Por Aracy P. S. Balbani
Começou a celebração do centenário da insulina, uma descoberta científica revolucionária que, como outras, salvou milhões de vidas humanas.
Muitos tópicos em Medicina sofrem modificações profundas ou repentinas. No intervalo de um ano, podemos resumir numa palavra o que variou na abordagem de determinadas doenças: tudo. Algumas diretrizes para prevenção, diagnóstico ou tratamento para podem mudar, literalmente, da noite para o dia.
Sendo assim, dedicação, bom senso e prudência são essenciais. O profissional correto tem consciência de que não sabe tudo, e preza pela atualização científica. Mas não embarca em modismos, nem se precipita movido por entusiasmo ou desejo de fama instantâneos.
O volume crescente da produção científica, sua publicação expressa em preprint e a divulgação quase imediata na imprensa leiga reforçam a pressão dos pacientes, e até dos familiares dos médicos, para que os profissionais opinem sobre inúmeras novidades, inclusive as tecnológicas. Vez por outra aparece alguém para nos cobrar: “Você não está sabendo disso?!”.
Ainda que o dia durasse 48 horas e pudéssemos dedicar a maior parte do tempo à leitura crítica dos artigos científicos e às aulas virtuais, não conseguiríamos assimilar todas as informações e satisfazer de imediato às demandas de todos. Por esse motivo é necessário priorizar temas na pauta de estudos, selecionar as fontes de informação mais confiáveis e restringir o tempo gasto com amenidades nas redes sociais.
Também a renovação dos grupos de pesquisa e assistência médica é importante para agregar idades, ideias, sotaques e atitudes novas frente a dilemas clássicos e desafios emergentes. Diálogo multidisciplinar e multiprofissional nunca foi tão necessário. Nas questões de bioética isso é ainda mais enriquecedor, já que a sociedade e as tecnologias estão em permanente mutação.
No plano individual, a somatória das experiências profissional e pessoal tem o poder de forjar um médico, se não novo, diferente. Vários médicos contam ter ficado ainda mais sensíveis ao sofrimento de crianças após o nascimento do primeiro filho. Depois de tantos plantões movimentados em prontos-socorros, sem “parar para pensar” durante o internato e a residência médica, muitos se permitiram aflorar a indignação com as causas da violência, e passaram a integrar o trabalho de ONGs. A experiência profissional desses colegas tem feito a diferença no voluntariado e modificado a vida da comunidade.
Em geral, o amadurecimento fortalece o atributo de humanidade. Apesar das dificuldades, o desafio imposto pela pandemia de COVID-19, por exemplo, acelerou transformações positivas na prática profissional de muitos médicos (1). Toda crise é também uma oportunidade imperdível para a gente abrir a mente e o coração e se reinventar.
Francesc Miralles, europeu interessado no fenômeno da longevidade na população japonesa, tornou-se divulgador do ensinamento do propósito de vida, ou ikigai, no conceito oriental. Ele acredita que “é preciso experimentar novos caminhos” para ter uma vida não apenas longa, mas saudável e gratificante.
Promover mudanças, melhorar a si mesmo(a), despir-se de preconceitos, ampliar conhecimentos e aprimorar os métodos de trabalho requerem uma boa dose de coragem. Mas é no momento em que a borboleta sai do casulo que aumentamos a felicidade profissional.
Claro que os valores éticos são sempre fundamentais, assim como não se pode abrir mão de todas as convicções pessoais. Mas nenhum de nós detém a verdade absoluta. Reconhecer nossos limites requer a grandeza da humildade.
Nesse sentido, um dos princípios da Slow Medicine se aplica muito bem aos desafios da prática médica. Flexibilidade mental é preciso para que nos mantenhamos saudáveis, compassivos e em sintonia com o que a ciência oferece. Só assim poderemos acolher e cuidar cada vez melhor de quem recorre a nós nos momentos mais delicados da vida.
Afinal,
“Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo”
Como Uma Onda (Lulu Santos e Nelson Motta)
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Aracy P. S. Balbani é otorrinolaringologista, egressa da Faculdade de Medicina da USP (turma de 1994). Durante a pandemia, passou a dedicar mais tempo aos quatro cachorros, quatro gatos e à jardinagem amadora. Tem aprendido muito com Bolinha, um jovem ipê-de-jardim, Rojão, um charmoso exemplar de aroeira-salsa, e Pedrita, uma simpática aroeira-pimenteira.
A fotografia que ilustra a matéria é de Richard ten Brinke , publicada no grupo Fine Art & Long exposure Photography no Facebbok.