Manaus e a tragédia anunciada

março 3, 2021
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Por Lívia Callegari

Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Para melhor construir a vida nova.”

(Beto Guedes)

Final de janeiro de 2020, algo começava a chamar a atenção, devido ao aumento do número de mortes por síndrome respiratória aguda grave. Imagens de dilacerar a alma passaram a se intensificar e circular pelo mundo. Era uma doença que se alastrava com velocidade preocupante e afetava, sobretudo, a população mais vulnerável, composta por idosos e pacientes que apresentavam alguma comorbidade. 

A época de festejos carnavalescos se avizinhava no Brasil. A fim de tentar barrar a disseminação do vírus de fisiopatologia não desvendada, alguns cientistas alertavam sobre a necessidade de alinhamento e adoção de medidas não farmacológicas, que incluíam comportamentos sociais, como distanciamento físico, e reforço na lavagem das mãos. Alguns países estavam seguindo esses parâmetros. Posteriormente, também foi ratificada pela OMS a pertinência sobre a utilização de máscara. No Brasil, o Ministério da Saúde instruía a publicação de uma lei sobre as medidas de enfrentamento. Naquele momento, cogitou-se o cancelamento do Carnaval, mas foi sopesado o grande prejuízo econômico que poderia ocorrer e, por esse motivo, acharam por bem manter a comemoração e o livre trânsito aéreo aos estrangeiros vindos de qualquer parte do mundo. Talvez este tenha sido o primeiro dos muitos momentos em que o ideal de uma Medicina Sóbria foi duramente afrontado em nosso país.

Nesse ínterim, acentuava-se o cenário assolador da maior crise sanitária do século.  Tanto na Ásia como na Europa, acompanhávamos profissionais da saúde sobrecarregados e totalmente perdidos sobre qual manejo mais adequado deveriam adotar aos pacientes. Um vírus de comportamento ignorado, sem medidas farmacológicas eficazes conhecidas, e tudo o que podiam fazer era adotar protocolos empíricos e melhorar as estratégias gerais de cuidados. Com o aumento exponencial de pacientes, houve falta de insumos e a própria prestabilidade do funcionamento dos sistemas de saúde colocados em questionamento. Agora era o ideal de uma Medicina Justa que estava sendo posto em cheque. Até que, finalmente, no dia 11 de março de 2020,  Tedros Adhanom – diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) –  elevou o estado da contaminação da doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) à “Pandemia de Covid-19”.

Apesar do negacionismo inconsequente gerado por grupo restrito de indivíduos (geralmente sem capacidade mínima de questionar algo mais robusto na área da saúde, em virtude do total desconhecimento de ciência biomédica), houve um grande esforço de equipes técnicas para esclarecer a realidade dos fatos à população que, por inúmeras vezes, era exposta à infodemia de conteúdo enganoso. As grandes lideranças, que deveriam se servir de meio para a disseminação de informações fundamentadas em pareceres científicos, apenas prestavam desserviços – o que ainda fazem – criavam narrativas inadequadas e repletas de achismos em plena situação de calamidade sanitária, influenciando negativamente a conduta da população. Enquanto isso, uma parcela mais esclarecida da sociedade – frise-se que essa parcela em nada se vincula a determinada classe social – apesar de ficar totalmente atônita com os despautérios emanados dessa restrita camada de indivíduos que estabeleciam a desordem, continuou bravamente com o trabalho de esclarecimento, a fim de tentar colocar termo a essa real balbúrdia instalada.  

Nessa profusão de acontecimentos, alguns setores mais lúcidos e atentos da sociedade demonstravam grande preocupação para o inevitável momento que o vírus adentraria no território nacional, e se questionava qual a nossa real capacidade de contê-lo. Isso porque, o contexto brasileiro aponta para inúmeras disparidades sociais, que acabaram por gerar acalorados debates bioéticos em torno da possível escassez absoluta de recursos, tomadas de decisões complexas que, invariavelmente, poderiam acontecer. Dentro da possibilidade casuística, minimamente preconizava-se que as decisões fossem éticas, sóbrias, respeitosas e o mais justas possíveis, diante de um cenário periclitante. Houve movimentação de algumas associações de especialidades para traçar recomendações e possíveis protocolos para lidar com as escolhas difíceis (e dolorosas). 1

