O Luto: uma travessia sem pressa

setembro 10, 2024
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9 min de leitura

Por Carla Rosane Ouriques Couto

“A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”. Joan Didion

Resenha do livro “O Ano do Pensamento Mágico”, de Joan Didion

     A história de Joan ocorreu há vinte anos, num país desenvolvido, sendo ela uma intelectual reconhecida no campo da arte: jornalista, escritora e roteirista de cinema, vivendo uma vida confortável e segura. Porém a dor de ter perdido o companheiro John, após 40 anos de um casamento suficientemente feliz, de forma súbita, é universal. Sua obra é plena de elementos que nos permitem entender com detalhes o processo psíquico de luto, suas repercussões na vida familiar e social e suas possibilidades de cuidado. Esses são aspectos muito importantes para a filosofia Slow Medicine. 

     A morte de John vem num jantar, num dia que seria normal. Os dois voltavam de um hospital onde estava internada sua única filha, Quintana, em coma há 5 dias, após uma gripe. John cai sobre a mesa e tem morte imediata. Todos os procedimentos posteriores são apenas heroicos ou burocráticos. Cinco meses depois da morte de John, e com a filha ainda bastante doente, Joan resolve escrever, apesar de entender que as palavras não bastavam para encontrar um significado em sua perda. Porém repete o que a fez escritora: seguir no ritmo de palavras, frases e parágrafos como uma forma de lidar com o tempo. Ou como uma forma de parar o tempo. Ou ainda uma forma de voltar no tempo.

     Toda a narrativa é um diálogo com o tempo, um resgaste de cada ocorrência, um abrir caminhos pelos labirintos da memória. Pequenos detalhes cotidianos provocavam o que Joan chamou de “vórtices”: um retorno imediato a momentos passados com John. 

     Ao longo de todo o relato aparecem mecanismos de consolo singulares: acender a lareira, acender as velas, cozinhar os pratos preferidos ou tomar a canja trazida por amigos: “era a única coisa que eu conseguia comer…”

     Os relatos dos trâmites do serviço de saúde ao comunicar que o caso era irreversível, mostram todo um universo de sentimentos no interior de uma mulher aparentemente calma, que não vai dar trabalho à equipe médica. O pensamento de Joan voa desconexo e incrédulo, mas ela reage calmamente a todas as instruções de médicos e assistentes sociais. Mais tarde reconstrói passo a passo esses diálogos, tentando desesperadamente entender o jargão médico e todo o contexto de uma parada cardíaca. Por mais que tente, ela não consegue e precisa de ajuda de livros ou tradução de amigos. Um aspecto importante para profissionais de saúde: ainda falamos uma outra língua, até para pessoas muito cultas. 

     O livro de Joan inicia com uma detalhada investigação de tudo o que ocorreu na noite do final de 2003. Mais tarde reconhece tudo como um esforço para averiguar seu próprio envolvimento ou sua própria culpa – poderia ter feito algo diferente? – “você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina…”

      Todas as palavras e atitudes de John que pareciam premonitórias são recordadas com detalhes: mesmo quando é súbita ou acidental, a morte sempre “anuncia sua chegada”? Apenas o homem moribundo sabe quanto tempo lhe resta…

     “A dor da morte de uma pessoa amada é diferenteNão há distância. Vem em ondas, paroxismos, apreensões súbitas que enfraquecem os joelhos, cegam os olhos e cancelam a normalidade da vida. Praticamente todos que já vivenciaram essa dor mencionam o fenômeno das ondas. Foram definidas pelo psiquiatra Eric Lindemann em 1944: “sensações de angústia somática que se apresentam em ondas que duram entre vinte minutos à uma hora cada, aperto na garganta, falta de ar, necessidade de suspirar e uma sensação de vazio no abdome, falta de força muscular e uma intensa angústia subjetiva, descrita como tensão ou dor mental”” (Didion, p 31). Joan relata que essas ondas chegaram cedo, no dia seguinte à morte. Há todo um universo subjetivo em cada pessoa enlutada, e através do relato de Joan percebe-se como quem está fora desse universo, pouco o compreende. Nesse mesmo dia começa o que chamou de “pensamento mágico” que se resume na crença de que “ele ainda iria voltar”. 

     A autora lembra a sabedoria atemporal de Freud, que em 1917 disse que alguém em luto não é de forma alguma um doente, e deve ser tratado como alguém que sofreu um desvio de sua atitude normal diante da vida. É uma dor peculiar que não deve em nenhum aspecto ser considerada uma condição patológica tratável por médicos. Qualquer interferência nessa dor é inútil e até mesmo prejudicial (Freud, 1915). 

