Maternidade slow

julho 10, 2023
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Por Jaqueline Doring

“A maternidade tem um efeito muito humanizador. Tudo fica reduzido ao essencial.” (Meryl Streep)

Não é necessário ser mãe ou pai para adquirir certas habilidades, mas confesso que essa experiência abre muitas portas da percepção para algo que, de outra forma, talvez exigisse mais tempo para se compreender. Parece ser uma desafiadora jornada – não que eu não seja romântica, pois há uma beleza própria que está além de qualquer dificuldade – que requer muitos ajustes e transformações. Vejo-a como um encontro com nossas partes ocultas, constituindo nossa decisão de fazê-lo com o espírito aberto ou com todo o poder de nossa negação. Por isso, considero o puerpério como um casulo, onde mergulhamos na nossa sombra – reconhecendo e nomeando o que acontece conosco – e liberamos esses sentimentos reprimidos. Esse movimento acontece para que o bebê não seja o reflexo espelhado de nossas emoções. Além disso, o retorno ao trabalho é ressignificado, quando não totalmente renovado. Afinal, não somos mais os mesmos e, de certa forma, isso nos dá um alívio.

Um dos fatores psicológicos que mais dificultam a adaptação após a chegada do bebê é o medo. O principal deles, o medo do fracasso, seja ele na grandeza que for, nos paralisa e nos leva à procrastinação. Para vencê-lo, há que se colocar uma dose de esforço, de continuidade e de perseverança. A energia do entusiasmo precisa ser alimentada com motivações interiores que não dependam dos outros. Aprendemos isso a duras penas, e aquela velha desculpa de não ter tempo vai ficando de lado quando percebemos o quanto, sim, podemos fazer. 

Não necessitamos nem de muito, nem de pouco, mas do justo tempo. “Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira” – e quantas vezes usamos desculpas para justificar nossa falta de comprometimento refletida na pouca vontade? Precisamos tirar o véu da inação e fazer. Estava falando do puerpério, não é mesmo? Porém, na verdade, isso se enquadra em qualquer fase da vida. A maternidade só nos mostra que temos muito mais potência do que imaginamos. Todos podemos gestar – sejam ideias, livros, teses, obras de arte, novos empreendimentos… Estes são como um filho que vem para a vida. O que aprendi? A entregar-me e deixar nascer. Gastamos muita energia atrapalhando nossos sonhos…

Agora, se tivesse que escolher um ponto chave dessa experiência de maternar, eu diria cortesia. É profundamente rico depararmo-nos com a gentileza das pessoas, em grande maioria, daquelas que já são pais, talvez pela empatia em questão. O fato é que, por se tratar de um momento de alta vulnerabilidade, em que na maior parte das vezes uma ajuda seria bem-vinda, uma demonstração de cuidado, um sorriso, um abraço, um “deixe que eu levo suas compras”, ganham uma proporção muito maior nas nossas vidas. É ali que nos deixamos tocar, que sentimos verdadeiramente quem está diante de nós. E, se estivermos realmente entregues ao momento, é quase como sentir o aroma verde da terra na natureza viva do outro. 

São esses pequenos encontros de cortesia, que por trás e sem peso carregam um amor genuíno, que considero como o delicado motor da slow medicine. Afinal, sem essa clareza de espírito diante da nossa profissão, podemos perder o sentido e a finalidade dessa arte milenar que tanto nos é cara. E é aí que a SM entra com o resgate primordial da natureza que nos é própria e nos relembra de quem somos quando, em meio a um falido sistema, nos esquecemos. Se estivermos cientes dessa premissa básica, dificilmente esqueceremos os princípios da filosofia slow na prática assistencial: ter tempo, individualizar as condutas, atentar para os valores e expectativas dos pacientes, ter um conceito positivo de saúde, ter foco na qualidade de vida e nas prevenções, estar em uma busca incessante pela humanização nos cuidados à saúde e atentar para o uso parcimonioso da tecnologia. 

Verifico também que há uma solidão habitual em que as mães estão e uma falta de espaço para falar sobre seus bebês, o que, muitas vezes, as leva a esperar com ansiedade pela consulta pediátrica, quando supõem que poderão se acalmar quanto às suas dúvidas e inquietações – poucas vezes, encontrando as respostas esperadas. Transpondo-se isso para outras especialidades – pois o espaço médico é protetor –, tem-se o vínculo, seja com o bebê e com seus pais, seja com o paciente adulto, por meio da doença. Muitos vão ao médico para buscar palavras esclarecedoras e complacentes. Dizendo mais claramente: na falta de espaços de cura onde possa se encontrar, a pessoa transforma o consultório em um lugar de encontro, e, quando a criança, quando o adulto adoece, há um lugar para pedir proteção. É um lugar de abrigo para aquela mãe, para aquela pessoa, de onde ela sai amparada por um diagnóstico ou pelo nome de um medicamento. Porém, é um equívoco; não deveríamos nos conformar, ou nos confortar, com um diagnóstico, e sim, a partir dele, buscar a causa profunda que o gerou. Além do mais, isso evidencia a nossa cultura de colocar o protagonismo do cuidado no médico e de vitimizar o paciente. Esse processo fica muito à mostra na ênfase em um tratamento medicamentoso, em detrimento de mudanças no estilo de vida. 

