O Clube dos Duffers: a arte de promover encontros sem pressa

fevereiro 22, 2017
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Por Carla Rosane Ouriques Couto:

Há uma tendência das coisas vivas se unirem, a estabelecerem vínculos, a viverem umas dentro das outras, a retornarem a arranjos anteriores, a coexistirem enquanto é possível. Este é o caminho do mundo.” Lewis Thomas. 

A partir da observação sensível do sofrimento psíquico de pacientes idosos, especialmente quanto a falta de objetivos e direção em suas vidas, o autor David Loxterkamp, médico de família, organiza em sua clínica um grupo de mútua-ajuda para idosos com problemas comuns. Os sentimentos e observações do autor, na convivência com o grupo, que podem ser encontrados em seu artigo The Old Duffer’s Club, publicado na revista Anals of Familiy Medicine em 2009, o fazem refletir sobre quanto as atividades ditas preventivas na prática clinica habitual, são ineficazes ou até mesmo passíveis de provocar sofrimento nos idosos, que percebem como suas maiores demandas de cuidado outros aspectos de suas vidas, como orientação para o futuro, escolhas sobre onde e como morar, dificuldades na rotina diária, perda de autonomia e de familiares, além de distanciamento dos amigos.

Os relatos das conversas no grupo deixam claro que idosos precisam ser ouvidos, apoiados, por médicos e especialmente pelos outros idosos, em suas dificuldades pessoais e sociais, e isto pode ser mais importante que uma bateria de exames de rastreio.

O convívio entre idosos e o compartilhamento de suas dificuldades, motivam mudanças de hábitos, desfocam o olhar de cada idoso de seus próprios problemas, para vivências inspiradoras expressas pelo grupo. As decisões para mudanças positivas podem então ser concretizadas, ainda que pequenas aos nossos olhos.

O Dr. Loxterkamp extrai de sua experiência com o Clube dos Duffers algumas recomendações, como individualizar e selecionar o rastreio aceitável, justo e digno para cada idoso, a partir de protocolos coletivos; conhecer as condições de vida, mobilidade, sono, segurança e alimentação de cada idoso, ouvindo e envolvendo a família, mas priorizando o desejo e a capacidade de autonomia, ainda que reduzida, de cada idoso; ampliar a atuação no espaço domiciliar, prestar atenção às atividades diárias que concedem significado e sentido ao seu cotidiano: alimentação, higiene, lazer, mobilidade, compras, idas ao banco.

Para um idoso pode ser muito doloroso o momento em que um filho ou cuidador lhe toma a chave do carro e o cartão do banco. Porém se este ainda puder realizar pequenas tarefas em casa, como retirar o lixo, lavar a louça, levar o cão a passear, ou ainda puder usufruir de atividades de lazer com os amigos, pode assimilar e compreender com menor sofrimento as suas perdas. O momento de parar de dirigir e outras dimensões da vida do idoso que caracterizam mudanças ou perdas, devem ser compartilhadas entre a família e o médico, com o mesmo nível de importância dada às orientações sobre medicamentos e exames de rotina.

As questões expressas no Clube dos Duffers fatalmente remetem cada leitor às próprias vivências familiares. Meu pai viveu 8 anos com Alzheimer e, para ele, professor e grande provedor de uma família numerosa, foi difícil o momento de deixar de atender às suas questões financeiras: ir ao banco, acompanhar extratos e pagamentos. A solução que encontramos foi colocar em seu bolso um cartão já vencido e algumas notas de dinheiro, e levá-lo a agência bancária de seu costume, para “tirar” um extrato duas ou três vezes na semana. Notamos que ia mais feliz, se sentisse no bolso da calça, sua carteira com cartão e dinheiro. Foi uma tarefa que fez por tantos anos sozinho, após a aposentadoria, que chegou a conhecer pelo nome todos os funcionários da agência. Achei interessante que alguns desses funcionários estivessem em seu velório. É possível então para idosos com demência manter uma rede de amizades? Sentir-se participante e incluído socialmente? São essas as questões partilhadas no Clube dos Duffers: não pescar ou caçar como antes, saudades da esposa falecida ou de um amigo, falta de senso de direção ou propósito, pequenas e grandes limitações diárias. Por vezes, saudades de quem eram, do que faziam…

São igualmente essas as questões tratadas pelo Dr.Dennis McCullough em sua obra, My Mother Your Mother (2008), marco para o movimento Slow Medicine  no mundo. A partir da observação de sua mãe idosa, e de vários relatos de casos, define 8 estações tardias no final da vida, e compara a travessia dessas estações com “A Balada de Narayama”, em que o filho carrega sua mãe até o topo da montanha, onde esta encontrará em paz a morte. Cada travessia é única, tem sua nobreza e dignidade, e traz um aprendizado para quem tem a honra de acompanhá-la. A mesma honra expressa pelo Dr. Derek Doyle, em seu livro Bilhete de Plataforma: vivências em cuidados paliativos (2012), no qual compara o médico ao amigo que acompanha o viajante até o embarque na plataforma do seu último trem.

