Por José Carlos Campos Velho:
“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam.
E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa.”
José Saramago
“A casa dos pequenos cubos” é uma premiada animação japonesa dirigida por Kunio Kato, em 2008. Ela trata, à primeira vista, de um lugar inundado, onde vive solitariamente um velho senhor. Porém, breve percebemos que o curta-metragem vai muito além da nossa primeira impressão. Trata-se de um mergulho na memória de uma vida aparentemente pouco expressiva que, no decorrer da trama, mostra seu significado profundo e encantador.
Sim, trata-se de uma vida comum, de pessoas comuns e de lugares comuns – porém ali se revela a magia que se esconde por trás da simplicidade. Na medida em que o velho senhor vai mergulhando nas suas próprias memórias, cada momento de sua vida adquire grandeza. Cada andar construído nessa casa imaginária e onírica, mergulhada nas águas do passado, traz um momento importante da vida à tona. A viuvez, o período em que cuidou de sua esposa doente, o casamento da filha, seu nascimento e a vida em família, vão se sucedendo de maneira retrospectiva, na medida em que o idoso mergulha em si mesmo – e em sua própria memória. O desencadeador de todo este processo é a perda do seu cachimbo, que cai nas águas e o leva paulatinamente de volta a si próprio. Assim ele chega até sua infância e seus primeiros encontros com a amada. A animação se debruça sobre a vida cotidiana, constituída de fatos e momentos de simplicidade e despretensão. A animação é de grande sensibilidade e bom gosto do ponto de vista estético e um convite à reflexão. Um aspecto à parte, é a trilha sonora, que acompanha os devaneios do viúvo.
A memória é algo que se constrói ao longo da vida. Norberto Bobbio, em seu livro “O tempo da memória” relata uma experiência muito expressiva – ele acredita que a memória é a principal manifestação intelectual na velhice, afirmando que “… o mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória. Dizemos: afinal, somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos. E eu acrescentaria: somos aquilo que lembramos”.
Ele percebe em si próprio a fluidez – e a avalanche de recordações que vem à mente quando um pequeno fio é puxado, e leva ao resgate de uma miríade de fatos, lembranças, vivências que constroem, tijolo por tijolo (outra metáfora usada na animação) aquilo chamamos vida.
Nas melancólicas cenas no topo da memória, que representam sua vida atual, solitária e limitada, percebemos com clareza a falta de conexão e de vivências familiares e comunitárias. A solidão é uma questão muito relevante na velhice e hoje se sabe que é acompanhada de um risco maior de depressão e de mortalidade. Vários países vem desenvolvendo estratégias para enfrentar este problema. A Geriatria é uma das especialidades médicas que tem grande proximidade com os preceitos da Medicina sem Pressa, pois são olhares confluentes cujo enlaçamento sempre traz benefícios para profissionais e pacientes. Para que o idoso possa ser atendido de uma maneira compassiva, cuidadosa e humanista, necessitamos conhecer sua história de vida, sua inserção social, suas relações familiares e com a comunidade onde vive. E não basta só conhecer, é preciso valorizar. A escuta cuidadosa é uma atitude profundamente Slow. O idoso, ao ser acolhido, seja no consultório, no hospital, na sua casa ou na instituição de longa permanência, necessita desse amparo. Já discutimos previamente em outras matérias a inter-relação entre a Medicina Sem pressa e a Medicina Narrativa, e recentemente o assunto foi objeto de nosso podcast – o Slowcast. Pessoalmente, recentemente tenho tido oportunidade de conviver com minha mãe, nonagenária. Em nossas conversas posso constatar o quanto a memória preenche o seu cotidiano e a mantém vinculada à vida. Quando ela resgata algo do fundo do lago das sua reminiscências, aquilo vem à superfície aos borbotões. Então ali conseguimos enxergar direção, sentido e significado. Olho para ela e lembro de Norberto Bobbio. De sua percepção da importância e do significado das lembranças e da valorização de nossa própria história para que a vida desenhe seu propósito.
Finalizamos este breve comentário citando novamente Norberto Bobbio:
“O tempo do velho, repito ainda uma vez, é o passado. E o passado revive na memória. O grande patrimônio do velho está no mundo maravilhoso da memória, fonte inesgotável de reflexões sobre nós mesmos, sobre o universo em que vivemos, sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho, atraíram nossa atenção.”
A animação termina com estas palavras (tradução livre):
O Tempo é como água
Crescendo gradualmente e
Cobrindo a memória das pessoas.
Mas estas memórias não desaparecem,
Elas ainda estão lá, pacientemente esperando que algum dia as visitemos.
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José Carlos Campos Velho é médico geriatra e editor do site Slow Medicine Brasil
Texto maravilhoso que nos leva a refletir sobre o quão importante é a escuta, principalmente para os idosos. As vezes é só isso…
Obrigado, Tatiana.
Querido José Carlos
Seu artigo é tocante. Eu que já me encontro na velhice, sinto que a memória cada vez mais está presente e que mais do que nunca é preciso valorizá-la. Até hoje resistir em contar minhas caminhadas nos tempos da ditadura. Mas em tempos tão difíceis como os que vivemos, quem sabe minhas memórias e de outros permitam que estabelecer diálogos frutíferos de novos tempos.
beijos
Marilena
Querida Marilena! Fico feliz em saber que você gostou do artigo e que tem lido com assuidade nossas postagens. Um abraço afetuoso.
Querida Marilena! Fico feliz em saber que você gostou do artigo e que tem lido com assuidade nossas postagens. Um abraço afetuoso.
Prezado José Carlos
Analisar a Casa dos Pequenos Cubos merece meus parabéns, fiz questão de assistir o filme; é impressionante como a vida passa e realmente a memória de evocação se intensifica ,mostrando tudo o que aconteceu em nossas vidas.
É lindo, né, Ronaldo. Um mergulho para dentro de nossa história, poético e envolvente.