Por Ana Carolina Eiris Pimentel:
“Então sigo assim, penso em você, sorrio, e rezo, peço pra Deus cuidar da gente.”
Estamos preparados para sermos cuidados? Me perguntei isso após fazer um exame cardiológico, eu, enfermeira de um CTI cardíaco. Me vi ansiosa, temerosa e inquieta. Frente às procedimentos que estou acostumada a fazer em outras pessoas, ficamos (sim, nós) tão focados no nosso trabalho e em lidar com a dor do outro que esquecemos e nem percebemos o quanto estamos absorvendo de tudo isso.
Chove chuva, chove sem parar e até a última gota chegar você se percebe engolida por um mar de tensões, pensamento ágeis, medos, cansaços e estresses… burnout? Talvez…, mas diria que às vezes podemos ter a famosa fadiga emocional, é tanta coisa para lidar e absorver que, no fluxo fast que a vida nos obriga (ou nós que nos forçamos), não entendemos a verdadeira relação que temos que ter conosco. Estamos apenas sobrevivendo.
Pulamos refeições e viramos noites para ofertar comida e prover uma boa noite de sono aos nossos pequenos grandes humanos, deixamos de beber água para saciar a sede à beira leito, repomos eletrólitos sem nem avaliar os nossos. Hipocrisia. Sim, essa é a verdade nua e crua, dizemos, orientamos e por vezes até julgamos. E quando nos damos conta, nós que estamos precisando de cuidado.
E nesse outro lado, o lado de ser examinado vem o medo disfarçado de prepotência e autoconhecimento, eu sei mais, eu faço tudo isso, eu entendo, eu cuido, eu que dou o diagnóstico, eu prescrevo… e num piscar de olhos estamos praticando a fast medicine com a gente mesmo. Irônico, né?
Esse mês tive o contato mais duro e profundo com uma pontinha do meu coração que até então estava guardada em desenhos e memórias distantes: a pediatria. Crianças mexem comigo, suas almas são mais fortes e maduras que qualquer adulto. Elas, quando estão internadas, principalmente na cardiologia, é por que passaram ou ainda vão passar por uma serie de procedimentos invasivos e dolorosos, em uma sucessão incontrolável. Por isso, seu rosto e corpo podem mostrar um pequeno ser de 5 anos, mas seus olhos e sua alma refletem aprendizado e experiência de vida, de tudo imprevistos. São capazes de te deixar sem palavras.
Ao admitir M. na enfermaria de cardiopediatria, um menino de 11 anos -curioso, agitado, inteligente, lindos olhos cor mel e cabelos morenos, como um índio – ausculto seu coração e ele inquieto me pergunta por que está demorando tanto para ele ir para o seu quarto. Explico que a internação envolve muita burocracia e que além disso sua cama ainda estava sendo arrumada. E então ele me conta que não é a primeira vez que está sendo internado, que esta seria sua terceira cirurgia e que, além disso, seu aniversário é no dia seguinte. Ele olha para trás e senta na maca próxima de nós, cruza as pernas e catuca um machucadinho do pé. Faz um breve silêncio, levanta a cabeça e me pergunta bem nos meus olhos: “por que o corpo humano não é perfeito? Por que preciso consertar algo que nasceu comigo? A Bíblia mentiu, o corpo humano não é perfeito.”
Eu fiquei tão pequena que provavelmente só deu para ver o meu pijama verde igual uma metonímia. Me vi sem palavras, e confesso que isso é difícil. Olhei para aquele garoto e vi não só a curiosidade estampada em seus olhos, como o reflexo de tudo que ainda preciso aprender sobre a vida e que ele tinha acabado de me dar uma bela lição.
Voltei para casa com isso na cabeça e o peito apertado, e me questionei: o quanto levo dessas histórias para fora dos hospitais, será que realmente estou aprendendo com elas como deveria? Estou sabendo exercer a empatia ou a compaixão? Estou olhando para mim como M. olhou para si mesmo?
