Médicos sem Jaleco e a Decisão Compartilhada

outubro 29, 2018
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Por Luis Claudio Correa:

Há algum tempo que meu amigo José Carlos Velho me cobra um texto para o site do Slow Medicine. Eu já havia planejado que este texto seria sobre o paradigma da “decisão compartilhada. E foi uma história de bastidor que finalmente me inspirou a colocar em palavras ideias respeito da decisão compartilhada que venho apresentando sob a forma de conferência há dois anos.

Fui convidado pelo programa matinal Bem-Estar, para discutir o paradigma do “menos é mais” em medicina. Nas vésperas desse evento, inspirado pela vista da Bahia de Todos os Santos em Salvador, o gaúcho Guilherme Barcellos, coordenador nacional do Choosing Wisely (“escolhas sábias”), olhou para o horizonte e falou: “essa entrevista será um momento especial de diálogo franco com o público a respeito da racionalidade médica”. Embutida nesta racionalidade está a decisão compartilhada.

Dias depois, ao chegar no camarim do programa, eu e Thiago Trindade (presidente da sábia Sociedade dos Médicos de Família) fomos apresentados à ideia de que todos os médicos que visitam o programa vestem um jaleco branco. E nos ofereceram um conjunto de jalecos, com todos os modelos e tamanhos para escolhermos. Confesso que fiquei desconfortável com a ideia do jaleco, por algum motivo aquilo não me pareceu “sábio”. E pensei, como vou sair dessa?

Neste momento, me veio uma metáfora em mente: “médico choosing wisely não usa jaleco”. Claro que não, pois um dos componentes principais da sabedoria médica é a decisão compartilhada, quando o médico sai do seu pedestal e se coloca no nível do paciente. E vou mais longe, médico choosing wisely também não usa o símbolo fálico da gravata (mulheres são mais sábias), nem precisa usar roupa branca. Enfim, não há nada de sábio em tentar se diferenciar do paciente com base na autoridade da roupa. Precisamos nos colocar no mesmo nível do paciente.

Consegui o que queria, o Bem-Estar nos dispensou de usar o jaleco, nos despimos da farda médica, o que nos possibilitou “conversar” com o público, ao invés de “ensinar” os espectadores. E o médico sem jaleco foi a temática que iniciou o debate do programa.

Essa simbologia do médico sem gravada, sem jaleco, sem branco remonta à necessidade de discutirmos o que é uma verdadeira decisão compartilhada, conceito pouco compreendido até mesmo pelos que propõem a estratégia como componente importante do exercício da medicina baseada em evidências.

O que é Decisão Compartilhada?

Decisão compartilhada não é um médico de jaleco apresentar ao paciente uma opinião especializada e deixar que o paciente tome a decisão final. Isso é “decisão consentida”, quando damos ao paciente o direito a consentir ou não com nossa opinião de jaleco.

Decisão compartilhada não é um médico de gravata traduzir uma série de dados estatísticos ao paciente, para que este possa tomar sua decisão final. Isso é “decisão delegada”ao paciente.

Decisão compartilhada não é respeitar a preferência do paciente. Decisão compartilhada é utilizar as preferências e valores do paciente na formação da opinião médica.

Na decisão compartilhada, a opinião do médico é inicialmente influenciada pelo paciente e não o contrário. Por este motivo, o médico precisa deixar o jaleco no armário (ou jogar fora de preferência, junto com suas roupas brancas). E pode guardar uma gravata para dias de solenidades formais.

Há uma grande diferença entre respeitar (ética) e utilizar (raciocínio clínico). Devemos sempre respeitar, mas isso é básico e o respeito não implica necessariamente em decisão compartilhada. Utilizar a preferência do paciente aumenta a efetividade de nossas escolhas. Afinal, não queremos apenas ser eficazes (aplicar conceitos científicos), no final queremos ser efetivos (beneficiar no mundo real).

Como fazer decisão compartilhada?

O processo de decisão não começa pelo paciente, termina no paciente. O processo começa pela evidência ou pelo conceito demonstrado cientificamente. Utilizarei como exemplo uma suposta decisão terapêutica que visa beneficiar o prognóstico do paciente.

Imaginemos um tratamento comprovadamente benéfico. Esse é o ponto de partida, o benefício e a magnitude desse benefício. Digamos um tratamento com redução relativa do risco (RRR) de 30%.