     O pensamento mágico do retorno de John acompanha Joan (“não vou doar os sapatos porque ele pode precisar”), que segue cuidando da filha, gravemente doente. Nos períodos de melhora de Quintana, os vórtices retornam com mais força, e Joan toma cuidados para evitar pessoas, lugares ou viagens que lhe lembrem momentos importantes com John. Autorizar autópsia, preparar o velório, cremar, ler o obituário, comparecer as homenagens dos amigos…nada era mais forte do que o pensamento mágico. A realidade da morte permanece no consciente, com aparente assimilação da perda. Mas no inconsciente, também um lugar mágico como os sonhos, não é assim. Joan faz um interessante paralelo entre o que dizem os “especialistas em luto” e o seu próprio luto. Não há muito em comum: “você se senta para jantar, e sua vida termina”.

     Curiosamente Joan encontra maior consolo num livro de etiquetas em funerais, do que nos artigos de médicos e enfermeiros especialistas em luto ou como dizemos em meios científicos em tanatologia. 

     Como se sente alguém em luto: “As pessoas que perderam um ser amado recentemente têm um certo olhar, reconhecível talvez apenas por aqueles que viram esse mesmo olhar no próprio rosto. É um olhar de extrema vulnerabilidade, desamparo, transparência. Eu me senti invisível por um período, incorpórea. Parecia ter atravessado um desses rios lendários que separam os vivos dos mortos, entrando em um lugar onde só podia ser vista por aqueles que também tinham perdido alguém” (Didion, p 77). 

     Todos esses dias mágicos se passam enquanto ela tem que decidir se permite que a filha na UTI faça uma traqueostomia, tem que providenciar mudanças de hospital, tem que seguir tentando controlar o que acontece com os médicos e suas decisões. Trata-se de uma outra mágica: como pensam e decidem os médicos. A voz do marido ressoa: “pelo menos uma vez você não pode deixar para lá?” Mas “deixar para lá” é se sentir impotente. 

     Num mundo onde a maioria dos pacientes resolve “deixar para lá” e entrega sua vida nas mãos das equipes de saúde, o que o relato de Joan tem a ensinar ao movimento Slow Medicine? É confortável lidar com pacientes passivos; é muito difícil e delicada a comunicação entre médicos intensivistas, pacientes e suas famílias; nem sempre tentamos ouvir o suficiente de pacientes e familiares; a pressa com que nos conduzimos é bastante desproporcional ao que ocorre dentro de cada ser humano; temos medicado o processo de luto de forma agressiva. Existe algum prazo para que um luto se torne “patológico”? Algum critério que nos garanta que um antidepressivo é melhor do que uma canja? Algum medicamento que bloqueie os episódios de vórtices? 

     Nenhum de nós conhece o sofrimento pela perda, até chegar a esse lugar. Como também desconhecemos o que pode nos mover para a frente. O tempo é a escola na qual aprenderemos, faremos novas conexões, aprenderemos a nos ver pelos olhos de outros que ainda estão aqui. A loucura vai passando, sem garantias de alguma clareza. Para Joan os sinais de mudança vêm de um vórtice: ela e John nadando em uma gruta cheia de ondulações, nas quais era preciso muito cuidado para atravessar acompanhando a maré. John não tinha medo: “era preciso sentir a mudança na ondulação, era preciso acompanhá-la”, era o que ele dizia. Quais são os sinais de cada um? O tempo ensina, afinal: “você se senta para jantar e tudo muda num instante”.

                                           “Uma única pessoa está ausente, mas o mundo inteiro parece vazio. Mas uma pessoa não tem mais o direito de dizê-lo em voz alta”. Ariès, P.

P.S.: Quintana Roo Dunne faleceu em 26 de agosto de 2005, 20 meses após a morte do pai, dois meses após a publicação do “Ano do Pensamento Mágico”. Joan Didion faleceu em 23 de dezembro de 2021. Sobre a morte da filha, Joan escreveu “Noites Azuis”.

Publicações referenciadas:

Ariès, Philippe. História da Morte no Ocidente. Ediouro, 2003.

Didion, Joan. O Ano do Pensamento Mágico. Ed HarperCollins Brasil, 2021.

Freud, Sigmund. Luto e Melancolia. [1915]. Ed Cosak e Naify, 2012.


Carla Rosane Ouriques Couto é médica, especialista em Pediatria, Medicina de Família e Comunidade, Saúde do Trabalhador, Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Professora na UnaSUS. Supervisora no Programa Mais Médicos. Aprendendo a “deixar para lá”. Em busca de novos desejos: estudante de Psicanálise, até que um dia tudo mude. 

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Lali
Lali
3 meses atrás

Drª Carla, gosto demais dos teus textos e esse me tocou em particular. Um grande abraço.

Carla Couto
Carla Couto
3 meses atrás
Responder para  Lali

Obrigada querida! Um beijo!

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