O gosto amargo das framboesas

abril 27, 2020
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Por Ana Lucia Coradazzi e Jaqueline Doring Rodrigues:

“Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa. Só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva.”

Caio Fernando Abreu

            Muitos anos atrás, numa época em que eu estava começando a aprender como funcionavam os estudos que testavam novos medicamentos para o tratamento do câncer, uma colega me pediu ajuda para preparar uma aula sobre pesquisa clínica, que seria ministrada num congresso médico. Tudo o que envolvia pesquisas com novos medicamentos me empolgava. Como oncologista, eu assistia a avanços surpreendentes no tratamento dos mais diversos tipos de câncer. Via a cura de pacientes que, poucos anos antes, não teriam qualquer chance de sobreviver à doença. Mesmo quando a cura ainda não era possível, conseguíamos aumentar (consideravelmente) o tempo de vida dos pacientes e permitir que eles pudessem sonhar e ter uma vida mais digna e plena. Qualquer nova droga que surgia no horizonte, mesmo com estudos preliminares, me enchia de esperança e empolgação. Eu queria prescrevê-las todas, para todos os meus pacientes. Para um médico, poucas coisas são mais eletrizantes do que oferecer um novo tratamento a um paciente desesperançoso. É o momento em que mais nos aproximamos de uma divindade, e nos tornamos quase super-heróis. Assim, não pensei duas vezes ao aceitar ajudar minha colega, e lá fomos nós.

Nas semanas seguintes mergulhamos no estudo dos primórdios da pesquisa clínica, buscando entender como a ciência tinha chegado aos dias de hoje com tantos feitos incríveis e resultados quase que milagrosos. E, quanto mais estudávamos, mais abismadas ficávamos; não pelos muitos sucessos, mas pelos assustadores fracassos. Líamos histórias repugnantes sobre os tempos em que pesquisas cruéis eram praticadas em seres humanos sem qualquer preocupação com sua segurança ou bem-estar. Víamos fotografias de judeus nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, quando eram transformados em “sujeitos de pesquisa” pelo médico alemão Josef Mengele e submetidos a atrocidades indescritíveis em nome da ciência. Conhecemos casos escabrosos de preconceito racial, como a “pesquisa” realizada com homens negros portadores de sífilis numa universidade americana, na qual essas pessoas não recebiam qualquer tratamento para a doença para que se pudesse estudar a evolução dela – mesmo já sendo amplamente conhecido e divulgado no mundo que a penicilina poderia tratá-los com sucesso. Muitos sofreram com os sintomas cruéis da doença e morreram dela sem qualquer tratamento e, obviamente, sem nenhuma dignidade.

Já estávamos convencidas de que tais atrocidades só aconteciam por estarem atribuídas a “pesquisadores” cruéis e mal-intencionados (que se preocupavam mais com seu prestígio científico do que com os benefícios que suas descobertas poderiam trazer para a Humanidade) até que nos deparamos com o incidente da sulfonamida, em 1937. A sulfonamida era um antibiótico amplamente utilizado para o tratamento de infecções por estreptococos, com uma eficácia impressionante, mas que até então só era disponibilizada na forma de comprimido ou pó. Isso limitava seu uso para a população pediátrica, o que levou o farmacêutico e químico Harold Cole Watkins a testar substâncias nas quais o pó de sulfonamida pudesse ser diluído e, assim, administrado às crianças. Watkins descobriu que o dietilenoglicol se prestava perfeitamente a isso, garantindo ótima diluição da sulfonamida. Rapidamente a empresa farmacêutica responsável conseguiu associar fragrância e coloração de framboesa à diluição, produzindo mais de 600 frascos para envio imediato para todo o país. Em menos de 15 dias, cerca de 130 pessoas, em sua grande maioria crianças, morreram envenenadas ao se intoxicarem pelo dietilenoglicol, hoje reconhecido como substância tóxica para seres humanos, podendo causar insuficiência renal e sintomas neurológicos graves.

Harold Cole Watkins

O incidente da sulfonamida nos deixou com o coração sombrio. Era uma droga já amplamente utilizada em adultos, com grande sucesso no controle dos quadros infecciosos, com mínimos efeitos colaterais. Todos os indícios apontavam para o provável sucesso também no tratamento de crianças. Provavelmente Watkins foi tomado pela mesma empolgação que nós duas tínhamos ao oferecer novos tratamentos para nossos pacientes com câncer e, certamente, seu coração estava inundado de boas intenções quando diluiu o remédio eficaz num veneno letal. Entendemos, no fundo da nossa alma científica, que a ciência não pode ser feita apenas com boas intenções. Foi a partir de experiências escabrosas como essas que o método científico e os princípios da bioética se desenvolveram: para proteger os pacientes de pesquisadores mal-intencionados, de interesses farmacêuticos torpes e, também, de médicos bem-intencionados que possam colocá-los em risco sem intenção de fazê-lo.