A identidade singular de cada idoso, marcante e construída através de longos anos (que as vezes é tratada como apenas “teimosia” de cada idoso), pode ser percebida pelo médico através da escuta respeitosa e afetuosa, ampliando as possibilidades de cuidado, e este pode então participar das melhores escolhas para cada paciente. Nem sempre a identidade, a essência de cada idoso emerge claramente da família, pois o olhar de cada filho, ou parceiro, é perpassado pelo complexo vínculo filial ou conjugal. Mas, junto a companheiros de “estação da vida”, cada “velho Duffer” pode expressar seu sentimento de ser humano, não apenas como pai, avô ou esposo. E assim, ser visto pelo seu médico, em sua essência.

Estudos sobre Medicina Narrativa e Medicina Centrada na Pessoa, demonstram que metáforas e narrativas oferecem meios de entender a experiência de doença de cada paciente. Skelton e col (2002) observaram que pessoas e médicos usam metáforas muito diferentes, o que limita a capacidade do clínico de entrar no mundo conceitual da pessoa. Os médicos tendem a ver a doença como um “quebra-cabeças”, que deve ser resolvido e controlado (2002:116), enquanto as pessoas, em suas metáforas, refletem a perspectiva de um corpo como “embalagem do eu”, e a experiência da doença como algo inexplicável, um sentimento de ter perdido o contato com o mundo. Stensland e Malterud (2001) mostram, a partir de estudos de casos, que obter um relato e se envolver na metáfora da pessoa, “traz a cor de volta para sua experiência de sintomas” (2001:428) e dá poder não só a ela, mas também ao médico (Stewart et all,2010). O artigo traz o caso do idoso que recebe visitas de um menino misterioso, que se tornam um enigma para a família e para o médico. No ambiente do Clube dos Duffers, este enigma tem maior possibilidade de ser desvendado e compreendido.

Os profissionais de saúde que vivenciam a medicina sem pressa, no ritmo de cada paciente, em atividades grupais como a relatada, sabem bem que estão nesses momentos cuidando também de si mesmos, e de suas famílias, que vivem, como diz o autor, a exemplo de seus pacientes, “vidas desarrumadas”, cheias de indagações, de complexo convívio com o passado. Nestes momentos de encontro, o presente se torna o mais importante, porque pleno do sentido da experiência compartilhada. As respostas ou possibilidades de enfrentamento para os dilemas presentes de cada um, se tornam um pouco mais claras, com frequência na voz do “outro”. Torna-se então muito importante para os praticantes da medicina sem pressa, encontrar tempo e boa vontade para além de se encontrar com pacientes e famílias, promover encontros entre pacientes e famílias. Somos todos “contadores de histórias”.

“Ao contar (e escutar) histórias, também nós percorremos em nossa imaginação aqueles caminhos, caminhos de saudades, de esperanças, de desespero. Na verdade, todos somos médicos, doentes e familiares também, personagens de histórias: histórias são o que somos; contar e escutar histórias é o que fazemos.” (Kleinman,1999).

Livros consultados:

-O Médico, seu paciente e a doença. Michael Balint, Ed Atheneu, 2005.

-Medicina Centrada na Pessoa – transformando o método clínico. Moira Stewart et al. Artmed, 2ª edição, 2010.

-Técnicas de Terapia Familiar, Salvador Minuchin e H.C. Fishman, Artmed, 2ª reimpressão, 2003.

-Bilhete de Plataforma: vivências em cuidados paliativos, Derek Doyle, traduzido por Marco Tulio de Assis Figueiredo e Maria das Graças Mota Cruz de Assis Figueiredo. Difusão Editora e Editora Senac Rio, 2012.

-My Mother Your Mother – embracing “Slow Medicine”, the compassionate approach to caring for your aging loved ones. Dennis McCullough. 2009.

Artigo Comentado:  The Old Duffer’s Club, Loxterkamp D, Ann Fam Med , maio de 2009 
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Carla Rosane Ouriques Couto é médica pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria, RS. Especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gerenciamento de Unidades Básicas e Medicina de Família e Comunidade. Felow FAIMER Brasil – 2008. Mestre em Psicologia Social. Terapeuta de Família, casais e grupos. Docente da Universidade José do Rosário Vellano-UNIFENAS, em Alfenas/MG. Em suas próprias palavras, “…viajante, provisória, passageira, distraída, mas sempre presente, quando se trata de observar e refletir sobre a experiência humana, e de auxiliar a realizar sonhos para o bem coletivo.”

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