O episódio do Dalai Lama e o que isso diz sobre nós

abril 14, 2023
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10 min de leitura

Por: Andrea Prates

Colaboração: Ana Coradazzi

“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós.

José Saramago

Nos últimos dias, o Dalai Lama (título dado ao líder espiritual do Tibet) tem sido identificado de forma negativa, como nunca ocorreu antes. E, longe de o estar defendendo, faço um convite para darmos um passo atrás e ampliarmos nosso olhar sobre o que pode estar envolvendo uma situação tão delicada como esta.

É incontestável o prestígio e a admiração pela história do Dalai Lama e sua contribuição à cultura de paz. Laureado com o Nobel da Paz, defensor da compaixão e solidariedade, e cujo próprio nome tem um significado respeitável (Dalai Lama significa oceano de sabedoria). Uma vida impecável e profundamente inspiradora. Uma verdadeira unanimidade. Até então. Por um ato – no mínimo impensado, registrado em vídeo e exibido à exaustão, ele tem sido severamente criticado. No vídeo em questão, de 28 de fevereiro, na conclusão de um treinamento de 120 crianças, um menino quer abraçá-lo. O Dalai Lama lhe pede, antes, um beijo na bochecha e depois nos lábios. A seguir, encosta sua testa na do menino e estica sua língua, pedindo que ele faça o mesmo.

Segundo o Institute of East Asian Studies, da Universidade da Califórnia, Berkeley, na tradição tibetana, encostar a testa e colocar a língua para fora é sinal de respeito. Chupar a língua não. Alguns alegam que o Dalai Lama hesitou no entendimento do pedido do abraço e pode ter se enganado com o idioma, confundindo stick (destacar; stick out, colocar para fora) com suck (chupar). Mesmo após a sua assessoria pedir desculpas à criança e sua família, a indignação e a revolta não diminuíram. A internet e as redes sociais permitem não só liberdade de expressão como a expansão da comunicação, levando aos mais variados e intensos julgamentos. 

A pedofilia veio à tona e, certamente, merece todo rigor e atenção. O tema deve ser discutido e esclarecido sempre. O fato é que, de um dia para outro, a imagem do Dalai Lama ruiu e a destruição de alguém com a vida até então ilibada e merecedora de admiração é algo a ser tratado com sobriedade, respeito e – por que não? – justiça. Bem ao estilo da filosofia Slow Medicine. 

É de se esperar que um caso que envolva uma personalidade como ele desperte tamanha agitação, mas não chega a ser novidade nossa tendência a julgar, apressadamente e/ou preconceituosamente, uns aos outros. Fazemos isso o tempo todo, com as pessoas com quem nos relacionamos, nossos pacientes, ou com algum post semianônimo, na internet. Em parte das vezes, o julgamento é justo: crimes, erros e injustiças já foram evitados graças à rápida percepção de alguém sobre o que estava acontecendo. Mas o que preocupa é o contrário: e quando nosso julgamento nos engana? Quem paga a conta pela injustiça cometida? Da mesma forma que uma avaliação apressada de um paciente pode levar a um diagnóstico incorreto, que lhe custe a própria vida, uma análise superficial ou preconceituosa de um episódio como o do Dalai Lama pode custar caro para toda uma nação (sem falar dele próprio). Cabe a nós dar um passo atrás e agir com sensatez.

A quem isto interessa?

Um pedófilo costuma manter suas atitudes abusivas em segredo, em ambiente privado, jamais em público. Se o ato tivesse esta conotação, do ponto de vista tibetano, sua assessoria não teria publicado o vídeo. No mínimo, a divulgação do vídeo foge à regra.

A sucessão do XIV Dalai Lama está próxima e envolve interesses geopolíticos importantes. Desde a invasão do Tibet pela China, ele se exilou no Norte da Índia, em 1959, acumulando as funções de líder político e espiritual. É considerado, pelos chineses, um líder separatista. Aos olhos do Ocidente, que o abraçou, uma liderança resiliente e respeitada.  Com este episódio, a desmoralização da sua figura pública pode ter impacto no futuro do seu país. Como se dará o processo sucessório? O que pode acontecer com o Tibet?

A falta de sobriedade e cautela, aqui, pode definir desfechos difíceis de avaliar. Cabe, mais uma vez, ressaltar que não se trata de colocar panos quentes num possível ato de pedofilia, apenas porque se trata de uma personalidade importante. Falo de nos mantermos atentos aos vieses. Vieses de interesse, de confirmação ou de distorção permeiam nossas decisões o tempo todo, inclusive quando estamos exercendo nosso trabalho. Uma postura slow inclui identificá-los para que nossas opiniões e decisões sejam as mais corretas possíveis. Um viés político dessa magnitude deveria ser tratado da mesma forma.

Sobre os contextos

Sua assessoria alega que o Dalai Lama é espirituoso e provoca todos à sua volta. Há algumas semanas, assisti um documentário Missão: Alegria em Tempos Difíceis (Netflix), registrando o encontro dele com o Bispo Desmond Tutu. Ambos brincaram, riram e se provocaram, o tempo todo. Seu tradutor também foi entrevistado e justifica sua presença pela insegurança dele com o inglês, que não é sua língua natal.