Às vezes, é muito duro aceitar as limitações da medicina. Não é fácil lidar com um paciente ainda tão cheio de sonhos sentado à sua frente, mas para o qual não existe qualquer tratamento comprovado que possa controlar seu câncer. Meu coração dói ao vê-lo com medo, ao assisti-lo reprogramar sua vida para um tempo muito mais curto do que ambos gostaríamos. Meu cérebro luta contra esse tremendo desconforto tentando antecipar resultados de estudos, extrapolar dados de tratamentos testados para outras doenças ou, até mesmo, tentando convencer a mim mesma que se o medicamento já foi testado um dia, mesmo que num contexto totalmente diferente, é seguro prescrevê-lo (o que custa tentar, né?). Eu adoraria (mesmo) fazer tudo isso, mas minhas mãos estremecem ao pensar no gosto amargo que minha empolgação pode gerar: gosto de framboesa. É nesses momentos de angústia que me lembro do princípio mais importante da medicina: Primum non nocere et in dubio abstino (“Em primeiro lugar, não cause dano; se em dúvida, abstenha-se de intervir.”). Não posso oferecer milagres aos pacientes e muito menos iludí-los com tratamentos que ainda não sabemos se podem beneficiá-los – e pior, que podem resultar em ainda mais sofrimento. Todos os anos temos ao nosso alcance uma infinidade de novas drogas cujos resultados preliminares se mostraram promissores, mas que ao serem testadas de forma mais incisiva se mostraram inúteis ou até maléficas aos pacientes. São incontáveis as situações em que já vimos isso acontecer. E quanto mais nos familiarizamos com a análise crítica dos resultados dos estudos clínicos, mais criteriosos ficamos antes de indicar um tratamento para alguém. Acreditem, é preciso ter muito mais coragem e compaixão para não indicar um tratamento do que para indicá-lo.

Hoje, muitos anos depois daquela aula e de todo o aprendizado que ela nos trouxe, meu olhar sobre os feitos da medicina mistura a ciência e a compaixão. Todos os dias fiscalizo meus pensamentos e minhas palavras para que o desejo de ajudar um paciente tenha o mesmo peso que o receio de causar-lhe dano. Respeitar o rigor científico necessário para prescrever um tratamento qualquer expõe nossos pacientes a menos riscos, e isso é muito bom. Mas há outro motivo para que essa seja a postura mais sensata, principalmente frente a situações críticas para as quais a medicina ainda não encontrou uma solução: o rigor científico nos torna mais humildes. Entender que não temos solução para tudo, que não somos capazes de controlar a natureza humana a nosso bel-prazer e que somos tão frágeis quanto qualquer um de nossos pacientes nos faz mais humanos e sensíveis, e nos aproxima das pessoas em seus momentos mais difíceis. Quando a medicina não pode oferecer nada a elas, é nossa alma humana quem pode ajudá-las.  É ela quem pode manter a serenidade e oferecer aos pacientes a consciência que precisam para vivenciar suas duras experiências. É ela quem não permitirá que eles se percam em meio às expectativas irreais, desperdiçando um tempo precioso e um aprendizado irrecuperável. Nossa alma humana, despida de ilusões e de arrogâncias sem sentido, é que estará lá, ao lado deles, criando os laços mais bonitos que somos capazes de construir: os de nos reconhecermos humanos, falíveis e mortais.

____________

Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou outro livro, escrito em colaboração com o Dr. Ricardo Caponero: Pancadas na Cabeça.

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Jaqueline Doring Rodrigues, médica geriatra que ao se ver no olhar do outro procura as respostas para as dores do mundo.

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Mônica
Mônica
4 anos atrás

Perfeito

Carlos Starling
Carlos Starling
4 anos atrás

Excepcional artigo! Lúcido e repleto de referências históricas fundamentais para não esquecer-nos das atrocidades cometidas em nome da ciência.
Vendedores de ilusão são pródigos de esquecerem o viés estatístico das observações superficiais, por vezes, recheadas de boas intenções, porém danosas do ponto de vista de saúde pública. Parabéns Ana Lucia.

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  Carlos Starling

Obrigada, Carlos!! A história médica está cheia de catástrofes bem intencionadas…

Jordano
Jordano
4 anos atrás

Ver os leigos discutindo o uso de um remédio como se fosse uma discussão de futebol eu acho até compreensível. Mas ver os colegas fazendo isso me dá uma certa tristeza. Parabéns pelo artigo!

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  Jordano

Pois é… não se trata de elitizar o conhecimento, e sim de estimular o bom senso das pessoas (inclusive para não opinar sobre assuntos sobre os quais não tem a menor ideia…). Obrigada!

Cristina Amorim
Cristina Amorim
4 anos atrás

Gostei do seu comentário!! Meus parabéns. Concordo plenamente com você!!

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  Cristina Amorim

Obrigada, Cristina! Bom senso é sempre bem vindo, né?

Daniel Marcos
Daniel Marcos
4 anos atrás

Brilhante comentário!

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  Daniel Marcos

Obrigada, Daniel!

Evilla
Evilla
4 anos atrás

Obrigada pela lucidez de suas palavras!

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  Evilla

Eu é que agradeço!

José Carlos Pereira
José Carlos Pereira
4 anos atrás

Não sou médico e acho que cada profissional deve ser guiado pela sua consciência, fazendo jus ao aprendizado e juramento. Se fosse seu trabalho sempre medido pelo resultado favorável, talvez , ao invés de uma vida média de 70 anos, buscassemos a vida eterna, mesmo sabendo que todo ser vivo tem limitação cabendo ao profissional a tentativa de afastar os males que possam perturbar seu paciente.

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