Médicos slow fazem menos barulho

setembro 2, 2020
6 comment
Visitas: 3683
7 min de leitura

Por Ana Lucia Coradazzi:

“Quanto mais vazia uma carroça estiver, mais barulho ela fará.”

(Anônimo)

            “O médico slow faz menos barulho.” Foi essa a resposta que ouvimos do Dr. Régis Vieira, médico de família, quando foi perguntado sobre como fazemos para encontrar um médico que adote a postura da Slow Medicine em sua prática diária. Por mais que eu tenha procurado, ainda não encontrei resposta mais clara, principalmente nesses estranhos tempos atuais, em que nossos dedos percorrem as telas dos celulares, insanamente, navegando de um post a outro, num percurso infinito e sem rumo, arrastados pela força das mídias sociais. E nós, médicos, temos pulado na correnteza.

            Muitas vezes, o conteúdo que arremessamos no oceano de posts traz informação, alento, sensatez. Médicos detêm conhecimentos importantes e úteis, que fazem uma diferença brutal nas vidas das pessoas. Somos capazes de, num vídeo de poucos minutos, estimular uma pessoa a se alimentar melhor, praticar atividades físicas ou identificar sintomas de ansiedade. Podemos ajudar um paciente a lidar de forma mais adequada com sua doença, e permitir que ele compreenda seu tratamento de uma forma totalmente nova. Somos capazes – vejam só! – de auxiliar uma família inteira a compreender que a vida de um ente querido está chegando ao fim, e que isso não tem nada a ver com erros ou fracassos pessoais. Médicos podem impactar de forma incrível um número inacreditável de pessoas através de posts ou outras mídias. Há exemplos admiráveis de colegas que têm transformado a vida das pessoas (para melhor). Invariavelmente, são médicos ciosos do tamanho de sua responsabilidade, e que exprimem zelo e cuidado em cada palavra, em cada imagem, em cada informação, e até mesmo em sua forma de se relacionar com as pessoas no ambiente virtual.

            Mas, como em todos os aspectos humanos (todos mesmo), estamos sujeitos a cometer desvios. Podemos, por exemplo, disseminar informações incorretas ou cuja interpretação pode ser equivocada por grande parte das pessoas, e isso causa (muitos) danos. Podemos nos deixar levar por crenças e valores pessoais e, sem sequer nos darmos conta, agredir as crenças e valores de outras pessoas. Podemos, ainda, nos deixar manipular, expressando opiniões e posições sem nos debruçarmos sobre o assunto com cuidado, influenciando atitudes e determinando o pensamento de um sem número de leitores. Excetuando-se, talvez, alguns colegas a quem falte um pouco de caráter, a maior parte de nós não comete tais deslizes propositadamente. Médicos não acordam pela manhã planejando como enganar pessoas ou como convencer o público de que suas crenças são indiscutíveis. Médicos tampouco almejam expor opiniões levianas que resultem em desaprovação das pessoas ou lhes causem prejuízo. A maioria de nós almeja justamente o contrário: credibilidade e respeito. Isto posto, o que levaria médicos com indiscutível conhecimento técnico e irretocável qualificação profissional a se exporem com posts de conteúdo questionável e gosto duvidoso?

            O fato é que, antes de sermos médicos, somos humanos. E, humanos que somos, padecemos das mesmas fraquezas e somos atraídos pelas mesmas tentações midiáticas que qualquer frequentador do mundo digital. Podemos ser facilmente envolvidos pelo volume crescente de likes e seguidores, deixando nosso ego exultante. Podemos nos deixar encantar pela quantidade crescente de comentários apaixonados, criando verdadeiras legiões de pessoas dispostas a concordar, incondicionalmente, com nossas posições e ideias. E, em algum momento da correnteza, podemos nos desgarrar da margem e nos deixar levar, sem resistência, pelo rio caudaloso. Deixar-se dominar pelo fluxo do mundo não é algo muito saudável em qualquer circunstância, pois implica em abrir mão de pelo menos parte da nossa autonomia em troca de sermos incorporados pelas águas do rio (o que pode ser tão eletrizante quanto perigoso). Mas, sendo médicos, e tendo atrelada a nós a imensa responsabilidade que temos sobre as vidas das pessoas, esse “descuido” pode ter consequências catastróficas. Longe das margens, perdemos nossas referências, e esquecemos dos motivos que nos levaram até ali. Flutuando pelo rio, nos esquecemos do nosso propósito, até não sermos mais capazes sequer de reconhecer a terra firme.