Em segundo lugar, analisaremos a individualidade clínica do paciente, calculando seu risco e consequentemente seu número necessário a tratar (NNT) individual. Sabemos que escores de risco estão disponíveis para a maioria das situações. Ao utilizar um modelo probabilístico, faremos a estimativa do risco individual do paciente com base em suas características individuais. Quanto maior o risco, maior será o benefício individual do tratamento cuja RRR é de 30%.

A redução relativa é a propriedade intrínseca do tratamento, constante em diferentes tipos de pacientes. A redução relativa é o conceito científico trazido pela evidência. Já o NNT é uma propriedade do paciente que recebe o tratamento. Portanto, uma decisão individualizada não deve copiar o NNT do trabalho científico, pois este é apenas uma média dos NNTs da amostra. O NNT varia com o tipo de paciente (risco basal).

Na decisão individualizada devemos calcular o NNT individual do paciente, multiplicando a RRR (evidência) pelo risco basal do paciente (individualidade clínica). Assim, se eu aplicar 30% de redução em um paciente de 10% de risco, obterei 3% de redução absoluta e NNT = 33. Se eu aplicar 30% de redução de risco em um paciente de 1% de risco, obterei 0.33 de redução absoluta, e um NNT = 333. Para um mesmo tratamento, obteremos diferentes efeitos individuais. Portanto, nesta segunda etapa, olhamos o paciente em sua individualidade clínica, não copiamos o resultado de um trabalho, mas nos baseamos no conceito científico e generalizável (RRR) para chegar à individualidade do paciente (NNT individual).

Devemos avaliar também o risco de efeito adverso no tratamento. Os ensaios clínicos trazem o risco relativo para efeito adverso. Por exemplo, clopidogrel tem um RR = 1.29 para sangramento em pacientes com síndromes coronarianas agudas sem supradesnível do ST. Significa 29% de aumento do risco. Multiplicamos o risco basal de um paciente que usam apenas aspirina por 29% e saberemos qual o NNT para causar um sangramento com a adição de clopidogrel.

Aqui vale um parêntese. Ouvimos frequentemente um lema contra a evidência e a favor da intuição médica de que “uma coisa é o que mostra um estudo, outra coisa é o paciente individual”. Nossa explanação mostra que isto é uma falácia, pois se não nos basearmos no estudo (RRR), não poderemos saber do impacto individual de nossa conduta.

Assim, nesta fase de individualização clínica, saberemos os efeitos benéficos e maléficos concretos para aquele paciente em particular. Até aqui consideramos o conceito científico e a individualidade clínica do paciente, mas ainda não compartilhamos a decisão.

Agora vamos à terceira etapa, a decisão compartilhada, que levará em consideração a paciente do ponto de vista pessoal, seus valores e preferências. O que calculamos até a segunda etapa foi a probabilidade do paciente se beneficiar de sua conduta. A partir de agora, devemos nos perguntar: o paciente deseja fazer essa aposta probabilística? Digo aposta, pois toda conduta implica em um custo não monetário para o paciente. Custo não monetários podem ser de várias categorias: obrigação de lembrar de tomar um remédio diariamente ou gastar seu tempo fazendo um tratamento fora do domicílio; insatisfação de precisar tomar remédio quando o paciente é aquele que preza por coisas mais naturais; efeitos adversos que podem ser mais frequentes do que mostram ensaios clínicos; complicações sérias, sequelas, estresse psicológico de um tratamento.

Na prática, quando é uma conduta é voltada para melhorar prognóstico (futuro), o paciente paga um preço hoje para talvez (probabilidade) desfrutar de um benefício futuro (prevenção de doença ou melhor evolução de doença). A depender do paciente, este pode querer apostar ou não. E isso depende do valor do beneficio no ponto de vista do paciente. Uma cirurgia de joelho para um jogador de futebol tem muito mais valor do que para um burocrata. O primeiro estaria disposto a pagar um preço mais alto para obter o mesmo benefício do segundo paciente.

Portanto, o benefício varia com o valor do desfecho para o paciente, que deve ser computado no processo de construção de nossa opinião médica. E o caminho não é exatamente perguntar ao paciente “qual o valor desta conduta para você? ”. Cabe a nós, profissionais treinados na sensibilidade necessária para fazer a leitura da preferência de nosso paciente, com base no que conhecemos dela (e) e no que conversamos com ela (e). Neste momento, nossa opinião está sendo moldada pela preferência do paciente.