Não é preciso esmiuçar aqui o fato de que nosso país convive desde seus primórdios com a desigualdade, a corrupção e a má gestão pública em saúde, mazelas que são ainda mais acentuadas pelo limitado letramento da população sobre essas questões. Fato é que, desde o início da propagação, por estar em condição geográfica privilegiada em relação aos acontecimentos mundiais, apesar dos descompassos citados, e pela  convicção de que em algum momento essa doença chegaria no território brasileiro devido ao grande trânsito internacional de passageiros (avolumado na época de carnaval), era possível antever os acontecimentos em virtude das repercussões em outros países, o que permitiria melhor preparação estratégica para proteger a população, o sistema de saúde e para evitar-se a escassez absoluta de recursos. Nesse sentido, de plano, instava-se traçar planos concretos para a contenção do vírus, que incluiria estruturação mais apropriada da assistência, redimensionamento e aumento do número de leitos, aquisição de EPIs, além de outros equipamentos e insumos fundamentais, e campanhas maciças de educação à população. 

Como houve dificuldade na aquisição de alguns insumos e equipamentos, os nossos pesquisadores prontamente entraram em ação, exercitaram a criatividade, e desenvolveram soluções tecnológicas mais baratas e totalmente eficazes para contornar essa complexa situação. Nesse diapasão, ficou exuberante o quão prejudicial é o desinvestimento em pesquisas e o fato de não termos um adequado Complexo Industrial da Saúde para haver produção mais independente de fármacos, dispositivos médicos para diagnóstico, reagentes, vacinas, materiais e equipamentos necessários. Isso nos prejudica sobremaneira e de há muito deveria ter sido colocado em pauta de destaque. Aliás, segundo estudo King´s College London, aponta-se que nos últimos anos na China e Índia houve solidificação e expansão da produção da área de biotecnologia, notadamente, no setor de inovação biomédica, pelo singelo fato de ter havido priorização de investimento. Obviamente, isso gerou importantes reflexos na produção mundial. Se a mesma estratégia fosse aplicada no Brasil, quem sabe não estaríamos em condição muito melhor? Não nos esqueçamos: o sequenciamento do genoma do vírus, foi liderado por um grupo de cientistas brasileiras.

E, por isso, relembremos que um país que consegue encontrar meios para destinar considerável numerário para a construção de estádios de futebol, e não hospitais ou emprego em pesquisa, deve ser repensado e reinventado desde os primórdios para desatar esse tão profundo nó nos valores éticos. Isso apenas comprova que o problema se arrasta e se agrava a cada gestão, não se isolando a apenas uma bandeira político, apesar da sempre tão politizada questão, no pior sentido do termo. 

Apesar de todo esse clamor, isso não foi suficiente para barrar a primeira onda catastrófica ocorrida em Manaus – região de alto trânsito de turistas – que começava a mostrar os primeiros sinais na segunda quinzena de março de 2020. Sucessivamente, foram aumentando os números de casos, e dessa eclosão houve o colapso do sistema. Houve destinação de recursos para melhor abastecer a localidade, mas desviado pela repulsiva prática de corrupção, manteve-se desguarnecida a estrutura do sistema de saúde de acordo com o altamente veiculado nos meios oficiais de imprensa e, por consequência, além dos pacientes, profissionais da saúde foram colocados em risco exacerbado e em limite absoluto. Faltaram leitos, diversos insumos, respiradores e sedativos, que acabou por levar elevado número de vidas. Inúmeros profissionais que atuavam linha de frente trabalhavam em condição de exaustão, claramente desenvolveram burnout. Valas comuns foram abertas para enterrar coletivamente os corpos dos pacientes falecidos pela doença. Por medida sanitária, não houve possibilidade de velório, e nem sequer os familiares não tiveram condições para despedida. Dessa traumática situação, lutos dificilmente serão fechados. Cenas que nunca sairão das nossas mentes! Tamanha dor desses desfechos desfavoráveis, que nada disso deveria ser esquecido. Assistimos, horrorizados, ao tratamento injusto, desrespeitoso e irresponsável dados aos amazonenses. Mas nossa dor mais aguda veio da naturalização de questões tão assustadoras, como se não pudessem ter sido evitadas. Podiam sim.

