Por Elizabete Band:
“Prefiro escorregar nos becos lamacentos
Redemoinhar aos ventos
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos
A ir por aí
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens
E desenhar meus próprios pés
Na areia inexplorada
O mais que faço não vale nada”
– Cântico negro, José Régio, 1926 in “Poemas de Deus e do Diabo”
“Lembre-se de sua mortalidade!”, foi o que ela me falou quando perguntei o significado daquela frase em latim na mais recente tatuagem que emoldurava seu braço. Me disse daquela forma empolgada e contagiante que permeava todo seu ser. Nós sabíamos muito bem o significado daquela frase, e compartilhávamos a muitos anos modos de viver e pensar a vida que contemplavam essa verdade difícil e absoluta da existência humana: um dia todos nós estaremos mortos. Já tínhamos uma certa intimidade com a possibilidade da morte; eu sendo médica e tendo sido atropelada por uma Ranger uns anos atrás, ela sendo sobrevivente de um linfoma tratado no início de sua juventude.
Além disso éramos melhores amigas, e ela era madrinha de meu filho. Éramos confidentes, irmãs em lato sensu, e conversávamos sempre muito sobre tudo, sem as barreiras desnecessárias que a falta de intimidade costuma trazer às conversas. Amigas de muito tempo, eu já a abraçava e beijava carequinha durante o tratamento do linfoma, e foi ela quem me levou para dar meu primeiro passeio após o atropelo, eu ainda mancando e com um lenço na cabeça escondendo a sutura de uma laceração na testa. Fomos assistir uma palestra da Monja Coen sobre presença e eu achei tudo muito adequado, porque o atropelamento tinha me feito lembrar: memento mori. Eu era mortal. Eu poderia ter morrido naquele acidente, e isso me modificou profundamente. Nunca mais esqueci que poderia não ter um amanhã. Deixar as coisas para amanhã era muito arriscado.
Não se tratava, no entanto, de passar a viver o hoje como se não houvesse amanhã, living la vida loca. Era mais uma forma diferente de entender o tempo, a preciosidade do tempo que temos, que não sabemos quando vai acabar. A vida é um sopro, passa em um piscar de olhos. Emília já dizia isso muito bem ao senhor Visconde de Sabugosa: “A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais”. E as piscadas, bom, elas passam rápido.
Entender isso na carne me fez mudar a forma de priorizar as coisas e valorar o tempo. Me fez tentar deixar sempre o máximo de coisas possível em dia. Parar de gastar tempo com coisas que não eram assim tão importantes. Já dizia aquele moço, Machado de Assis: “Matamos o tempo, o tempo nos enterra”.
Mesmo com todo esse histórico de lidar cotidianamente com a realidade da morte não foi menos dilacerante descobrir que ela estava com um câncer de mama altamente agressivo e difícil de tratar. Entre seu diagnóstico e o dia em que chorei ao lado de seu corpo se passaram exatos doze meses, e ela nos deixou aos trinta e nove anos. Acompanhei todo o processo, desde o descobrimento do nódulo até a realização dos primeiros exames, a indicação de cirurgia, as quimioterapias, e por fim uma progressão de doença avassaladora que trouxe para ela uma morte sofrida e perplexidade a todos que gostavam dela.
Foram doze meses de aprendizados difíceis e profundos para a médica e a amiga que habitam em mim. E ainda mais para a interface das duas, que foi escalada para dizer a ela as verdades que precisava ouvir para poder tomar as decisões que importavam, e para dizer a ela a hora de parar. Não sei o que foi mais difícil, mas cumpri as tarefas que ela me delegou da melhor forma que pude. Mesmo assim me senti sempre muito longe do ideal, por muitos motivos, mas principalmente por que temos muita dificuldade de pensar e falar sobre a morte. Mesmo quando lembramos dela.
Infectologista na pandemia, fui obrigada a viver na pele a dificuldade de visitá-la quando foi internada em fase final de vida, de conseguir conversar com a equipe médica para ajudar a traçar um plano de cuidados que contemplasse seus valores, de ser ouvida quando tentei contar sua história. Tudo isso sofreu um processo de apagamento a partir do momento em que ela entrou pela porta da emergência e deixou de ser a minha amiga para ser apenas mais uma paciente com câncer de mama metastático “terminal”. Muitos equívocos foram cometidos na condução de seu processo de morrer, e que poderiam ter sido evitados com uma comunicação melhor em toda a trajetória de sua doença, com e entre todos os personagens que a percorreram.
