Por Regis Vieira:
Parte I:
O encontro dos Rios Negro e Solimões é explicado pela frieza da ciência dada às diferenças de origem, acidez, temperatura, fluxo e densidade, mas prefiro a poesia das lendas da Amazônia que trazem as explicações de amores proibidos, espíritos guardiões dos rios que impedidos de se misturar trazem o negro e o marrom lado a lado, que se completam sem se desintegrar, guardando suas individualidades e suas riquezas, harmonizam-se num imenso caminho único buscando algo muito maior – o mar.
O 1º Meeting de Direito Médico organizado pela Drª Nirvana Fonseca, ocorrido em Manaus-AM nos dias 2 e 3 de fevereiro, trouxe pela primeira vez três iniciativas que caminham ombro a ombro na busca pelo cuidado apropriado, centrado na pessoa, propondo escolhas sábias pelas evidências, mas SEM PRESSA. Choosing Wisely, Cochrane e Slow Medicine são como o encontro das águas, guardam suas especificidades, mas quando se encontram se completam. Coube ao José Carlos Campos Velho e eu a missão de apresentar a um público de profissionais do Direito e da Saúde os conceitos primordiais desses movimentos.
Pela manhã o Dr José Carlos iniciou sua fala com a apresentação do Movimento Choosing Wisely a partir de uma entrevista concedida ao Movimento Slow Medicine pelo Dr Luis Claudio Correa (professor da Escola Bahiana de Medicina e um dos idealizadores do Choosing Wisely Brasil). Neste vídeo ele discorre sobre os conceitos e faz um importante entrelaçamento com o Slow Medicine. Logo após, o Dr José Carlos aprofundou os conceitos do Choosing Wisely trazendo a trajetória histórica, a expansão pelos diferentes países e encerrou estimulando os participantes a se engajarem.
Seguimos com as apresentações da iniciativa Cochrane e do movimento Slow Medicine Brasil, este foi realizado pelo Dr Jose Carlos trazendo seus conceitos e sua importante contribuição ao cuidado apropriado. Coube a mim o panorama científico atual, seus desafios e apresentação da iniciativa Cochrane. Esta é uma organização sem fins lucrativos, das mais importantes iniciativas do mundo, que promove a realização de revisões sistemáticas com o objetivo de contribuir para as melhores decisões em saúde.
À tarde retomamos com um lindo vídeo promovido pelo Slow Medicine Brasil no qual Ana Claudia Quintana Arantes, geriatra e Ana Lucia Coradazzi, oncologista, conversam sobre Cuidados Paliativos na atualidade brasileira, dissertando sobre conceitos como autonomia, obstinação terapêutica e futilidade médica, morte e luto. Os entrelaçamentos entre a Medicina Paliativa e Slow Medicine também são abordados. A dra. Luciana Dadalt, advogada, complementou de forma brilhante a discussão, comentando sobre Testamento Vital e Diretivas Antecipadas de Vontade.
Após todo caminho percorrido, teríamos conseguido atingir tamanha responsabilidade? Não saberia dizer, encontram-se respostas nos detalhes, nas expressões de espanto pela novidade, nos olhares atentos ao que se trazia de novo e no desejo explícito manifestado por novas oportunidades de encontro nos deixou a sensação de dever cumprido.
Parte II:
Não passamos pela Amazônia, vivemos!
Estava claro que nossa estadia em Manaus não seria protocolar, um simples ritual de apresentações. Queríamos mais, queríamos conhecer o povo Amazonense, suas falas, seus costumes, suas particularidades, e não se conhece recluso a quatro paredes, é preciso ir ao seu encontro.
Numa manhã de sexta feira chuvosa e nublada fui surpreendido pela ideia de conhecermos um Centro de Medicina Indígena, pensei logo ser um programa que não me agradaria, falo de Saúde Baseada em Evidências e irei a um Centro de Saúde Indígena? Meio cético e desconfiado animei-me a conhecer. Fui despindo os meus preconceitos ao longo do trajeto para que chegasse o mais receptivo possível, afinal eu estava ali para aprender. Chegamos numa sala com ervas a venda, artesanatos num canto, líquidos coloridos em vidros no outro, uma mesinha de escritório e atrás dele um índio jovem, cerca de 30 anos. Chamava minha atenção dois índios sentados que nos olhavam com serenidade, pareciam já nos conhecer, mais tarde descobriria se tratar das etnias “Desana” e “Tukano”.
O índio mais jovem, desenvolto no português, nos explicou que muito antes da colonização, Manaus já era uma Grande Maloca ( “grande casa” ) e guardava uma importância sagrada aos povos indígenas. Os espíritos dos seus antepassados permeavam a cidade e traziam proteção. Contou-nos a explicação da criação do Universo segundo a cultura dos seus povos, seus símbolos e significados, e como funcionava o atendimento do Centro de Medicina Indígena. Entre as ações curativas que enumerava deixava claro que os usuários que frequentavam o Centro eram estimulados a continuar os tratamentos convencionais.
O atendimento era feito com os pajés representantes das etnias. Não poderíamos ir a um Centro indígena e não solicitarmos a benção desta cultura milenar. Neste momento, meus preconceitos já estavam por terra, estava envolto numa áurea diferente, o olhar manso e verdadeiro daquele índio permitia que falasse qualquer coisa, eu iria consentir como uma criança sendo recém-alfabetizada. Caminhamos ao encontro dos pajés, sentia-me como quando fui ao confessionário pela primeira vez, os católicos me entenderão melhor, aquele misto de medo e apreensão. Como me comportaria? O que este homem irá falar? Se ele fizer algo que vai contra as minhas convicções? Irei privá-los dos detalhes do encontro, deixo o desejo de conhecê-los.
O que posso lhes dizer é que ir a Manaus e não conhecer o Centro de Medicina Indígena é perder a Slow Medicine em sua essência: o tempo é demonstrado em suas várias dimensões, o silêncio é terapêutico, a escuta é sem julgamentos, o olhar é amoroso, a benção realmente cura as feridas da alma…
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Regis Rodrigues Vieira, sou médico e preceptor da Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP/FASE) do Departamento de Saúde da Família e Comunidade, mestrando em Ensino na Saúde pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Centro Afiliado Cochrane Rio de Janeiro.