Apesar da situação sem precedentes, assistimos chocados aos discursos conspiratórios, informações inverídicas, posturas de descaso com a dor das pessoas (vindas das autoridades que deveriam protegê-las) e o desrespeito disseminado às mais básicas regras sanitárias. Tudo isso amarrado no mesmo pacote que empregou verbas públicas para supostos tratamentos precoces que, até hoje, não se provaram minimamente eficazes: mais um engodo para a população, utilizado como ferramenta para que profissionais de saúde desejosos de holofotes tivessem seus dias de fama. Mais um passo para longe da Medicina Sóbria, Respeitosa e Justa

Não bastasse isso, aos profissionais que sempre mantiveram coerência na conduta, passaram a ser ameaçados de judicialização para apurar responsabilização pela não prescrição do tal tratamento precoce. A argumentação é embasada com construções em teorias estapafúrdias transitam no mundo jurídico, relacionadas à eventual omissão de socorro, além da descabida invocação da teoria da perda de uma chance, caso não se opte pela prescrição ou indicação de um aventureiro tratamento que para nada serve. Sumariamente destaquem-se alguns tratamentos propostos: antibiótico para combater vírus; mata-piolho para combater vírus; antimalárico para combater o vírus; e, para não se alongar, fechando com chave de ouro, ozonioterapia por via retal. Enquanto isso, pela falta de direcionamento adequado com estratégia apurada, alinhamento entre os líderes maiores e órgãos técnicos, além de um nível de consciência minimamente empático, não parou de crescer o número de mortes e de pacientes sequelados pela doença.

Por esse motivo, um nicho irascível da população, pautado em infundados discursos de plena autonomia, pouco se importou com as regras de conduta sanitária. Como se não houvesse o dia de amanhã, continuaram a frequentar festas e aglomerações desnecessárias, contribuindo para a propagação do vírus e, quiçá, sem desenvolver a doença na forma grave. Possivelmente, nem sequer percebem quanto causam de dano. Aos bem intencionados e seguidores das cautelas propostas, em não raras situações, hostilidade. Segundo a psicoterapeuta Danit Pondé, essa tendência antissocial do indivíduo se manifesta através de um comportamento sem parâmetros morais ou empáticos, em detrimento da realidade da situação, por sentir-se prejudicado pelo ambiente. Em atitude infantil, não assumem os próprios erros e depositam tão somente na autoridade os desdobramentos, o controle e monitoramento da situação, sem a modulação autônoma parcialmente ativa na sustentação das próprias decisões.Por viver em sociedade, cabe a cada um ter responsabilidade, ser consciente do seu autocuidado e seguir as normas sanitárias, pois o interesse maior é o da coletividade.

Na infeliz atualidade, temos novamente a prospecção de um novo ciclo arrasador. Como da esperada evolução de um vírus, o SARS COV 2 se adaptou, sofreu mutação e as variantes potencializaram o grau de transmissibilidade e, por isso, ocorre a propagação de maneira cada vez mais eficiente. Ainda não temos resposta para tudo e por qual motivo esse vírus se manifesta de formas diferenciadas em cada indivíduo. Talvez, com o tempo, haja alguma resposta da genética.

Do choque inicial ocorrido no começo da pandemia, ao que parece, nada (ou muito pouco) foi introjetado. A situação de caos volta a se repetir em grau de sofrimento acentuado. Na região considerada pulmão do mundo, os pacientes morrem asfixiados por falta de suprimento de oxigênio, quando não conseguem transferência para outros Estados, na tentativa de receberem cuidados a fim de resguardarem as suas vidas.

