Por Flávia Arantes Pires Lage:
“Para mudar o mundo primeiro é preciso mudar a forma de nascer”
O parto é a via de chegada de várias pessoas a um novo cenário. Pais, irmãos, avós. A mãe que carrega aquele bebê passa a gestação inteira ouvindo como aquela é uma fase delicada, que requer cuidados especiais. Quase que automaticamente vemos na tecnologia uma aliada para que a gestação ocorra sem grandes intercorrências e nos aproxime do desconhecido. Somos influenciadas por aplicativos de celular que generalizam os casos e nos dão a falsa segurança desenhada em gráficos sem respaldo científico. Somos desencorajadas a conhecer nosso próprio corpo, desestimuladas a confiar nos instintos biológicos e, cada vez mais, acompanhadas de forma sistemática, sempre com auxílio de pesada tecnologia. Ultrassonografias com resoluções cada vez mais altas e exames cada vez mais preditivos. Passar pela gestação sempre sendo tocada, vista de todos os ângulos, mergulhada em consultórios e clínicas médicas nos fizeram, em algum ponto, pensar que o nascimento deve sempre ser um ato médico. Mas será que essa é a via de regra?
Em experiência pessoal, após a descoberta de uma gravidez logo no princípio (muito no princípio), pude me ver rodopiando em um sistema onde eu tinha a constante sensação de viver um antigo ditado que diz: “fulana está atacando pra não ter que se defender”. Pois bem, após incontáveis exames de Beta HCG, algumas frases como “você tem gestação de risco por ser obesa, ou ter mãe diabética”, entendi que eu teria que lutar para parir e teria que lutar para ter o direito a parir.
Mesmo com um plano de saúde excelente, de cara já me vi em consultas médicas com taxas de parto beirando a entradas de apartamentos. E acabei esbarrando no terno “humanizado”. Eis que o parto que eu gostaria de ter, era o bendito do denominado. Só não sabia que precisava ser rico para parir de forma respeitosa.
Tentava entender como o mesmo plano que cobria o melhor hospital da cidade, quiçá um dos melhores do Brasil, não poderia cobrir médicos que se dizem humanizados.
Estudo vai, leitura vem… entendi que, se eu realmente quisesse que o médico atuasse de forma ativa, como cortar várias camadas de pele, tirar o bebê, e me costurar de volta, eu encontraria filas de médicos dispostos a receber apenas pelo plano. Mas se a conversa fosse sobre o real significado do termo “obstetra” (aguardar ao lado, em latim), eu teria que dispor de uma minifortuna.
Passei por alguns obstetras durante a gestação, sempre na esperança de encontrar algum que comprasse minha briga (deveria ser sonho, não briga). O primeiro me disse que havia 80% de chance da gestação não evoluir, o segundo perguntou na QUARTA consulta se aquela era a minha primeira consulta, a terceira me pediu para refazer vários exames pelo simples fato de não ter gostado de como o laudo da clínica era escrito. A quarta, sugeriu indução com 38 semanas pelo WHATSAPP.
A história não é tão simples quanto parece, e a gravidez pareceu durar 3 anos. Perdi minha mãe no primeiro trimestre. Uma vida rodeada de médicos, internações, medicamentos. Desde criança aprendi a medir pressão, glicose, ler exames de sangue e urina. Eu cresci em quartos de hospitais acompanhando-a. Sua morte foi um acontecimento traumático, regado a muitas intervenções, aparelhos, médicos e diagnósticos. Enquanto aguardávamos e suplicávamos para que fosse rápido, eu só conseguia pensar: “Hospital não é lugar de morrer… não deveria ser de nascer!”
Quando no exame morfológico do segundo semestre, o médico me disse que havia uma dilatação dos ventrículos cerebrais, logo me vi repetindo esses exames, conversando sobre exames extremamente invasivos como amniocentese e tomografias. E eu só conseguia ter forças pra pensar: por que submeter meu bebê ao risco de um exame invasivo apenas para saber se ele terá uma condição genética não reversível?
Não sei dizer por exato quantas ultrassonografias realizei, mas posso dizer que foram mais de 20. Tudo era desculpa para um ultrassom. Imagem ruim, laudo ruim, aparelho ruim, suspeita de perda de líquido, suspeita de descolamento, suspeita de pré-eclâmpsia, suspeita de excesso de líquido. E como toda mãe ansiosa, sempre um bom motivo para ver o bebê lá dentro. E não entender nada. No fim da gestação, eu já conseguia prever a quantidade de líquido só pela medição da tela. Era artigo em cima de artigo, possibilidade em cima de possibilidade. Afinal, se eu não me apropriasse daquela ciência, me roubariam o parto, era o que eu pensava.