Leonardo Boff saiu em sua defesa nas redes sociais. Conhece o Dalai Lama de perto e confirma seu espírito ingênuo e brincalhão.  Acredita que estamos vendo a situação apenas sob o viés ocidental.

Daniel Calmanowitz, monge e diretor da Fundação Lama Gangchen para a Cultura da Paz, em São Paulo, reforçou o possível choque de culturas, assegurando que não há erotismo no monastério. Em entrevista ao jornal O Globo, afirmou que o cumprimento é um hábito antigo tibetano, com o qual as pessoas se saúdam, para provar que não têm chifres e a língua bifurcada de um histórico rei-diabo.

Organizações de combate à violência infantil também se pronunciaram, afirmando que o episódio serviu de gatilho para vítimas de abuso. E que o ocorrido também pode incentivar pedófilos a legitimarem suas ações, a partir das imagens registradas. A criança que aparece no vídeo, acabou sendo mostrada sem restrições e sofrerá o impacto desta exposição. 

Entre tantas nuances de um mesmo acontecimento, também precisamos reconhecer que Tenzin Gyatso, o homem, que é considerado a 74ª manifestação de Avalokiteshvara Bodhisattva, o Buda iluminado e compassivo, tem 87 anos. Do ponto de vista gerontológico, ele apresenta algumas, ainda que poucas, limitações. Caminha com ajuda e pode, eventualmente, estar manifestando sinais de um comprometimento cognitivo.

Quanto mais avançada a idade, maior o risco de uma síndrome demencial. Após os 80 anos, 20% das pessoas idosas apresentam algum tipo de demência. Algumas delas cursam com alterações de comportamento, antes mesmo dos problemas relacionados à memória. As estruturas cerebrais afetadas, especialmente o lobo frontal, acabam por inibir o controle de atitudes que regulam a ética e a vida em sociedade.  

Muitos levantaram esta hipótese, de forma intensa e acalorada. É, realmente, uma possibilidade. As demências têm início insidioso e passam desapercebidas até que comportamentos inesperados ocorram. Isso pode estar acontecendo com o Dalai Lama. E, também, com amigos e familiares idosos que tanto criticamos. Essas pessoas precisam de uma avaliação clínica criteriosa e um check-up cognitivo detalhado, e não de um julgamento mundial sem critério e sem limites. 

Uma situação tão delicada

São muitas as perguntas: Demência inicial? Hábito cultural pouco aceito por nós? Ato impensado? Pedofilia? E ainda não temos respostas para elas.

Porém, apesar de nebuloso, as mensagens que este episódio nos traz são claras.  Qualquer forma de abuso deve ser combatida, sem exceção. Por mais que admiremos alguém ou o que representa, temos que considerar a possibilidade do erro, do não aceitável, até. 

Antes, porém, precisam ser compreendidas as questões culturais que permeiam os costumes de cada país, assim como excluídas as condições patológicas que possam levar a comportamentos inadequados.

O que cabe, no momento, é uma reflexão ponderada sobre situações complexas como esta. E, acima de tudo, tratar as pessoas com respeito. Vidas podem ser destruídas ou personalidades “canceladas” por desinformação. 

Como já dizia Victor Hugo, “o tempo não só cura, mas também reconcilia.” É preciso dar tempo ao tempo para melhor compreensão dos fatos. Que possamos ser sóbrios, respeitosos e justos, não apenas com o Dalai Lama, mas também uns com os outros. Sempre.


Agradecimentos: Este artigo contou com a leitura ponderada de Vera Bifulco e a revisão ortográfica cuidadosa de Clelia Riquino. Nossa gratidão por sua colaboração.

Andrea Prates: Médica geriatra há 35 anos. Fascinada pela passagem do tempo e pela construção do curso de vida na longevidade, em qualquer idade. Nesta área de estudo, dedicou-se às questões de prevenção e promoção de saúde, que a levaram a fazer o mestrado na Universidade de Londres e adquirir experiência internacional com colaborações junto à Organização Mundial de Saúde. Atua em palestras, cursos, workshops e consultorias. Sente-se em casa na natureza – especialmente nas montanhas e junto às árvores. Acredita na generosidade e na alquimia sagrada que existe no ato de cozinhar. É mãe (orgulhosa) de André, estudante de Artes, com quem aprende muito sobre humanidades. Música, cinema e literatura alimentam sua alma, e a fotografia a ajuda a expressar o seu olhar sobre o mundo. Meditação e caminhadas a equilibram, assim como vivenciar a espiritualidade.

Ana Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Oncologia Clínica e pós-graduada em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da sua vida. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio. Seu livro mais recente, “De Mãos Dadas” propõe um novo conceito, Slow Oncology – a Oncologia sem Pressa, e é inspirado em uma das principais obras da Slow Medicine, “My mother Your Mother“, de Dennis McCullough, geriatra americano.

