Por José Carlos Campos Velho:
“Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.”
O décimo princípio da Slow Medicine, elaborado pelo Instituto Holandês de Slow Medicine, propõe “o uso parcimonioso da Tecnologia”, afirmando que “a tecnologia deve servir ao homem. As novas tecnologias devem cumprir seus objetivos de auxiliar a pessoa no autocuidado e auxiliar o médico a tomar as melhores decisões para seu paciente, que busquem primordialmente melhorar sua qualidade de vida.” De maneira semelhante, o Manifesto da Slow Medicine, propõe uma Medicina Sóbria, que sugere que “…fazer mais não quer dizer fazer melhor: – a divulgação e o uso de novos tratamentos de saúde e de novos procedimentos diagnósticos nem sempre são acompanhados de maiores benefícios aos pacientes. Interesses econômicos e razões de caráter cultural e social estimulam o consumo excessivo de serviços de saúde, aumentando demasiadamente as expectativas das pessoas, muito além da capacidade do sistema sanitário em atendê-las. Além disso, não se dá atenção suficiente ao equilíbrio do ambiente e à integridade do ecossistema. Uma medicina sóbria implica a capacidade de agir com moderação, de forma gradual e essencial. Utiliza de modo apropriado e sem desperdício os recursos disponíveis. Respeita o ambiente e protege o ecossistema. A Slow Medicine reconhece que fazer mais não significa fazer melhor.”
A Pandemia pelo Novo Coronavírus eclodiu na Província de Hubei, cuja capital é a cidade de Wuhan, na China, em janeiro de 2020. Quando atingiu a Europa, inicialmente a partir do norte da Itália, observou-se a contundência da tragédia sanitária que logo se espalharia pelo mundo. A Organização Mundial da Saúde declarou a existência de uma Pandemia em março de 2020. A infecção pelo COVID-19 surprendeu a todos: médicos, profissionais de saúde, gestores e demais stakeholders , passando por políticos e cidadãos. A imprevisibilidade do comportamento clínico da doença, que cursa desde quadros assintomáticos até doença severa, com grave comprometimento sistêmico e alta mortalidade, deixou todos atônitos, muitas vezes sem saber que direção tomar. Aos poucos, um corpo de conhecimento foi sendo formado, tanto no sentido da triagem dos pacientes com maior necessidade de suporte, bem como o tratamento dos casos mais graves.
Uma questão foi alvo de acalorados debates: a prevenção da doença. A Infodemia, o posicionamento questionável de políticos e formadores de opinião acerca de tratamentos pouco embasados em trabalhos científicos consistentes, a sugestão de tratamentos farmacológicos em diferentes fases da doença que respondiam mais a interesses econômicos e políticos do que técnicos podem ter funcionado como fatores complicadores para o enfrentamento da Pandemia. O questionamento de medidas simples como o uso de máscaras ou distanciamento social se colocavam dentro deste escopo de problemas. Porém, uma luz surge no horizonte: um artigo publicado na respeitada revista New England Journal of Medicine sugere que o regime de 2 aplicações de uma vacina sintetizada a partir de RNA Modificado apresenta eficácia importante na redução da morbidade e mortalidade na infecção pelo Novo Coronavírus.
O artigo se acompanha por um Editorial que se inicia com a seguinte afirmação “A epidemia de Covid-19 continua a aumentar, especialmente em países que foram incapazes ou não quiseram instituir fortes medidas de saúde pública para o enfrentamento da Pandemia. O retorno à normalidade depende cada vez mais do sucesso das vacinas para prevenir doenças e, esperamos, limitar a propagação da infecção. No entanto, essa esperança foi temperada por várias incógnitas.”
O Editorial, porém, mostra que estamos vivendo provavelmente uma mudança em relação a esta afirmação. A vacina chamada BNT162b2, conforme o artigo revela, em fase III, apresenta uma eficácia que se aproxima de 95%, com aplicação de 2 doses. Parece ter um bom perfil de segurança, sendo os efeitos adversos da vacinação mais frequentes dor no local da aplicação, cansaço e dor de cabeça.
