O amor, o calor e a dor – Her love boils bathwater

junho 11, 2018
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Por Vera Anita Bifulco:

“Volta teu rosto sempre na direção do sol, e então, as sombras ficarão para trás.”

Provérbio oriental

Com título ainda sem tradução para o português, este longa japonês, Her love boils bathwater, indicado como melhor filme estrangeiro para o Oscar 2018, impacta pela sensibilidade ao tratar o tema morte com sutileza, maestria, simbolismos e significados, além de magistral interpretação dos protagonistas. O filme é a jornada de uma mãe na busca do preenchimento de lacunas adormecidas em seu passado depois que descobre uma doença fatal. A personagem é inesquecível.

Ao final da exibição do filme, me veio à mente Rubem Alves, mestre no tema morte: “A doença é a possibilidade da perda, uma emissária da morte”. Todos sabemos que vamos morrer um dia, a diferença é quando esse prenuncio se torna verdade palpável, um tempo próximo, uma estatística pronta a se cumprir, tempo de espera que não mais espera. Urge que se faça bom uso dele.

Her love boils bathwater

Futaba Kono, a protagonista do filme, descobre que tem uma doença fatal e pouco tempo de vida. Quase paralelamente descobre também o paradeiro do ex marido, que a abandonara. Percebe que precisa tê-lo novamente por perto devido às contingências, e permite que ele frequente sua casa e fique mais próximo da filha Azumi. Ela não previa, porém, a vinda de outra criança, fruto de um caso do marido. Os quatro personagens embarcam numa jornada repleta de segredos e se tornam cúmplices para ajudar Futaba a realizar seus quatro últimos desejos:

  1. Encontrar seu marido desaparecido e levá-lo a retomar o negócio de casa de banhos da família;
  2. Conseguir que sua filha Azumi seja independente;
  3. Encontrar o homem certo para Azumi
  4. Desvelar o segredo sobre a origem verdadeira da filha.

Essas coisas que ela esperava acontecessem um dia, com a proximidade da morte aceleraram seus planos, e os tornaram urgentes. Cito novamente Rubem Alves: “A Morte tem o poder de colocar todas as coisas nos seus devidos lugares. Diante da Morte, tudo se torna repentinamente puro. Não há lugar para mentiras. E a gente se defronta então com a Verdade, aquilo que realmente importa”.

Todos temos uma história de vida que antecede as doenças. Somos o nosso presente, mas também nosso passado e o que almejamos para o futuro. O futuro depende iminentemente do que fazemos com nosso presente. Mas essas questões, como que num passe de mágica ganham novo olhar e premência, que uma doença potencialmente fatal pode trazer. Não há mais tempo para esperas, aquelas coisas que “empurramos com a barriga” para um tempo qualquer onde temos a ilusão que se resolvam sem que haja tanto sofrimento para nós. Precisamos ter cuidado, pois, podemos ser surpreendido por uma doença que apresse esse tempo. Não temos esse controle frente à vida.

O filme trata ainda de um tema muito ligado as doenças com prognóstico fechado, doenças fatais, o luto antecipatório, todas as perdas advindas antes da morte física. O luto antecipatório permite trabalhar e decifrar os múltiplos enigmas que estão em curso no processo de comunicação que une (e desune) os membros de uma família.

Futaba guarda para si o diagnóstico de câncer de pâncreas metastático. O luto se inicia no momento do diagnóstico e traz mudanças no modo de funcionamento da família, no sistema de crenças e regras, implícitas e explícitas, referentes às expressões emocionais, e outras crises. Ela decide não se submeter a um tratamento convencional que poderia limitá-la sem nenhuma garantia de sucesso. Ao invés disso começa a tecer a trama para realizar as ações que julga imprescindíveis antes de sua partida. Uma partida sem volta.

O posicionamento de nossa protagonista Futaba nos lembra os princípios que regem a Slow Medicine, a decisão do paciente deve ser sempre soberana, respeitando seus pontos de vista e seus valores. Decisões compartilhadas (paciente/profissional da saúde e família), onde nem sempre fazer mais significa fazer melhor. Futaba ao negar o tratamento convencional não desinvestiu na vida, pelo contrário, sabedora de que qualquer tratamento não garantiria sua cura, trabalhou a aceitação do inevitável, investiu numa vida com qualidade mesmo com as limitações que sabia uma hora iriam se intensificar, a vida que ela escolheu viver, uma vida plena de significado onde seus intentos lograriam a união da família que ela iria deixar, uma qualidade de vida para os ficam. A utilização do tempo com sabedoria, não se trata de derrota ou de luta, mas de aceitação e sabedoria, de lidar com a morte de outra maneira, investindo na vida para garantir uma qualidade da morte.

A questão cultural não pode ser esquecida.  Há rituais tipicamente orientais, cheios de tradição, plenos de significados que talvez pareçam estranhos ao espectador ocidental. No final da vida esses rituais ganham uma representatividade e força intensas que anima os que ficam, e celebra a partida dos que se despedem dela. Rituais são formas de honrar a vida vivida e fazer da morte mais um ritual de passagem. São úteis e imprescindíveis para minimizar e dar significado ao sofrimento da despedida.

A figura feminina tem na protagonista o maior exemplo a ser seguido. Mulher de fortaleza ímpar, reorganiza a família fragmentada, traz personagens para junto dela, e montam um cenário para que seu intento tenha sucesso. Mas, nem tudo são rosas, nem todas as intenções louvam êxito, como no caso da reaproximação com a mãe. Mas, não se abate, aproxima as pessoas, ergue sustento à família, hierarquiza prioridades e constrói uma nova família, aquela que vai sustentar sua ausência.

O filme possui gigantesca sensibilidade e mostra uma mãe sob muitas óticas. Mãe de muitos sem ser mãe legítima de nenhum, figura forte, corajosa e ao mesmo tempo carinhosa, preocupada em defender e proteger todos ao seu redor. A verdadeira herança que Futaba deixa é seu exemplo de vida.

Citando agora Edgard Morin, “É impossível conhecer o homem sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é na morte que o homem se revela. É nas suas atitudes e crenças perante a morte que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental.”

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Vera Anita Bifulco é psicóloga e coordenadora do serviço de Psico-oncologia do Instituto Paulista de Cancerologia (IPC). Especialista em Gerontologia e Psico-oncologia, tem mestrado em Cuidados Paliativos na  Unifesp. É coautora de 3 livros, Câncer – Uma Visão Multiprofissional  Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde e Cuidados Paliativos: um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais. Vera tem 3 filhas e um neto, gosta de viajar, de música, cinema e livros. Como legado, gostaria de deixar o seu sorriso e seu amor pela vida.

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