Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica
por Sylvia Mello Silva Baptista:
Talvez o leitor não tenha ouvido falar em Peter Gotzsche. Ainda. Ele é dinamarquês, nascido em 1949, médico, mestre em biologia e química trabalhou com ensaios clínicos e assuntos regulatórios na indústria farmacêutica, em hospitais, foi co-fundador da Colaboração Cochrane e fundou o The Nordic Cochrane Centre em 1993. Publicou vários livros como Rational diagnosis and treatment: evidence-based clinical decision-making (2007), Mammography screening: truth, lies and controversy(2012), Deadly medicines and organised crime: how big pharma has corrupted healthcare(2013)-cuja versão em português iremos nos debruçar aqui-, e Deadly psychiatry and Organised Denial (2015). Tornou-se professor de Delineamento e Análise de Pesquisa Clínica em 2010 na University of Copenhagen e é editor no Cochrane Methodology Review Group. Esses dados todos estão na apresentação de “Medicamentos Mortais e Crime Organizado – como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica”, e na Web, bem como a informação de que sua área de interesse é a estatística e a metodologia de pesquisa. E ele não faz por menos. Todo o livro aqui resenhado está dedicado a denunciar, de maneira embasada, a indústria farmacêutica e acordar as pessoas para a possível letalidade dos medicamentos nas mais diversas áreas da medicina, cujos interesses mascarados ganham mais e mais terreno no mundo doente dos dias de hoje.
Entendemos como normal e corriqueiro algo que deveria ser encarado como patológico e patogênico. Um mundo de cabeça para baixo. Gotzsche é muito enfático: frequentemente o que mata não é a doença e sim os remédios e seus efeitos colaterais. Já na introdução , ele faz uma comparação bombástica que nos coloca a pensar: existem duas epidemias que o homem produziu e que matam terrivelmente – o tabaco e os medicamentos sob prescrição. Veja bem, caro leitor, as 300 páginas que se seguem a esta afirmação trazem fatos probatórios que compõem inúmeras pesquisas através das quais o autor se faz convincente e dá nome a todos os bois. E nesta singela comparação já está descrito o que ele vem gritar a todos nós. Se hoje é certo e cristalino que o tabaco é uma droga mortal e o mundo todo se uniu para combatê-la – certamente movido pelo capital que viu que era mais custoso o tratamento dos doentes do tabaco do que a prevenção do vício -, os medicamentos não ficam atrás.
A sutileza de trazer ao lado do substantivo “medicamentos” a expressão “sob prescrição” não é gratuita. Por trás desse detalhe encontra-se nada menos que a comunidade médica, ou seja, a ponte entre a indústria que produz os remédios e o “doente”. Isso fará com que muitos médicos fechem imediatamente o livro já no primeiro parágrafo, pois o que vem em seguida é osso duro de roer, com, digamos, me perdoem o trocadilho, efeitos colaterais nada agradáveis como náusea, dores de cabeça e vertigem. A comunidade médica será chamada a se olhar no espelho e ver o seu lado feio, deformado, podre, que compactua com um sistema manipulador cujo interesse é predominantemente financeiro. A saúde, a pessoa, o bem viver ou o bem morrer são excluídos desse quadro onde todos somos vítimas – alguns com consciência do papel de cúmplices, ou mesmo algozes, o que os fazem “mercadores da morte”(sic). Seria um exagero falar assim tão cruamente dessas mazelas? Dou a palavra ao autor:
Neste livro, descreverei como as empresas farmacêuticas deliberadamente esconderam os danos letais de seus medicamentos por meio de comportamento fraudulento tanto na pesquisa como no marketing e por negação da empresa quando confrontada com os fatos (p.1).