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Seméia Corral
Seméia Corral
1 ano atrás

Eu acredito que ele deva ser investigado a fundo devido a um suposto comportamento abusivo com uma criança. A lei deve ser para todos, e não pq ele é o Dalai-lama que deve ser diferente. Aqui no Brasil, João de Deus também era credível, e tinha uma máfia de tudo que é mais podre ao redor dele. Então, tenho muita convicção que este é mais um farsante vestido de grande pensador….

Humberto Passos
Humberto Passos
1 ano atrás

Excelente ponderações diante de tamanha complexidade.
Registro meus parabéns pela forma tão honesta feita. Ainda teremos muitos desdobramentos disto…e neste momento apenas observar por estas diversas janelas ventila nosso olhar…Parabéns

Maria Dolores Toloi
Maria Dolores Toloi
1 ano atrás

Linda reflexão!! Precisamos publicar, ler e comentar muito sobre a comunicação não violenta. Vamos em frente!!

Simone Ramounoulou
Simone Ramounoulou
1 ano atrás

Parabéns Dra Andrea! Gostei demais!
Ponderada e sabiamente equilibrada, como sempre! 

Antonio Jordão Netto
Antonio Jordão Netto
1 ano atrás

Excelente explanação sobre uma ocorrência que provocou muitas controvérsias e choques de opiniões. Parabéns às duas competentes profissionais!

Juliana
Juliana
1 ano atrás

Idolatrar homens e mulheres cria situações de abuso! 

Emilio Moriguchi
Emilio Moriguchi
1 ano atrás

Excelente reflexão: verdadeiro e necessário!
Muito obrigado!!!

Luciana
Luciana
1 ano atrás

Perfeito. Obrigada. Vai muito de encontro com o que penso mas não havia conseguido costurar tantos pontos. 

Sumaia Georges
Sumaia Georges
1 ano atrás

Parabéns ao movimento Slow Medicine por mais um artigo oportuno e esclarecedor.

Jorge Knak
Jorge Knak
1 ano atrás

Reflexão essencial.🙏

Rodrigo de Oliveira
Rodrigo de Oliveira
1 ano atrás

Ok , julgamentos a parte! Mas na presente realidade, quem se disporia a escrever um texto com brilhantes ponderações a favor do suposto abusador, caso ele fosse um pastor evangélico ou padre ?? 🤷

Ana Paula Winik
1 ano atrás

Excelente reflexão.

Ivany Antiqueira
Ivany Antiqueira
1 ano atrás

Excelente análise enriquecida de informações pouco divulgadas neste momento.obrigada .Temos que acompanhar …

Maria Teresa de Campos Velho
Maria Teresa de Campos Velho
1 ano atrás

Excelente artigo. Aponta a prudência, a cautela no julgamento. Conhecer, ponderar, contextualizar antes de julgar o que, talvez, não habitual, deixe transparecer aquilo que, em culturas diferentes, muito possivelmente, não é.

Sumaia
Sumaia
1 ano atrás

Que bom ler ideias que vão além do óbvio, do explícito e linear. Ser humano é complexo e carecemos  de leituras assim, que contribuam para aflorar a vagareza necessária para análise mais profunda e ampla dos fatos. É um movimento contra a natureza espetaculosa, impulsiva, fragmentada, hiperativa  da mídia social, que estamos submetidos… obrigada.

Paulo Antonio Chiavone
Paulo Antonio Chiavone
1 ano atrás

Parabéns. Texto pertinente e equilibrado.

Pedro I. Mezzomo
Pedro I. Mezzomo
1 ano atrás

A ponderação ao analisar o acontecimento é correta. Cabe, no entanto, lembrarmos que Dalai Lama conhece com detalhes, pela sua vivência, os comportamentos de outras sociedades, com seus prós e contra pela atitude.

Raoní Teixeira
Raoní Teixeira
1 ano atrás

Gostaria de acrescentar ao excelente texto algumas reflexões.
Sobra estarmos vendo a situação apenas sob o viés ocidental, seria possível fazermos diferente, já que somo ocidentais? E caminhando nesse raciocínio, independentemente do significado particular das atitudes do Dalai Lama (para ele, para o memino e para os indivíduos que compartilham o contexto cultural em questão), a repercussão do ocorrido talvez fale mais de como nós ocidentais. Fale do que aceitamos e do que não toleramos mais na sociedade. E também fale do respeito que temos aos que sofreram abusos e se sentiram desprotegidos ao verem figuras de poder agirem desta maneira condenável (aos olhos ocidentais) explicitamente.
Se o Dalai Lama importunou sexualmente o menino ou não, as autoridades deverão investigar e chegar às conclusões que esclareçam o caso. Mas decidir quem manteremos como exemplo, como modelo de comportamento ou como inspiração, frente às reflexões contemporâneas e aos valores que queremos para nossa sociedade, cabe a nós hoje.
Sendo assim, mesmo que se conclua por explicar o acontecido como apenas um “contraste cultural”, ainda assim, o olhar crítico e a estranheza que acerta ao reconhecer que esse comportamento não cabe em nós e que nossos heróis precisam nos representar vejo como bem vindos.

Carolina Swinton
Carolina Swinton
1 ano atrás

Demência foi a primeira coisa que me veio à mente.  Depois de uma vida farta de sabedoria e tanta doação, demência é a única explicação. 

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