O artigo conclui que “…os resultados demonstram que Covid-19 pode ser evitado por imunização, fornecem prova de conceito de que as vacinas baseadas em RNA são uma nova abordagem promissora para proteger humanos contra doenças infecciosas e demonstram a velocidade com que uma vacina baseada em RNA pode ser desenvolvida com um investimento suficiente de recursos.”
Isso nos leva à uma questão cara a Slow Medicine: sua relação com a Tecnologia. Por vezes compreendida de forma equivocada, acredita-se que a Slow Medicine “é contra a Tecnologia”. Nada mais inadequado. A Slow Medicine propõe o uso cauteloso da Tecnologia e a apropriação gradual de recursos tecnológicos, uma vez demonstrada sua segurança e eficiência, considerando sempre o indivíduo a ser tratado, sua inserção familiar e social, seu momento de vida, expectativas e valores. O editorial da revista afirma que o desenvolvimento desta vacina “é um triunfo”, pelo tempo em que está sendo desenvolvida, pelo verdadeiro trabalho de colaboração entre cientistas, clínicos e os participantes da pesquisa. Porém aponta questões ainda relevantes e não respondidas: a segurança será mantida quando oferecida a milhões de pessoas? Outros efeitos adversos surgirão? Se a pessoa não receber a segunda dose haverá consequências? A vacina será efetiva a longo prazo? Grupos que não foram adequadamente representados na pesquisa deverão ser abordados de que maneira?
Cremos que um olhar Slow para a vacinação deveria contemplar várias questões: em primeiro lugar, eficácia e segurança. Várias vacinas estão em desenvolvimento, e questões de ordem política estão tendo maior relevância do que questões de ordem científica e técnica, o que é lamentável. A acessibilidade às vacinas é importante: uma Medicina Justa propõe “…cuidados adequados e de boa qualidade para todos.Uma medicina justa promove a prevenção, entendida como tutela da saúde; presta cuidados apropriados, isto é, adequados às pessoas e às circunstâncias, e que provaram ser eficazes e aceitáveis aos paciente e profissionais de saúde. Uma medicina justa combate as desigualdades e facilita o acesso à saúde e aos serviços sociais, supera a fragmentação dos tratamentos e promove a troca de informações e de experiências entre os profissionais em uma lógica sistêmica.”
Outro aspecto é no que tange à distribuição das vacinas. A vacina citada pelo trabalho comentado deve ser armazenada a menos 75º C, o que já é um fator limitante, mormente se somado à logística de distribuição em um país com mais de 200 milhões de habitantes e enorme diversidade geográfica como o Brasil (e se olharmos com mais amplitude, estamos falando de uma Pandemia, os números globais saltam para bilhões). Portanto, questões logísticas são essenciais e devem ser elaboradas por técnicos familiarizados com o tema. Outro ponto delicado é a gradualidade de oferta de vacinas, parecendo mais racional e justo que se opte por iniciar a vacinação pelos grupos de risco e populações mais vulneráveis, além dos profissionais da área da saúde, já tragicamente afetados pela doença.
Mas resta uma questão de importância fundamental: a vacinação ainda não está disponível. E este é um divisor de águas. Por ora a postura mais adequada, particularmente em um momento de recrudescimento dos casos, é a manutenção das estratégias de prevenção baseadas em atitudes e comportamentos: higiene das mãos, distanciamento social, evitar aglomerações, usar máscaras, evite locais fechados, particularmente frequentados por muitas pessoas. Estratégias de cuidados secundários e terciários, como testagem e isolamento de contactuantes, e a oferta dos cuidado clínicos otimizados para pacientes mais graves não são objeto desta discussão, sendo porém ferramentas para o enfrentamento desta doença que abalou o mundo ao longo de 2020. Devemos ter estes fatos em mente, pois em alguns momentos a mídia e as redes sociais nos remetem à ideia da vacinação como uma solução final. Ainda temos um longo caminho para ser trilhado e é melhor que o façamos com a necessária cautela.
Edgar Morin, filósofo francês, nos diz que:
“Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema de dupla face do erro e da ilusão. O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem como tal.”
O que isso tem a ver com a vacinação? Tarefa do leitor: refletir e, quem sabe, tirar suas conclusões.