Daí em diante, se você der ouvidos à sua curiosidade, aperte o cinto e mergulhe como se começasse uma leitura de um thriller. Gotzsche inicia lembrando do avô, clínico geral, cuja vida acompanhou de perto com admiração, a ponto de inspirá-lo a tornar-se também médico; mas além disso, o viu sofrer por dois anos num hospital com uma fratura que não se consolidava por ter acreditado que a ingestão de corticoesteroides por muito tempo o faria mais forte e resistente. O jovem neto já começava a colecionar ali histórias desastrosas com remédios, incentivadas por um marketing enganoso que fomentava – como ainda o faz – a solução rápida, para não dizer, milagrosa. Sartre, Camus, Kierkegaard e Arthur Miller são alguns nomes que Gotzsche elencou como luzes em anos de observação e experiência no seu árido caminho, o qual o levou a fazer afirmações impactantes de forma tão categórica.
O livro traz capítulos com títulos instigantes que prometem revelações e cumprem o dito. Depois de “Confissões de um informante” cujos subtítulos são “As mortes por asma foram causadas por inaladores para asma” e “Marketing e pesquisas duvidosas”, segue o capítulo “Crime organizado, o modelo de negócios das grandes empresas farmacêuticas” onde o autor tem coisas incríveis a dizer de várias empresas farmacêuticas, conhecidas pela expressão em língua inglesa como BigPharma: Hoffman-La Roche, Pfizer, Novartis, Sanofi-Aventis, GlaxoSmithKline, AstraZeneca, Roche, Johnson & Johnson, Merck, Eli Lilly, Abbott. Ninguém escapa. As referências bibliográficas ocupam pelo menos duas páginas no final de cada capítulo, dando sustentação a cada assertiva. Caracterizando a cumplicidade de alguns médicos na prática pouco ética da prescrição de medicamentos desnecessários em vista de benefícios particularmente para quem assina a receita, como viagens, estadias em hotéis luxuosos, jantares e presentes caros, lembra que o “único padrão da indústria é o dinheiro”.
Algumas pessoas egressas das empresas de medicamentos se tornam delatoras – pagando um alto preço numa luta contra gigantes – e confirmam aquilo que muitas vezes é escondido e tornado inacessível por uma infinidade de dificuldades plantadas para que as mentiras não se revelem.
Quando um crime levou à morte milhares de pessoas, devemos encará-lo como um crime contra a humanidade. Não deve fazer diferença para nossa percepção de delito se foram mortos por armas ou por comprimidos (p.36).
A essa afirmação se soma a de que todos os medicamentos podem causar danos e muitos tem eficácia modesta ou duvidosa. Pesquisa vira marketing, professores viram promotores, acadêmicos viram autores-fantasmas nessa suspeita seara. Gotzsche possui um senso de humor que se traduz em sarcasmo e ironia astuta, donde se pode sentir transbordar sua ira, decepção e indignação, como na colocação que transcrevo abaixo sobre como deveriam ser os termos de consentimento assinado por pacientes para participarem de ensaios:
Concordo em participar desse ensaio, que eu compreendo que não tem nenhum valor científico, mas que será útil para a empresa no marketing de seu medicamento. Também compreendo que, se os resultados não satisfizerem a empresa, eles podem ser manipulados e distorcidos até que satisfaçam a ela e que, se isso também falhar, os resultados podem ser enterrados para que ninguém fora da empresa os veja. Finalmente, compreendo e aceito que, caso haja muitos danos sérios pelo medicamento, eles não serão publicados ou serão chamadas de algo diferente para não levantar preocupações nos pacientes nem diminuir as vendas da empresa farmacêutica (p. 59).