Quando na última semana de gestação, senti uma dor na nuca – e boa filha de hipertensa já sabia que isso poderia ser pressão alta – fui ao hospital. Mede pressão, normal. Troca de aparelho, alterada. Espera meia hora, normal. Toma remédio pra dor de cabeça e a dor não passa. Manda pro neurologista. Pressão alterada, mais um ultrassom. Doppler alterado, mas nem tanto. Induz? Não, vai pra casa e volta amanhã. Faço cardiotoco. Normal, mas volta amanhã. Faço ultrassom, normal. Médica pré-natalista não tem horário na agenda para atender, já que me recusei a contratá-la para o parto. Volta pro hospital. Outro dia, suspeita de perda de líquido, outro ultrassom. Bebê grande… induz? Ainda não, volta pra casa. Começam as contrações. Aguardamos ritmos frequentes de 5 em 5 minutos e partimos para hospital.
Primeira avaliação: 5cm de dilatação e bolsa íntegra. 5 horas depois, apenas 6cm de dilatação. E começam os questionamentos sobre o andamento do processo, e as sugestões de intervenções. Estourar bolsa, injetar ocitocina sintética, oferecer anestesia… e nos vendem tantas manobras invasivas travestidas de cuidado e zelo. A mãe, obviamente exausta e numa piscina de hormônios, aceita e pensa: como estou sendo bem tratada. Quase 30 horas após o início das contrações ritmadas, meu filho nasceu. Grande, pesando mais de 4 quilos. Com uso de manobras e de analgesia. No meu caso, acredito que as intervenções foram bem indicadas e que comparado à média nacional, meu parto foi uma exceção à regra.
Mas por que permaneço com a sensação de que não foi como deveria ser? Por que passei a gravidez inteira tendo que lutar e me preocupar com a via de parto? Por que em países com alto índice de desenvolvimento humano, partos acontecem em casa, sem uso de analgesia e com baixíssimas taxas de cesárea? Por que precisei fazer tantos exames invasivos, outros não invasivos e passei grande parte da gestação dentro de clínicas e consultórios se nunca fui oficialmente considerada gestante de alto risco? Será que se eu não estivesse tão preocupada com o momento do parto e todas as possíveis de ser enganada, o parto não poderia ter acontecido de forma mais rápida, menos complicada? Nunca saberei. Esse não deveria ser o papel da mãe. O de se proteger, resguardar, se armar contra um sistema que, na maioria das vezes, venderá a ela uma cirurgia de grande porte co
mo única saída, mesmo sem indicação médica real. O sistema como um todo (governo + sociedade médica + cultura) tem a obrigação de dar suporte a essas mulheres e tentar garantir sempre que o processo seja mais natural, mais seguro e mais saudável possível.
Mesmo com a perda da minha mãe, em momento algum fui questionada sobre meus sentimentos e o que isso implicaria na minha condição atual. Pelo contrário, evitavam o assunto como se eu fosse quebrar só de pensar sobre. Por que nunca me disseram sobre o blues puerperal e todos os sentimentos loucos que temos no pós-parto? Por que nos fazem temer e estudar tanto o parto que acabamos sem tempo para estudar amamentação ou o próprio baby blues? Substituem a empatia por excesso de zelo. E o excesso de zelo sempre acaba sendo demonstrado com pedidos médicos e exames em exagero.
A cultura nos leva a entender a gestação como uma condição médica, como doença. Perdemos a capacidade de entender o natural como saúde, a amamentação deixou de ser instintiva, e nos escondem sensações biologicamente normais pelo medo de nos desencorajar a sermos mães. Uma sociedade feminina que conquistou tantos direitos culturais, mas perdeu o direito de ser orgânica, de cumprir o curso natural da vida. Colocamos médicos, exames invasivos de rotina, tratamos como doença um evento tão fisiologicamente comum.
Hoje entendo que a importância de se introduzir outros papéis nesse cenário, como as parteiras e doulas, é para nos obrigar a enxergar este momento de um diferente ponto de vista dar e perceber que não estamos lidando com condições médicas. Não existe a necessidade de tratar todas as mulheres como enfermas que precisam de atenção 24h por dia. Pelo contrário, precisamos voltar a tratar gestação e parto como um evento biológico e fisiológico, que, pontualmente necessitará de auxílio de especialistas, mas que na sua grande maioria, prosseguirá sem intercorrências e com risco habitual.
Temos um grande caminho a percorrer até que isso retorne ao lugar do qual nunca deveria ter saído: ambientes caseiros como casas de parto ou as próprias residências, com uso de tecnologia apenas quando necessário, menos médicos, mais parteiras, e um tempo onde o termo “humanizado” não será usado apenas para garantir benefício financeiro daqueles que migraram para o sistema “novo”. Em que mulheres pobres, classe média e alta vão parir sem ter que desembolsar altíssimas quantias e da forma mais intimista possível. Situações em que a cirurgia cesárea será citada apenas em instâncias necessárias, e vamos agradecer que podemos usar da tecnologia como aliada, em benefício exclusivamente do binômio mãe-bebê. Entenderemos que só usaremos desse recurso para salvar vidas e não salvar apenas as agendas e contas bancárias da classe médica.
Meu questionamento é guiado por um desconforto, causado pelo excesso de médicos, hospitais, investigações, exames e diagnósticos. Era sempre a sensação de que um exame me levava a outros. Os exames não me traziam segurança ou conforto. Sempre havia a sugestão de algum rastreamento genético que PODERIA me dizer as predisposições do meu bebê ter um Alzheimer aos 60 anos. Eu só conseguia pensar: “pra quê?”