Quase ninguém se surpreende que, desde a infância, aprendemos a conduzir o nosso corpo físico, mas muito raramente se educa a psique. Crescemos e tornamo-nos adultos que não sabem lidar com suas emoções. Por isso, fala-se muito em biografia humana, o que entendo como primordial no processo de saúde de uma pessoa. Educadores dizem que chegamos ao mundo sedentos por afeto, acolhimento, cuidado e atenção. Tendo essas necessidades supridas ou não, passamos por uma infância assistida a partir da perspectiva dos adultos. A biografia humana seria uma ferramenta do indivíduo para pensar intimamente sobre suas condições emocionais, mediante o olhar da criança que foi no passado.

Portanto, um profissional da saúde preocupado com os princípios mantenedores de uma boa medicina está alinhado com a filosofia slow medicine. Isso significa que se sentirá como parte do legado milenar de Esculápio, que estará a serviço das pessoas pelo desenvolvimento de suas habilidades e virtudes e, por fim, que resgatará o significado da palavra terapêutica, trazendo o verdadeiro sentido do encontro clínico.  Pacificadas as emoções, concluo que mergulhar na natureza da criança nos faz entender que, além das “birras”, existe uma necessidade não atendida; que, além de estar educando um bebê, estamos educando a nós mesmos antes, o tempo todo. Ser mãe coloca nossa alma feminina a serviço da procura genuína do que realmente importa – e será que a criança que há dentro de nós está satisfeita com o adulto que somos? Em tempos de cegueira coletiva, não basta apenas buscar ver o mundo com os olhos do outro e, assim, entender como ele gostaria de ser tratado. Faz-se essencial procurar ver o mundo com nossos próprios olhos.

Foto: arquivo pessoal da autora


Jaqueline Doring Rodrigues: Além de mãe da Luísa, sou médica geriatra e especialista em Cuidados Paliativos, graduada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo ( UPF) em 2011. Trabalho no atendimento domiciliar do serviço de Cuidados Paliativos do Hospital Oncológico Erasto Gaertner, em Curitiba/PR, atendo em consultório privado como Geriatra e em assistência domiciliar. Sou Membro e Secretária da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores ( Sobrames), regional Paraná. A Geriatria é para mim uma forma de resgatar a beleza das curvas do tempo ressignificando o envelhecimento e proporcionando um cuidado digno em todas as fases da vida. Encantada pelas pessoas e suas histórias, encontro na escrita e na filosofia um caminho para o desenvolvimento das potencialidades humanas. Assim, aspiro cumprir as três funções que a natureza destinou aos homens: valores, virtudes e sabedoria.

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Pessanha
Pessanha
1 ano atrás

Texto lindo, Jaqueline. Muito sentimento envolvido.

Viva a Luísa…

Maria Teresa de Campos Velho
Maria Teresa de Campos Velho
1 ano atrás

Belo texto! A geriatra falando do início da vida! Está maternando? Despertando para o encontro de outro ser, outra personalidade com a qual precisa aprender a conviver?
Fui obstetra durante 30 anos! Achei importante a chamada de atenção sobre o puerperio! Considero, um dos períodos de vida da mulher sadia, como dos mais difíceis! Basta ouvi-las depois! Urge, de certa forma, preparar a modular a grande idealização do período! Ele vem, para a mulher e o casal, com inseguranças, cansaço importante, restrição de sono, alterações de humor relevantes pelas novas experiências e pelas trocas hormonais. Uma mistura robusta de mudanças físicas rápidas e psicológicas! A melancolia, o medo, as incertezas, o luto pelo corpo feminino anterior, as dores cirúrgicas e do amamentar, no início! Dói o que se fala só sobre ser prazeroso….momento único e íntimo! Assim, precisamos ouvir e conversar. Dialogar, esclarecer, preparar. Dói desidealizar o imaginário lindo idealizado! Buscar e alertar o papel do parceiro! Assim, muita mas muita slowmedicine, nessa etapa da vida, deve ser praticada e valorizada pelos profissionais aos ouvir as mamães! Quanto auxilia, tranquiliza e, verdade, desculpabiliza a puerpera e/ou casal nessa fase!

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