Utópico para 15 minutos de consulta? Utopia é desculpa de preguiçosos. Difícil é, mas impossível não é. Quinze minutos de consulta pode ser pouco, mas 3 consultas de 15 minutos podem ser suficientes para conhecermos nosso paciente enquanto indivíduo com valores e preferências. Pacientes são tão ávidos a falar, que me impressionam pela capacidade de falar tudo em 5 minutos, desde que não sejam interrompidos por um interrogatório médico imbecil e sem propósito. Sim, alguns 15 minutos podem ser suficientes para sabermos de quem se trata nosso paciente. E para quem acha isso difícil, eu retruco: se quisesse uma profissão fácil, não escolhesse medicina.

Com o devido enfoque, podemos fazer um slow medicine de 15 minutos que muitos não conseguem fazer em 60 minutos. Slow medicine não é um paradigma cronológico. É um paradigma filosófico.

Este processo de utilização das preferências do paciente na construção de nossa recomendação é o inverso do habitual. Normalmente o médico emite sua preferência pessoal de conduta para que o paciente assimile essa recomendação. Porém o paciente não é treinado para isso, ou seja, incorporar a evidência de acordo com sua preferência. Nós somos os profissionais treinados e supostamente capazes de fazem o alinhamento da preferência com evidências. Está em nossas mãos. Esta é a verdadeira decisão compartilhada, que não precisa estar explícita, mas sim implícita no pensamento médico.

Há dois motivos para a proposta deste tipo de decisão compartilhada. O primeiro é a efetividade da recomendação e o segundo é a satisfação do paciente.

Efetividade Clínica

Há uma lacuna entre eficácia (prova do conceito no trabalho científico) e efetividade (mundo real). Há certas condutas cuja efetividade depende do alinhamento com a preferência do paciente. Uma recomendação dietética terá mais efetividade se o paciente realmente desejar perder peso.

Imaginemos dois tipos de dieta (A e B), sendo que a dieta A é mais eficaz para perda de peso, de acordo com ensaios clínicos randomizados. No entanto, a dieta A pode ser menos do gosto de um dado paciente, tornando mais difícil de obedecer, implicando em uma série de privações, enquanto a dieta B pode ser mais agradável. Assim, no mundo real, a dieta A pode ser menos efetiva do que a dieta B. Como médicos, nosso objetivo é efetividade. Em certas situações nossa efetividade dependerá de um adequado acoplamento da evidência com a preferência. Pode ser que para alguns pacientes a dieta B seja uma melhor escolha, mais efetiva, embora menos eficaz na prova de conceito.

Existem evidências de que a decisão compartilhada promove efetividade clínica? Até certo ponto, sim. Revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados que compararam decisão compartilhada versus controle sugere benefício em desfechos clínicos, de magnitude modesta. No entanto, a maioria dos modelos de decisão compartilhada corresponde ao que chamei de “decisão delegada”no início deste texto. Ou seja, utilizam ferramentas para traduzir riscos e benefícios para que o paciente tome sua decisão final.

Neste texto, propomos uma abordagem evolutiva e diferente da tradicional:a opinião do médico deve ser influenciada pelo paciente. Levanto uma proposta de evolução do conceito de decisão compartilhada, cuja efetividade deve ser testada por futuros estudos.

Satisfação, o desfecho primordial

 Em medicina baseada em evidências, valoriza-se principalmente desfechos clínicos “duros”, eventos relevantes que desejamos prevenir via condutas médicas. Porém este paradigma nos faz esquecer de um desfecho subjetivo primordial: satisfação.

Satisfação é um desfecho garantido e imediato, que resulta do conforto com a conduta preferida; por outro lado, o benefício em um desfecho clínico é futuro e probabilístico. Quando um paciente “aceita” um tratamento a contragosto, sua insatisfação é garantida e imediata. Desta forma, pode não ser uma decisão muito econômica escolher uma conduta baseada no benefício futuro probabilístico, em detrimento da preferência imediata e garantida. Precisamos equacionar os dois.

E quanto a evidências? Uma revisão sistemática de 115 ensaios clínicos randomizados publicada pela Cochrane em 2014 sugere que decisão compartilhada promove mais satisfação sob a forma de conforto quanto à decisão, sensação de conhecimento do assunto e participação na decisão, redução de conflitos.

The Doctor exhibited 1891 Sir Luke Fildes 1843-1927 Presented by Sir Henry Tate 1894 http://www.tate.org.uk/art/work/N01522

“O Médico”

“O Médico” é o nome da famosa pintura que retrata a cena de uma criança gravemente enferma sendo observada pelo seu médico. É obra de Sir Luke Fildes (1890) e está exposta no Museu Tate Britain de Londres. A menina era a filha do pintor. A criança morreu dias depois.