Talvez um bom caminho seja analisar modelos de países como Canadá e Holanda, em que as grávidas são atendidas em suas residências, com parteiras, doulas e midwifes e o exames são solicitados de forma racional, sem a prescrição de ultrassonografias mensais e exames de toque de rotina. Nessas sociedades a via de parto não é uma escolha da mulher. A mulher raramente questiona sua capacidade de parir, de exercer a função que seu corpo está naturalmente preparado. Em que os médicos mais atuantes na sociedade e comunidade são os médicos de família. E que o ambiente hospitalar é utilizado em casos de gestações de alto risco ou intervenções médicas necessárias.
É mais do que o momento de pararmos, desacelerarmos e entendermos que a filosofia da Slow Medicine, como em outras especialidades na medicina, precisa urgentemente ser incorporada ao setor obstétrico e pediátrico. Introduzir esse pensamento é lidar com as gestantes de forma mais respeitosa, levando em consideração a saúde mental da mulher (que está lidando com a fase mais marcante e importante de sua vida), é individualizar os casos sem a necessidade de prescrições de forma generalizada. É tratar a gestação e parto como eventos únicos, pessoais e diferentes em cada mulher. É tirar da mulher o peso de perder saúde mental para garantir saúde física. É acolher suas vontades e medos, e garantir que ela tenha conforto e confiança de que sua equipe irá, com certeza, tratar-lhe de forma respeitososa, com respaldo científico atual, sem submeter a parturiente as incertezas de um sistema que usa a tecnologia mais vezes a favor de quem a manipula do que em benefício do próprio paciente.
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Flávia Arantes é biotecnologista e doutoranda em Engenharia de Processos Bioquímicos. Admiradora dos olhos azuis que trouxe pra esse mundo, Isaac. Estudiosa de tudo. Inquieta e curiosa. Apaixonada por partos e por vidas. Militante da empatia. Mulher, mãe, cientista e artesã.
É um depoimento pleno de mágoas e, talvez por isto, parcial. Mesmo assim, coberto de razões, porque os fatores que permearam a gestação, especialmente a própria gestação, o renascimento da mãe em ambiente, ao que parece, hospitalar, tudo se soma. Mas o médicos podiam ter sanado isto com um atendimento adequado que, no Brasil, infelizmente, é caro mesmo, embora não extremado como a articulista disse. Isto de convênio é uma desgraça. Por isto o bom profissional foge (custa caro ao paciente e se paga mal ao médico). E o paciente, revoltado, emocionalmente fragilizado, tem suas razões, novamente. Agora, voltando ao inicio, um RN de mais de 4kg com histórico de diabetes permeando, um TP prolongado, eu nem aceitaria conduzir como PN. Pode ter sido por vias naturais mas o resultado para a estética pélvica é, muito provavelmente, um desastre. Uma pena!
Infelizmente, o que sobra em más práticas por conveniência, falta em informação cientificamente embasadas. Sugiro uma releitura do texto, juntamente com uma base de dados com artigos confiáveis e atualizados. Com respaldo sério na comunidade científica. Se quiser, posso sugerir alguns títulos. Mas de cara já consigo te apontar alguns indícios de falta de atualização na sua fala. Em primeiro lugar, minha musculatura pélvica, bem como a estética estão em perfeitas condições. Como estavam 15 dias pós parto. Bebê acima de 4kg, de forma isolada, não é indicativo de cesárea, bem como ultrassonografia não é balança e o cálculo de erro pode ultrapassar os 15%. Ter histórico familiar de diabetes, seja ela tipo 1, 2 ou mellitus, também não é indicativo de cesárea. Para DIABETES GESTACIONAL SEM SUCESSO DE CONTROLE, existe a literatura que aponta que após investigado de forma cautelosa, INDUÇÃO com 38-39 semanas PODE ser uma boa indicação. Trabalho de parto prolongado, com parto vaginal ao final, só nos indica que CADA MULHER E CADA TRABALHO DE PARTO são pessoa e eventos únicos, e que com auxílio de ferramentas, como o partograma, é possível se traçar uma rota de conduta e intervenções cautelosas e necessárias para se evitar uma cirurgia de grande porte, como a cesárea. A CIÊNCIA nos diz (repare que eu disse ciência, e não experiência própria) que Para condições indicativas de algum descontrole metabólico como pressão e diabetes, ou mesmo a obesidade, o parto vaginal irá favorecer o binômio mãe-bebê. Repare que minha crítica não é aos médicos que cobram caro para assistir partos normais e sim ao sistema que conduziu a comunidade médica para que os que aceitassem fazê-lo, tivessem que cobrar uma pequena fortuna. E é apenas um desejo e uma pequena contribuição para que TODAS as mulheres possam parir de forma respeitosa e SEGURA. Uma pena que não topasse assistir meu parto (quem conduz é a mulher). Demonstra que está ainda preso as amarras de uma cultura antiga e nada passada em evidências científicas.