Ao lado disso, os periódicos que divulgam as pesquisas, com poucas exceções segundo o autor, contribuem para a corrupção da ciência médica. É todo um sistema contaminado pelo dinheiro fácil. A pergunta que lança é incômoda: “O que milhares de médicos fazem na folha de pagamento da indústria?” Mais incômodo ainda é um exemplo que destaca sobre ensaios com medicamentos em países pobres e com corrupção disseminada:
(…)pesquisadores no Alabama acompanharam 399 homens negros infectados com sífilis sem tratá-los durante 40 anos para estudar o curso natural da doença enquanto os impediam de acessar programas de tratamento disponíveis a outros e enquanto muitos morriam de sífilis, contaminavam suas esposas, de modo que seus filhos nasciam com sífilis congênita.(p.119)
Sentiu, prezado leitor, a náusea anunciada logo acima? Isso não é ficção. Quando entra nos capítulos dedicados à psiquiatria, as coisas pioram e muito! A psiquiatria substituiu o cuidado por comprimidos, diz.(p.187) Tudo vira doença num movimento perverso que não poupa nem mesmo crianças. Medicaliza-se a normalidade e propaga-se a grave mentira sobre o desequilíbrio químico, além de calar-se sobre as síndromes de abstinência, nomeando-as como sintomas de descontinuação.
Não podemos confiar nem um pouco em ensaios realizados pela indústria, e a razão é simples. Não confiamos em uma pessoa que mente para nós com frequência, mesmo que essa pessoa possa dizer a verdade às vezes. A indústria traiu nossa confiança e tem um conflito de interesse enorme. (…) Permitir que a indústria realize ensaios de seu próprio medicamento é como permitir que eu seja meu próprio juiz em um julgamento. (p.255)
Gotzsche propõe uma mudança cultural onde os ensaios clínicos sejam um empreendimento público, feitos para o bem público e executados por instituições acadêmicas independentes. E segue pensando soluções possíveis a essa alarmante situação em que nos encontramos, muitas vezes de forma assustadoramente inconsciente.
O que este livro pode nos acrescentar em termos de reflexão sobre a Medicina sem pressa? Muito. Se nós, profissionais da saúde, estamos nos dispondo a repensar a forma como as práticas médicas têm se dado, e a Slow Medicine vem de encontro a esse anseio, com propostas de novas perspectivas de trabalho com a saúde, com a prevenção, com o respeito à pessoa, com a saída dos rótulos conceituais que distanciam médico e paciente, enfim, se de fato levamos à sério uma transformação de paradigma, Peter Gotzsche com seus alertas e dados de como ficamos reféns de uma indústria perversa tem bastante a nos ensinar! Ouso dizer que é preciso fazer chegar essas ideias àqueles que estão ingressando na clínica médica e que precisam ter um olhar crítico ao universo que adentram. Universitários e residentes em medicina, farmácia, psiquiatria, professores, acadêmicos, pesquisadores, profissionais da saúde, e, claro, cidadãos devem ter contato com discussões que incluam valores que têm ficado soterrados por sobrediagnósticos, medicações excessivas, crenças cegas na tecnologia como panaceia salvadora, curas rápidas e milagrosas, para citar apenas algumas das situações que enfrentamos.
Gotzsche presta um papel importantíssimo a todos que desejam ser conscientes em relação ao que consomem e como se cuidam, e seu livro é leitura obrigatória e urgente! Já termos suas palavras traduzidas para o português é um luxo e uma oportunidade. Leia, discuta, debata, recomende. Finalizo com mais uma frase provocadora do autor:
“Se você não necessita de um medicamento, então não o use. Raras vezes precisamos deles.” (p.250).
Peter Gotzsche, Porto Alegre: Bookman, 2016.
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Sylvia Mello Silva Baptista formou-se em Psicologia pela PUC-SP. É analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, professora de cursos abertos e de formação da SBPA, coordenadora do MiPA, Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica da Clínica da SBPA. Como escritora, publicou “Maternidade e Profissão: Oportunidades de Desenvolvimento”, “Arquétipo do Caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas”, “Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas” e “Ulisses, o herói da astúcia”, todos editados pela Editora Casa do Psicólogo.
Lançou seu primeiro romance – “Segunda Pedra” – em novembro de 2012 pelo selo Edith.
Email: [email protected]
Já sabia dos brindes dados aos médicos para receitar medicamentos isso só veio confirmar o que já sabia.