Esta pintura clássica tem um valor inspirador para nós médicos. Porém, recentemente notei uma peculiaridade: a cena é a antítese da decisão compartilhada. O médico que pensa com maestria no caso clínico está no centro da figura. Já os pais da criança passam quase desapercebidos ao fundo, o pai um observador, a mãe uma desolada. Os pais não têm participação ativa na cena, muito menos participação na decisão, imagino. A cena é uma apologia ao médico, porém uma antítese ao paradigma do médico sem jaleco.

Sempre me chamou atenção nesta pintura o dilema do médico que parece pensar sem conseguir chegar a uma solução. Fico a pensar que se este médico houvesse convidado os pais ao centro da cena e compartilhado a decisão, este dilema poderia se reduzir.

“O Médico” representa a medicina tradicional, bem caracterizada na frase de Hipócrates: “Qualquer leigo que diga como o médico deve fazer seu trabalho está cometendo uma impertinência ultrajante”

Decisão compartilhada não é o tradicional, para que faça parte de nosso cotidiano médico necessitamos evoluir culturalmente. Choosing Wisely é um movimento de transformação cultural. No processo compartilhado, o “menos é mais” poderá prevalecer a depender da preferência do paciente. Choosing Wisely representa um paradigma a ser modificado progressivamente, a partir do diálogo entre profissionais e de profissionais com a sociedade.

No estágio em que estamos, ainda confundimos decisão compartilhada com decisão consentida. E na prática científica, o que tem sido testado como decisão compartilhada é na verdade decisão delegada. Ensaios clínicos randomizados utilizam a metodologia de uma boa comunicação das evidências (panfletos com figuras que demonstram as probabilidades de benefício e risco) para que o paciente tome sua decisão. Porém esta metodologia faz o paciente se sentir sozinho, e normalmente este retorna a pergunta ao médico: “Dr., se fosse seu pai, o que você faria? ”

Este novo conceito de decisão compartilhada precisa ser testado quando à hipótese de superioridade em relação a conceitos tradicionais que denomino de decisão consentida ou delegada.

O que de fato funcionará melhor, um médico de jaleco ou sem jaleco?

Enquanto aguardo evidências a respeito do jaleco, utilizo minha preferência pessoal, evito o jaleco no consultório, abandono a gravata e minhas roupas brancas já entraram em desuso há quase três décadas. Essas escolhas pessoais me tornam mais humilde, abrindo espaço para o desejo de compartilhar incertezas com o paciente, conversar com transparência, e me deixar influenciar pelos valores de quem está de fato com a “pele no jogo”: meu paciente.

______________________

Luis Claudio Correia:

Professor Adjunto, Escola Bahiana de Medicina

Diretor, Centro de Medicina Baseada em Evidências

Coordenador de Pesquisa, Hospital São Rafael

Doutor e livre-docente em Cardiologia
Membro Titular da Academia de Ciências da Bahia
…e um cara inteligente, ponderado, um bom amigo, esposo dedicado e pai de duas lindas meninas. Todos sabem que se existe um pensador da Choosing Wisely no Brasil, é ele.

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Marilena Nakano
Marilena Nakano
6 anos atrás

Uma vez por semana abro meu e-mail e leio os artigos de slow medicine. Cada um é inspirador. Tenho aprendido a dialogar com meus médicos sobre essa perspectiva é o que espero deles. O diálogo tem sido profícuo . Hoje, ao ler o artigo “Médicos sem jaleco e decisão compartilhado”, me veio à mente um esforço que fazemos em nossas pequenas bibliotecas vivas da Rede Beija-Flor, o da “escuta sensível “. Caminhamos no sentido de ouvir o outro e decidir com ele em que campo da literatura entrar. Buscamos deixar para trás a concepção tradicional que acompanha a maior parte das bibliotecas , lugar onde os bibliotecários impõem silêncio e se põem entre nós e os livros, estes sacralizamos. Dessa escuta sensível faz parte o afeto . Sem este ela não se concretiza. Penso que isso nos aproxima do slow medicine, mais especificamente da decisão compartilhada.

Nila Costa
Nila Costa
6 anos atrás

Luís , maravilha!
A medicina encontra-se justamente neste espaço entre o eu e o outro ( ou, o médico e o paciente) , ela é justamente este ” terceiro incluído”, e é neste espaço que se processa a sua sabedoria. O deixar-se influenciar é ingrediente fundamental para que o processo aconteça, e esta é também uma habilidade construída, onde a empatia e a compassividade precisam estar presentes.
E é justamente na horizontalidade da relação que podemos receber , e transformar .

Feliz por ler este texto!

Grande abraço!!

Nila

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