“Um homem verdadeiramente formado é alguém que sabe como se relacionar com o mundo como um todo.”
Josef Pieper
Por Jaqueline Doring Rodrigues
Há muito se questiona o modelo padrão de currículo universitário em saúde, em que matérias que exijam habilidades técnicas e objetivas recebem o destaque em detrimento de outras do campo das humanidades. O fato é que também verifica-se o contrassenso no mercado profissional onde a exigência se dá por questões que extrapolam o campo técnico e teórico. Dentro da universidade, há poucos e breves espaços para reflexão com os alunos que possuam considerações em questões mais profundas. As angústias geradas no construto psicológico do estudante não recebem a atenção necessária e, assim, perde-se um tempo precioso na graduação que poderia ser usado neste sentido.
Somente mudar programas e currículos não repercutirá na melhoria das academias. Há que primeiro formarmos a nós mesmos, professores, como sujeitos protagonistas de uma docência atenta as necessidades pessoais dos alunos e do novo profissional. Esse aluno, pós pandemia, apresentará uma demanda ampliada em termos de políticas em saúde e globalização. Precisaremos de um maior rigor nas estratégias do ensino da pesquisa baseada em evidência, necessidade do domínio em trabalhar com equipes multiprofissionais, uma abordagem em temas como gestão, liderança, sustentabilidade e voluntariado. Para isso, é necessária uma afinidade filosófica a fim de orientar uma forma de vida compatível: mais saudável, simples e harmoniosa.
Nos últimos anos foram estruturadas ligas acadêmicas de Slow Medicine por todo o Brasil e uma disciplina eletiva dentro de uma faculdade de medicina. Essa iniciativa buscou atender a demanda existente por parte dos alunos de trabalhar o espírito “slow”: comprometido com uma via mais humana para a prática médica. No entanto, de uma maneira mais geral, pouco tem sido discutido a respeito do chamado currículo oculto, o qual se constitui daqueles “ensinamentos” não formalizados dentro de uma graduação, transmitidos através de exemplos, dinâmicas de um serviço, hábitos dos envolvidos, característica da formação do docente, entre outros. Esses ensinamentos valiosos fazem parte da formação, porém ocultamos o seu papel e, assim, em certos casos pode ser um desserviço a uma formação humanizada. Ao falar das experiências escondidas nas instituições, Josef Pieper traz a necessidade de uma abertura, já que nelas podem ser consolidadas experiências humanas fundamentais.
Universidade vem da palavra “universum” que constitui o todo, universalidade. Para exercer a idealizada influência no cenário atual da educação as palavras precisam ter força e só terão se estiverem baseadas em algo verdadeiro. Além disso, as palavras precisam ser claras e objetivas, o que constitui um desafio ao tratar do tema. Precisamos de “uma receptividade do espírito para a totalidade do mundo.” A experiência da universidade tem por sujeito a natureza do espírito humano e essa natureza envolve a capacidade de relacionamento, de estar em contato com o que existe.
O Manifesto italiano da Slow Medicine tem como palavras de ordem uma medicina mais sóbria, respeitosa e justa, determinantes para uma boa prática médica. Uma instituição oferece ordem a uma comunidade e quando a casa está em ordem todos os relacionamentos sociais da humanidade também estão. Então, ela torna-se um solo nativo em que o exercer seus deveres morais acontece por natural afeição e seus princípios éticos serão ampliados às relações humanas em geral. Neste cenário encontra-se o maior potencial da universidade e a principal razão de falarmos sobre isto neste momento histórico. Afinal, tratando-se do Brasil, em que uma grande parte da população sente-se órfã de liderança política, nada mais propenso a causar desordem na mente humana que perder a referência – e isso tudo em meio a uma crise de múltiplos impactos e que, primeiramente, ainda ameaça a sua própria vida.
A pandemia pelo Coronavírus (covid-19) acelerou a urgência de medidas que englobem atuações mais humanas e coletivas. Tendo como exemplo a formação médica, somos constantemente preparados para atuar em situações complicadas. Dessa forma, este se torna um campo seguro, porém, não temos o mesmo preparo para atuar e solucionar questões complexas – já que estas invariavelmente exigem que se tenha habilidade em diferentes áreas da dimensão humana.
Uma preocupação ao se trabalhar com disciplinas isoladas é a formação de um pensamento linear e restritivo, o qual pode inclusive gerar fanatismos. Há que se enfatizar numa abertura mental para um conhecimento embasado no verdadeiro pensamento racional, proveniente da razão, que possa gerar a convicção. Para isso, poder-se-ia otimizar esforços em desenvolver no aluno o discernimento através – e por que não? – da dialética. A intenção é que ao término de um curso ele possa perceber que não simplesmente agregou conhecimento, como sabe exatamente onde, com seu conhecimento, se posiciona no mundo.
Longe de ser uma solução às universidades, mas com uma evidência incontestável, a filosofia aliada a ciência permite a aspirada ampliação de visão. E sendo assim, Pieper traz a filosofia como centro da universidade. Uma dificuldade enfrentada pelos profissionais da saúde na pandemia foi a não naturalidade em atuar num cenário de incertezas e a falta de conforto proporcionada pela ausência de soluções bem definidas. Essas questões para serem resolvidas são dependentes de uma bagagem humanista na saúde. Aquele que de imediato renuncia discutir questões que não possuem uma resposta exata, que se especializa no mais alto grau e restringe-se no menor grau a olhar o todo, não estará apto para lidar com problemas complexos. Na complexidade precisa-se do ser complexo.
“Ao homem não é necessário apenas ampliar seu saber acerca do mundo, mas talvez seja mais necessário ainda lembrar-se das verdades imutáveis e ser lembrado delas. E fazer isto de espírito inteiramente vigilante, sem fugir romanticamente da realidade, nada esquecendo ou desprezando do que, criticamente, sabemos sobre nós próprios e sobre o mundo.”
O que se tem hoje nas universidades são disciplinas especializadas e que não se comunicam entre si. O novo cenário da educação exigirá um fator de ligação entre as áreas que forneça um diálogo plural entre elas. Em tese, apenas uma consideração filosófica seria capaz de manter a verdadeira unidade no universo acadêmico. O espírito slow nas universidades acelerará as bases estruturais necessárias na educação – trata-se, não de uma visão de mundo, mas de uma visão humana do mundo.
* Esse texto trata de uma reflexão sobre o escrito do filósofo alemão Josef Pieper, do ano de 1963, “Abertura para o Todo: a chance da Universidade”. O texto original está disponível no link Josef Pieper.
Jaqueline Doring Rodrigues: Sou graduada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo ( UPF) em 2011. Fiz Residência de Clínica Médica e de Geriatria. Especialização em Cuidados Paliativos na PUC/PR. Sou presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), regional Paraná. Encantada pelas pessoas e suas histórias, encontro na escrita e na filosofia o meu lugar no mundo.
Reflexão eivada de relevancia profissional aliada a filosofia providencial e humana ;texto retrata. talvez
aspectos global—planta-se assim uma semente curricular.
Excelente texto. No Brasil os pacientes vão a vários especialistas e, no final, ficam hipermedicados pois acumulam o que todos receitaram. Na pandemia, vimos um fenômeno interessante de desiatrogenese que contribuiu com uma sobrevivência de outras patologias, isolando a letalidade pelo Covid. Poucos viram isto.