            É exatamente nesse ponto que a postura de um médico slow consegue facilmente ser percebida. O zelo e o profundo respeito com o outro estão na essência de suas atitudes. O “pensar antes de agir” (ou, aqui no nosso caso, “pensar antes de postar”) definem tudo o que vem depois. Às vezes, é preciso pensar muito (em Oncologia, multiplique por dez). Uma frase motivacional do tipo “Temos lutar contra o câncer”, na boca de um médico, pode arder como fogo nos ouvidos de um paciente que está vivenciando a fase final de sua doença, enchendo seu coração da sensação de fracasso. Um post falando sobre a beleza incomensurável da morte pode ser devastador para uma mãe que está perdendo sua filha num quarto de hospital. E uma foto exaltando a alegria da vida pode ser terrivelmente dolorosa para o esposo daquela sua paciente que faleceu hoje pela manhã… Conhecemos o nosso momento presente, mas não temos ideia do momento em que nossas palavras encontrarão os olhos dos outros.

            Médicos têm, sim, todo o direito de utilizar redes sociais e qualquer outra mídia para se relacionarem com as pessoas, promoverem conhecimento e até mesmo para promoverem seu trabalho (desde que de forma ética, claro). Mas é ingênuo ignorar o fato de que sua credibilidade e sua imagem estão atreladas aos seus posicionamentos no mundo digital, assim como é irresponsável menosprezar o valor das suas palavras e atitudes nas vidas das pessoas que os lêem. É tomando uma profunda consciência do alcance e do impacto da nossa “vida digital” que podemos evitar a dor do outro. É preciso exercitar nossa discrição, e lembrar que a maior parte do que aprendemos da vida não diz respeito a nós, e sim ao que nossos pacientes têm a generosidade de compartilhar conosco. O que nos torna realmente sábios não é extraído dos livros, mas das pessoas. Nosso conhecimento não vale muita coisa se não for para ajudá-las. Ele se esvazia à medida que o utilizamos apenas para receber likes ou acumular seguidores. E, pior, ele passa a ser lamentável quando provoca ainda mais sofrimento. Um médico slow faz, realmente, menos barulho.

Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, tem especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou outro livro, escrito em colaboração com o Dr. Ricardo Caponero: Pancadas na Cabeça.

6 Comentários

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

6 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Mauricio Aragão
Mauricio Aragão
4 anos atrás

Gostei muito do texto. Leve, objetivo e esclarecedor.
Parabéns à Dra. Ana Lucia Coradazzi !

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás

Muito obrigada, Maurício!!!

Angelica Sales Barcelos
Angelica Sales Barcelos
4 anos atrás

Parabéns Ana Lúcia
Perfeito.
Tento me policiar, mas vendo seu post vejo que por mais que me encaixe no grupo de médicos que com certeza não quer prejudicar e sim ajudar, sem ser hipócrita e confessando que também existe interesse em ser vista e captar pacientes.
Percebo que posso sim ter ainda mais cuidado e delicadeza como vc propõe no texto, revendo a proposta da slow medicine.
Que Deus me ilumine.
Um abraço e que Deus te proteja nessa área de atuação tão importante é com certeza tão dificil

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  Angelica Sales Barcelos

Obrigada pelas palavras, Angélica! Você tem toda razão, é necessário se policiar o tempo todo. Colocar uma “trava” em nós mesmos. Faço isso até hoje, e me pego em deslizes com frequência. Com o tempo, isso vai ficando mais automático, os deslizes são menores. Mas manter-se alerta é essencial. Abs!!!

GIna Carriero
GIna Carriero
4 anos atrás

É isso aí mesmo Dra. Ana Lúcia ! Não somos perfeitos e o caráter de cada um é o que faz a diferença! Parabéns!

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  GIna Carriero

Obrigadaaaaa!!!! 🙂

Newsletter Slow Medicine

Receba nossos artigos, assinando nossa
newsletter semanal.
© Copyright SlowMedicine Brasil. todos os direitos reservados.
6
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x