A solidariedade dos brasileiros, mais uma vez, se fez presente nas doações e iniciativas para aplacar o sofrimento no norte do país, mas toda a solidariedade possível é muito pouco para a intensa agonia dessas pessoas. Concretiza-se então, como consequência da falta de recursos e da inoperabilidade de gestão, verdadeira mistanásia, segundo a qual o paciente é vítima de uma morte precoce, miserável e evitável. Então, para minorar o desconforto respiratório, quando possível, recorre-se à sedação paliativa como medida hercúlea de trazer algum alívio diante da falta de recursos. Não se trata de uma estratégia oriunda do sentido puro da filosofia dos Cuidados Paliativos, mas uma adaptação que visa um pouco de humanidade a uma circunstância que jamais deveria acontecer.

 Consolida-se a perda de uma história de vida, que apenas não se pôde investir no paciente pelo resultado da falta de destinação adequada de dinheiro para guarnecer o serviço. Por isso, jamais deve ser vista como falha médica, mas, sim, como a perda de uma chance por inequívoca falha do sistema. Um trágico capítulo, não tão novo, a ser redigido sob a luz da Bioética e das repercussões jurídicas de um sistema que não atende o mínimo das expectativas, por inadequada administração. Esse é apenas um recorte da tendência do que correrá nos próximos dias se nada for reformulado. Resta claro também que as vacinas, por enquanto, não serão suficientes para barrar o aumento exponencial da propagação do vírus caso não sejam aliadas a outras medidas.

O Brasil poderia ter sido espelho para o mundo por ter o desenho de um dos melhores sistemas de saúde, mas que por essas ingerências, mais uma vez foi colocado em descrédito. Descrédito esse que também abala o perfil de confiança do país e, consequentemente, traz abalo na economia por falta de investimento externo.

A dignidade da pessoa humana, preceito fundamental da República Federativa do Brasil, jamais deveria ser maculada. Deveria se a mola propulsora para o estabelecimento da qualidade de vida em sociedade e não um inserto de ficção, meramente redigido na Constituição Federal.

Nesse sentido, como tentativa de resgate de uma sociedade tão aniquilada, filosofia que preconiza a Slow Medicine vislumbra para além de um olhar individualizado ao paciente, mas também visa a analisar o aspecto amplo que engloba a sua segurança. Por esse motivo, desenvolve pensamento crítico sobre as peculiaridades do sistema, que também pode afetar o modo de atuar do profissional. Com isso, atrelados aos princípios da iniciativa, aliado às reflexões trazidas pelo pensamento bioético, pretende atingir o sistema e os indivíduos. Portanto, para qualquer situação, enfatiza que a ciência deve ser o método e a conduta deve ser a escuta e a retidão, mesmo em um mundo que só quer certeza em um momento repleto de dúvidas.

Ao final disso, certamente, dessa inacreditável e dolorida época, qualquer historiador terá muita dificuldade em retratar.

  1. https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/24/Protocolo_AMIB_de_alocacao_de_recursos_em_esgotamento_durante_a_pandemia_por_COVID-19.pdf
  2. https://www.kcl.ac.uk/sspp/departments/politicaleconomy/research/current-research-projects/rising-powers/rising-powers-II/rising-powers?fbclid=IwAR2EmAcL5b9zsmN6iv3BdlTzcC9Ygq_y6VSjWJQhErZps9S0OX7xZI2Fhoc  
  3. https://offlattes.com/archives/2583

Lívia Abigail Callegari, nascida  em São Paulo. Advogada inscrita no Brasil e em Portugal, atua na área do Direito Médico. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Atualmente é pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Ama estudar e transmitir o que aprende. Gosta de viajar e tomar contato com outras culturas. É apaixonada por artes em geral e livros, mas encontra na arte marcial e na dança o seu verdadeiro meio para a reconexão. Só faltou falar que ama felinos….

Lívia Abigail Callegari: Sou advogada inscrita no Brasil e em Portugal, com atuação na área do Direito Médico. Fiz especialização em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP. Sou pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Sempre busco reavaliar os meus valores e tomar contato com outras perspectivas. Gosto de viajar e tomar contato com outras culturas e filosofias de vida. Tenho como base a minha família, amigos, livros e artes. Aprecio o cair da tarde. Gosto do silêncio da noite, pela inspiração e a reconexão que me proporciona.

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