIO, M. O doente Imaginado. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016.

BOBBIO, M. O doente Imaginado. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016.

BUTLER, K. A. Knocking on Heaven´s Door: The Path to a Better Way of Death. New York, NY: Scribner, 2014.

FREITAS, L. V. O Ser Humano: Entre a Vida e a Morte Visão da Psicologia Analítica. In: KOVÁCS, M. J. Morte e Desenvolvimento Humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.

GAWANDE, A. Mortais: nós, a medicina e o que realmente importa no final. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

JUNG, C. G. [1971] A dinâmica do inconsciente. OC vol. VIII. Petrópolis: Vozes, 1984.

KAST, V. A alma precisa de tempo. Petrópolis: Vozes, 2016.

KOVÁCS, M. J.  Morte e Desenvolvimento Humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.

MANIR, M. A duras penas. O Estado de S. Paulo. Caderno Aliás. Publicado em 11/07/2015. Disponível em: <http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,aduraspenas,1723132 1/3 > – Acesso em: 14/07/2015.

McCULLOUGH, D. My mother, your mother: Embracing “Slow Medicine,” the compassionate approach to caring for your aging loved ones. New York, NY: Harper, 2009.

MOORE, T. Noites escuras da alma. Campinas: Verus, 2009.

MORIN, E. O método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2013.

                     Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

MUNNÉ, F. A explicação do comportamento humano deve ser o mais Simples possível ou o mais Complexa possível? In: VICHIETTI, S. M. P. (org.). Psicologia Social e Imaginário: leituras introdutórias. São Paulo: Zagodoni, 2012.

PESSINI, L. & BERTACHINI, L. Espiritualidade e cuidados paliativos. In: BERTACHINI, L. & PESSINI, L. (orgs.). Encanto e responsabilidade no cuidado da vida: lidando com desafios éticos em situações críticas e de final de vida. São Paulo: Paulinas: Centro Universitário São Camilo, 2011.

SOUZA, A. C. R. O direito ao luto sem pressa. 2016. Disponível em: <https://slowmedicine.com.br/o-direito-ao-luto-sem-pressa/> Acesso em: 02 nov 2016.

Depressões – Morte e Luto: uma abordagem mítico-simbólica. 2017. 234 f. Tese (doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017

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Ana Célia Rodrigues de Souza:

Sou médica psiquiatra, formada pela FMUSP em 1992, obtive meu mestrado em Ciências do Comportamento pelo ICB – USP em 1998 e o doutorado em Psicologia pelo IP-USP em 2017. Analista junguiana, uma apaixonada por orquídeas e jardins botânicos, “cinéfila” e leitora voraz, que como Jorge Luis Borges, pensa que o Paraíso deve ser uma espécie de Biblioteca. Buscadora, andarilha, caminhante, adoro viajar tanto para locais conhecidos – seguindo o conselho de Proust, com novos olhares para os mesmos lugares – como me aventurar por onde desconheço.

Obs: esse artigo baseia-se na minha tese de doutorado: Depressões – Morte e Luto: uma abordagem mítico-simbólica, defendida em maio de 2017, no IP-USP.

(a foto que ilustra o post é do site Pixabay)

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Otávio Vanni
Otávio Vanni
4 anos atrás

Sensacional.

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