O Marido Doente

março 10, 2021
No comments
Visitas: 769
4 min de leitura

Texto originalmente publicado em slowmedicine.it, em 24 de fevereiro de 2021, para o projeto Storie Slow do Movimento Slow Medicine Itália

Por: Michela Chiarlo

Tradução de: Andrea Bottoni

Esta é a segunda vez que encontro Sônia neste pronto-socorro. A primeira foi há seis meses e certamente não foi agradável. Sônia entrou na sala de atendimento, e logo deixou claro que estava ali por insistência da filha: “Ela diz que tenho olhos amarelos, mas sempre acontece comigo quando fico um pouco chateada, aí vai embora”. Para ser honesta, suas escleras eram fosforescentes em vez de amarelas. “E há quanto tempo está assim?”, perguntei. “Faz umas duas semanas, é por isso que minha filha insistiu tanto, mas eu não queria vir, odeio hospitais, já cansei de levar o meu marido”, respondeu. Seguiu-se um relato clínico detalhado do marido diabético, cardiopata, com um pé amputado e que precisava de sua assistência.

Lendo o laudo do ultrassom de Sônia, tive poucas ilusões: histórias como a dela têm grande probabilidade de dar errado. Os cônjuges que se dedicam a cuidar dos outros frequentemente negligenciam os sinais do próprio corpo. Na verdade, o ultrassom, logo seguido por uma tomografia computadorizada, havia evidenciado a presença de um tumor pancreático. Eu havia internado Sônia no serviço de oncologia, que considerou a doença muito avançada para uma cirurgia e planejou um ciclo de quimioterapia. O sucesso da terapia foi mínimo e logo o tumor avançou para o fígado e o peritônio. Sônia, após a alta hospitalar, estava sendo acompanhada por uma equipe de cuidados paliativos domiciliares. Um dia ela voltou ao pronto socorro.

Em comparação com o primeiro atendimento, Sônia estava muito mais magra, com um abdome ascítico proeminente. Seus olhos não perderam a força e nem a cor amarela das escleras, infelizmente apenas menos evidente pela pele pálida e amarelada ao redor. Felizmente, Sônia também não perdeu sua força interior e personalidade.

De forma abrupta, como me lembrava, ela começou a falar: “Mandaram-me aqui, mas não quero ficar, hein? Não me internem!”. Aprendi que a melhor abordagem nesses casos é perguntar: “O que podemos fazer por você hoje?”. Com as limitações dos recursos do pronto-socorro, quase sempre é possível chegar a um acordo e, muitas vezes, poupa-se tempo e discussões.

Da conversa com Sônia, ficou evidente que os problemas eram dois: anemia e ascite, ambas provocando exaustão e perda de autonomia, autonomia particularmente cara a ela porque queria continuar cuidando de seu marido. Enquanto aguardava o resultado dos exames, sugeri para Sônia uma paracentese, a retirada por punção do líquido abdominal, com a consequente redução de tamanho e peso. “O líquido com certeza vai se acumular novamente com o tempo, porque o tumor se espalhou e causa perda contínua de líquido no abdome”, expliquei, “mas retirá-lo agora garantirá alguns dias (ou semanas, difícil dizer), de alívio, com um pequeno risco”. Sônia concordou de bom grado. Os exames confirmaram anemia grave: era necessária também uma transfusão.

Poucas horas depois de entrar no pronto-socorro, Sônia parecia renascer: um mínimo de tons rosados corava as bochechas e o volume abdominal voltou ao normal. Com incrível entusiasmo, ela pegou a documentação do pronto-socorro e me cumprimentou: “Obrigado por não me internar, senão quem vai cuidar do Ernesto sozinho em casa? Ele não sabe fazer nem uma sopinha e se eu não estou com ele, ele não come”. Assim Sônia foi embora, caminhando em direção do carro da filha, que a levou para casa.


Michela Chiarlo: médica, especialista em clínica médica, trabalha no pronto socorro do Hospital San Giovanni Bosco em Turim, na Itália. Escreve sobre medicina no próprio blog www.triptofun.it.

Andrea Bottoni: italiano, nascido em Roma; Médico pela Universidade de Roma “La Sapienza”, com Residência Médica em Nutrologia na mesma Instituição; Especialista em Medicina Desportiva, Mestre em Nutrição e Doutor em Ciências pela UNIFESP; MBA Executivo em Gestão de Saúde pelo Insper; MBA em Gestão Universitária pelo Centro Universitário São Camilo; Especialista em Mindfulenss, Instrutor de Mindful Eating Aplicado à Promoção da Saúde e Instrutor de Mindfulness Aplicado à Promoção da Saúde pela UNIFESP; Coach de Saúde e Bem-Estar; Coach Ontológico; Título de Especialista em Nutrologia, em Medicina do Esporte e em Medicina Preventiva e Social; vive no Brasil, em São Paulo, felizmente casado com Adriana, também médica.

Comente!

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Newsletter Slow Medicine

Receba nossos artigos, assinando nossa
newsletter semanal.
© Copyright SlowMedicine Brasil. todos os direitos reservados.
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x