Ao menos tive a chance de me despedir dela, chorar ao seu lado segurando sua mão, de dizer que ia ficar tudo bem, de ouvir seus últimos desejos, de dizer que a amava. Hoje, um pouco mais de dois meses após sua partida, penso nas tantas pessoas que passam pela mesma situação e têm esse momento roubado. Quantas pessoas morrem sozinhas ou sedadas em UTIs sem sequer saber que estão morrendo, quantos amigos e familiares não conseguem se despedir dos que partem pois nossa sociedade não sabe, não quer falar sobre morte?
Precisamos de espaços para ouvir e falar sobre morte com aqueles que estão abertos a isso, sejam pacientes ou não, com a doçura que é necessária, no lento tempo da delicadeza de acolher o medo, o sofrimento, a angústia de nos aceitar mortais. Encarar a mortalidade de frente nos dá mais chance de não sermos vítimas do nosso processo de morte e sim seus protagonistas, se assim o desejarmos.
Memento mori. A finitude dá ao tempo um valor extraordinário. Todos os ciclos têm um fim, e o fim dá sentido à coisa toda. Essa foi a maior lição que você me deixou, junto com os poemas, as letras de música, sugestões de livros e filmes e tanta sabedoria intrínseca sobre a vida, o universo e tudo o mais.
Obrigada, amiga.
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Nota dos editores: Textos como o depoimento pessoal da Dra. Elizabete, que denotam a sensação de solidão e impotência diante de um sistema de saúde que foi estruturado para priorizar condutas estritamente técnicas e minimizar as interações humanas individuais, nos fazem pensar onde estamos errando. Quando os próprios médicos sentem sob a pele esse imenso desconforto – e por que não dizer imensa dor? -, não há como ignorar que em algum ponto do caminho nós escolhemos mal nossa direção. Os pilares da Slow Medicine, que preconizam as necessidades do paciente como centro do cuidado, a análise crítica das evidências científicas para que se alinhem a essas necessidades, e a preservação da relação de parceria e acolhimento entre médicos, pacientes e familiares/amigos, vêm em resposta a essas angústias. Não é à toa que os Cuidados Paliativos, a Medicina Baseada em Evidências, a Medicina da Família e Comunidade, e tantas outras áreas de atuação têm se colocado sob o “guarda-chuvas” da Slow Medicine, alinhando-se aos seus princípios e, por fim, construindo uma medicina mais sóbria, respeitosa e justa.
(A pintura que ilustra o post chama-se Ophelia, de Sir. John Everett Millais, 1829 – 1896)
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Elizabete Band: nasci em Salvador, a Roma negra. Criança, queria ser bióloga – era o amor pelo mar! – ou escritora; virei médica. Médica, me encontrei no estudo das doenças infecciosas. Me formei na UFBA na virada do milênio quando nos prometiam tecnologias que melhorariam o mundo. A realidade que se desenhou foi outra: excessos, pressa, mecanização de tudo. Após me titular pela Sociedade Brasileira de Infectologia pausei tudo e fui ser mãe do Gael. Com ele aprendi muitas coisas, inclusive sobre o tempo e essa pressa que estava tomando tudo. E fui entendendo que meu tempo é o da calma.
Hoje sou infectologista e também paliativista em construção, após aperfeiçoamento pelo Instituto Paliar em 2018. Trabalho atendendo pessoas que vivem com HIV em um centro de referência estadual e com infectologia geral em consultório. Visito pacientes em domicílio – e com eles aprendi tantas coisas sobre o tempo! Faço parte do SCIH do Hospital Aristides Maltez, centro oncológico que é totalmente filantrópico, 100% SUS e que nunca desde sua criação fechou as portas. Sou apaixonada por histórias e por história, por viagens, conhecimento e movimento constante. E por escrever também.
Tento juntar tudo que fui aprendendo no caminho em todas as minhas práticas – pessoais e profissionais. Acredito na vida e no trabalho calmo, prudente, respeitoso, amoroso. Acredito no um feito de muitos, no cuidado feito por múltiplos olhares. E acredito principalmente na escuta e no poder das palavras como fonte de transformação.