Quantas perguntas… A escrita aqui, penso, não é apenas para compartilhar um depoimento e um apelo para sermos slow com a gente mesmo, mas é um pedido de urgência em sermos mais sinceros com o que sentimos. Há pouco tempo escrevi aqui neste site sobre como devemos aprender com o afeto que temos com o nosso cuidado, porém o processo de cair, tropeçar, dar cambalhota e levantar com pequenos machucadinhos faz parte crucial disso. É não se deixar levar pelo que não é seu, é você ser o espelho de força para o outro, e reforçar sua dor mesmo sabendo que ela não é a sua.
Maria Julia Paes da Silva, enfermeira especialista em comunicação – com sua voz serena que tanto me acalma e me ensina, em seu livro ‘No Caminho- Fragmentos para ser o melhor’ disse algo que nunca mais esqueci. As histórias de vida que encontramos ao cuidar e os sentimentos de cada pessoa devem ser deixados com elas mesmas. O que fica é o aprendizado. Assim você eterniza o paciente libertando-o de você mesmo.
Pessoalmente acho isso um desafio, um grande ato de coragem e carinho que se pode ter ao cuidar de alguém. Quantas vezes você não se viu pensando num acontecimento triste do plantão? Num caso pesado que muito demandou de você? Já sonhou com algum paciente? Já se chocou com algo que ele teve coragem de te dizer e que você não teve de assumir para si mesmo? Não julgo aqueles que esquecem ou decidem se tornarem distantes, às vezes até creio que sua pressão arterial esteja melhor que a minha. No entanto, a questão não está em não pensar ou deixar de lado, está naquilo que você pode colher como aprendizado. E em perceber que não, você não é de ferro. E que bom!
É sobre ressignificar, saber transformar e se reconhecer: por mais difícil que seja em perceber que aquela dor não é sua, o que você sentiu é o impacto e ou mesmo o medo de vir a sentí-la um dia. Para te ajudar tenho uma dica: não ignore o que te afetou, busque ajuda. Se ignoramos o que sentimos nos defrontamos com um grande risco de desumanizar àquele cuidado e a nós mesmos. E quando entendemos que cada um está no seu quadrado, mas suas pontinhas fazem interseções suaves sabemos que podemos escolher como aprender.
Sei que parece fácil, acho que passarei a vida inteira exercitando isso, pensar em nós com carinho e enxergar os pacientes como professores. É saber controlar até onde eles podem ir. Às vezes, confesso, deixo eles tocarem até o fundo do meu coração, em outras deixo só uma pontinha. O importante é reconhecer que temos espaços em nós, somos um grande universo de ações e sentimentos, e em cada um deles temos nossas sensibilidades tão peculiares. A pediatria me fez enxergar um grande terreno que ainda preciso cultivar, cuidar e deixar sarar.
Enxergar-se através do outro é o ato de cuidado mais potente que você pode ter por si mesmo. Nesse instante você se dá conta do quanto você também não se cuida.
Fica aqui um pedido: cuide do seu coração também. Respeite os seus limites. Descanse. Faça algo que goste – dance, escreva, cozinhe, conviva com a família, reúna os amigos, saia um pouco do hospital e do seu consultório: não se cobre por isso. Mergulhe no mar, faça uma trilha, veja um filme que goste e reflita com cada cena, escute suas músicas preferidas e se permita esquecer, sem culpa, que antes de ser profissional da saúde, você é alguém.
Um grande corpo humano imperfeito cheio de qualidades e defeitos, mas que tem uma vida a viver para além do que é preciso.
Estamos preparados para sermos cuidados, de verdade? Creio que nunca estaremos, é um processo eterno. Mas, para aprender com a vida… ah…. estamos!
Ana Carolina Eiris Pimentel: enfermeira graduada pela Universidade Federal Fluminense ; Residente do Programa Cardiovascular da Universidade Estadual Rio de Janeiro vinculada ao Hospital Universitário Pedro Ernesto. Admiradora e estudiosa do Movimento Slow Medicine Brasil e eterna aluna paixonada pelo cuidado.
Comovente e oportuno depoimento….diz respeito não somente aos profissionais de saúde como a todos os cuidadores informais. Grata por compartilhar!