Medicina demais na pandemia

julho 13, 2020
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Por Marco Bobbio:

Em um período em que cresce a preocupação com a pandemia, com o risco de sermos infectados e de eventualmente sermos internados em uma unidade de terapia intensiva, necessitando de suporte respiratório, observamos que as pessoas pedem mais remédios, mais testes, mais exames, mais hospitais, mais terapias intensivas. No entanto, mesmo nesse cenário de decisões dramáticas e frequentemente urgentes, medicina demais pode ser desnecessária ou prejudicial.

Início da pandemia

Na Itália, o primeiro caso de coronavírus foi confirmado em 21 de fevereiro. Nos dias seguintes ocorreu uma explosão de casos, especialmente na região da Lombardia. Naqueles dias dramáticos, a preocupação se espalhou pelo norte da Itália e milhares de pessoas chamaram seus médicos para descrever sintomas que os preocupavam e para saber o que fazer: ficar em casa ou correr para a o pronto socorro? Naqueles dias, eu acompanhei os acontecimentos de uma família inteira, e mantive contatos com eles nos meses seguintes.

Uma família durante a pandemia

Na mesma casa com jardim moram dois cônjuges idosos (ambos com setenta anos) e a filha com o marido e duas meninas. Em 10 de março, o pai idoso ficou acamado, com febre, com duração de apenas um dia (máximo de 37,4°C) e, devido a um esgotamento físico incomum, colocou-se em completo isolamento. Em 13 de março, a filha apresentou febre (máximo de 37,5°C) e dor de garganta. Ela também entrou em isolamento, continuando a amamentar a menina recém-nascida. Os demais não apresentaram nenhum tipo de problemas clínicos. Na semana seguinte, a filha iniciou a apresentar anosmia completa, que se manteria por 40 dias; ela começou a sentir o cheiro paulatinamente após dois meses. Os dois pacientes foram tratados com paracetamol, eles não precisaram de exames ou outras terapias porque os sintomas desaparecem em alguns dias. Ninguém se lembra de ter tido contato direto ou indireto com pessoas provenientes de áreas com alta disseminação de coronavírus nem ter tido contato com pessoas doentes.

Conclusão clínica

A partir da avaliação da sucessão de eventos, pode-se deduzir que se tratava de um caso de gripe ou síndrome do resfriado (influenza-like illness, doença semelhante à gripe, conforme definida pelos anglo-saxões). Considerando que em um período epidêmico o vírus mais agressivo tende a se sobressair, quando comparado com todos os outros, os dois episódios devem ser atribuídos ao COVID-19. Anosmia, um sintoma geralmente raro, tem sido encontrado com frequência, especialmente em jovens, durante a pandemia de SARS-CoV-2, para a qual é atualmente considerado um sinal característico e específico. Com base nos dados disponíveis até o momento, a hipótese mais provável é que pai e filha apresentavam uma forma leve de COVID-19 e todos os outros tiveram a infecção por COVID-19 de forma assintomática ou não foram infectados pelo vírus. O pai deve ser considerado o indivíduo que primeiro contraiu o vírus, desenvolveu a doença e passou para a filha.

Três meses depois

Os meses passaram sem que ocorressem problemas de saúde no núcleo familiar. Quando as restrições foram reduzidas no final de maio, todos começaram a fazer longas caminhadas e passeios de bicicleta pelas colinas circundantes, sem qualquer limitação devido ao cansaço, falta de ar, febre. A filha expressou seu desejo de realizar testes sorológicos para saber se ela havia sido infectada pelo SARS-CoV-2. Pediram-me uma opinião; não recomendei a realização do teste, pois um resultado positivo não acrescentaria nada ao diagnóstico já apoiado clinicamente. Além disso, até onde sabemos hoje, aqueles que testam positivo não podem ser considerados protegidos contra a reinfecção, porque não há evidências de que a presença de anticorpos garanta imunidade. Por outro lado, um resultado negativo suscitaria mais problemas: é um resultado “verdadeiro negativo”, ou seja, os dois episódios febris foram causados por outro vírus, ou um “falso negativo”? O teste realizado não é confiável? Ocorreu um erro na execução do teste? A febre e a perda do olfato foram devidas a algum outro vírus? A infecção foi leve e não produziu uma quantidade de anticorpos detectáveis a partir do teste? O teste foi realizado antes da produção dos anticorpos ou tarde demais, quando já haviam diminuído? Independentemente do resultado ser positivo ou negativo, o comportamento do núcleo familiar ainda deveria ser o mesmo: sempre use a máscara ao sair, lave bem as mãos ao voltar para casa, mantenha uma distância de pelo menos um metro das pessoas que você conhece, mesmo amigos e parentes.

Muitos testes diagnósticos

No entanto, a filha decide se submeter ao teste sorológico para “tirar a dúvida”.

– 1 teste sorológico –

O relatório é positivo para a presença de IgG específica, mas não de IgM: isso significa que no passado a pessoa entrou em contato com a SARS-CoV-2, que resultou na produção anticorpos específicos. Nesse ponto, dada a constatação de uma infecção anterior, o médico exigiu que todos os demais fossem submetidos ao swab nasofaríngeo para excluir a presença ativa do vírus.

– 6 swabs nasofaríngeos –

Somente o pai resultou positivo e foi colocado em isolamento obrigatório (sair de casa envolveria sentença penal e pecuniária) até a execução de dois swabs negativos consecutivos.

– 1 pessoa em isolamento –

– 2 swabs nasofaríngeos –

A empregada doméstica, que nos dias anteriores tinha ido trabalhar, apesar de sempre usar a máscara e manter as distâncias de segurança, foi colocada em isolamento por precaução pelo médico e submetida a um controle, resultado negativo.

– 1 pessoa em isolamento –

– 1 swab nasofaríngeo –

E mais, precisou entrar em contato com dois amigos dos cônjuges idosos que foram visitá-los. Embora as distâncias de segurança tivessem sido mantidas e todos sempre tivessem usado a máscara, considerando que entraram em contato com uma pessoa positiva, eles foram colocados em isolamento e submetidos ao swab,  que resultou negativo.

– 2 pessoas isoladas –

– 2 swabs nasofaríngeos –

Os outros dois adultos também foram submetidos a testes sorológicos, que deram resultado negativo para ambos.

– 2 testes sorológicos –

Ao final deste processo, podemos concluir que um teste sorológico realizado pela filha resultou em

4 pessoas em isolamento obrigatório,

11 swabs nasofaríngeos,

mais 2 testes sorológicos,

sem acrescentar nada à explicação dos dois episódios febris no início de março. Após todos esses testes, sabemos o que era conhecido três meses antes, com base apenas em dados clínicos: os sintomas da gripe acusados pelo pai e pela filha foram causados pelo COVID; os outros adultos não entraram em contato com SARS-CoV-2 ou desenvolveram uma resposta de anticorpos indetectável.

Conclusões

Nesse caso, um teste solicitado sem indicação clínica eficaz induziu outros testes, levantou preocupações, usou recursos valiosos do SSN (Sistema Sanitário Nacional, o “SUS” da Itália), resultou em horas usadas e investimento para marcação, realização dos exames, avaliação dos mesmos e retirada dos laudos, bem como forçou quatro pessoas a permanecer confinadas em casa, perdendo horas de trabalho e  oportunidades de ganho.

Slow Medicine não significa abster-se de intervir em caso de necessidade ou adiar medidas urgentes, mas saber raciocinar sobre as informações disponíveis para escolher a estratégia mais eficaz, evitando prescrever testes que, em vez de fornecer informações que realmente colaborem no cuidado, não acrescentam informações úteis, mas podem induzir outras investigações e preocupações excessivas.

Bibliografia Consultada:

・Lechien JR, Barillari MR, Jouffe L, Saussez S. Anosmia is a key symptom of COVID-19 infection and should be used as a diagnostic tool  .Ear  Nose Throat J 2020; 145561320925191. doi:10.1177/0145561320925191

・Chiarella G, Pizzonato R, Malanga D, Pisani D, Abenavoli L, Viola P. Prevention of COVID-19 infection in the medical population: a possible help from anosmia? Rev Recent Clin Trials 2020; 10.2174/1574887115666200603152637. doi:10.2174/1574887115666200603152637

・Ganguli I, Lupo C, Mainor AJ. Prevalence and cost of care cascades after low-value preoperative electrocardiogram for cataract surgery in fee-for service Medicare beneficiaries. JAMA Intern Med 2019; 179: 1211-1219. doi:10.1001/jamainternmed.2019.1739

 

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Mauricio Aragão
Mauricio Aragão
4 anos atrás

Análise perfeita. Estou de acordo.
Parabéns!

Ladd Bauer
Ladd Bauer
4 anos atrás

This is an outstanding practical article on Covid and Slow Medicine. Thank you, Dr. Bobbio.

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