O médico acessível

agosto 14, 2023
2 comment
Visitas: 582
9 min de leitura

Por Aracy P. S. Balbani

“Não se trata de ver coisas extraordinárias, anjos, aparições, espíritos, seres de um outro mundo. Trata-se de ver esse nosso mundo sob uma nova luz.”

Rubem Alves

Após a promulgação da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, os temas acessibilidade e inclusão têm sido mais divulgados. Porém, na prática, frequentemente a teoria ainda é outra.

Os obstáculos para exercermos a empatia no cotidiano são muitos. A começar pelas múltiplas dimensões da acessibilidade: arquitetônica e urbanística, de comunicação, de atitudes, de serviços, tecnológica, de grupos etários e, até, cromática. Isso mesmo: as pessoas com daltonismo têm direito ao pleno acesso a cores na comunicação e no design. Já pensou nessa questão?

Algumas dessas dimensões dependem de políticas públicas intersetoriais, ou das condutas de gestores da saúde privada. Envolvem orçamentos e burocracia, e ficam fora do nosso poder de decisão. Outras competem aos próprios médicos.

Talvez um dos maiores desafios seja eliminar as barreiras da comunicação.

Dentro e fora do contexto profissional da Saúde, quando alguém pede uma informação, tendemos a responder de modo genérico e automático: “Basta apertar a tecla verde”, “É só seguir a linha vermelha no piso”, ou “Toque a campainha no balcão com a placa ‘Recepção de material’”. Presumimos que todas as pessoas vão compreender essas respostas.

Mas, e se o (a) interlocutor(a) for daltônico(a)? Essa pessoa poderá não ser capaz de identificar ou diferenciar os objetos pelas cores indicadas. Se for iletrado(a), ou apresente alguma restrição visual, como é frequente em idosos e diabéticos – mesmo que não tenha deficiência física nem intelectual -, não conseguirá decodificar a informação escrita junto ao balcão.

Mais: é muito provável que algum desses indivíduos sinta vergonha de dizer que não compreendeu a resposta. Especialmente se estiver diante de um profissional de saúde(supostamente uma autoridade…). Resultado: uma comunicação fracassada.

Quantos de nós – sejamos profissionais de saúde, políticos, influenciadores, artistas – fizemos alguma apresentação ao público ou ministramos aulas sem perguntarmos, logo no início, se havia pessoas com deficiência visual ou com baixa visão na plateia? Ou, durante entrevistas para a televisão e videoconferências na internet, nos esquecemos de que essas pessoas fazem parte da audiência?

Possivelmente, em uma ou outra dessas ocasiões, fizemos gestos corriqueiros: aproximar os dedos de uma das mãos várias vezes para sinalizar “grande quantidade” de pessoas ou coisas, esfregar o polegar no dedo indicador para simbolizar “dinheiro”, ou flexionar os dedos indicadores no ar para denotar “entre aspas”. Contudo, se não havia um intérprete de boa vontade sentado junto do deficiente visual no evento presencial, nem recurso de audiodescrição disponível, as mensagens da nossa linguagem gestual não alcançaram as pessoas cegas. Se a mensagem foi irônica e a audiência com visão normal riu, maior o constrangimento que provocamos, involuntariamente, perante os deficientes visuais.

A audiodescrição (tradução audiovisual ou narração) é uma prática inclusiva não apenas para pessoas cegas ou com baixa visão, mas também para pessoas sem deficiência, idosas ou iletradas, aquelas com deficiência intelectual e as disléxicas.

É importante agirmos para que a audiodescrição seja usada cada vez mais nos eventos de atualização científica na área da Saúde, tanto em palestras como nos recursos multimídia e transmissões de televisão para educação em saúde da população. Afinal, as emissoras de TV exploram concessões públicas, portanto devem cumprir o compromisso de incluir os deficientes visuais na audiência da programação.

Nos atendimentos de saúde, quantos médicos costumam descrever a própria aparência ao se apresentarem às pessoas cegas ou com baixa visão?

Assim como a etiqueta social recomenda cumprimentarmos o cliente/paciente e nos identificarmos pelo nome e profissão, também é sóbrio, justo e respeitoso informarmos, de modo objetivo: nosso gênero, faixa etária, etnia, estatura, cor dos olhos e dos cabelos e, se cabível, nosso vestuário – começando pelas peças maiores, de cima para baixo; por fim descrevendo as peças menores e os acessórios (óculos, bengala, p. ex.).

Descrever objetivamente o local do atendimento (cor das paredes, os elementos da decoração, a localização das janelas e da maca) é outra deferência ao deficiente visual que nos confia sua vida e sua saúde. São maneiras de tornar aquele espaço mais acolhedor, para que a pessoa se sinta mais à vontade, em um ambiente presumidamente hostil. A fala  mais pausada, a demonstração de carinho e respeito fazem parte da abordagem que se faria com qualquer outra pessoa. A diferenciação não exclui, somente demonstra que tratar as pessoas diferentes de forma diferente é equidade. A inclusão não existe sem equidade e humanidade, devendo ser a  base da sociedade, da educação e das políticas públicas.

Além do evidente aspecto ético, a elaboração legível de prescrições de medicamentos, atestados e demais documentos médicos manuscritos é essencial para uma boa comunicação e para a segurança de todos os pacientes.

Nos documentos impressos eletronicamente, uma orientação para melhorar a acessibilidade aos pacientes com baixa visão, sobretudo os idosos, é preferir as fontes sem serifa, como Arial, Verdana, Tahoma, Helvetica ou Univers. Elas são mais “limpas”, sem traços decorativos nas extremidades superior e inferior dos caracteres, por isso bem legíveis. Se necessário, podemos usar fontes específicas para facilitar a leitura pelas pessoas com dislexia, disponíveis em formato aberto. Essas fontes podem ser baixadas gratuitamente no computador para utilização nos programas editores de texto.

Em sites e blogs de Saúde, sugere-se adotar contraste entre o plano de fundo e o texto, ou fontes maiores, para facilitar a leitura por pessoas com baixa visão. Mais uma vez, deve-se evitar contraste em verde e vermelho, porque pessoas daltônicas podem não o perceber. Há outras diretrizes bem estabelecidas para acessibilidade dos sites, de forma a facilitar a compreensão por usuários que navegam usando programas leitores de tela.

Para nossa comunicação alcançar pessoas com deficiência auditiva, é recomendável apresentarmos áudios com alternativa em texto ou transcrição, e vídeos com legendas ou uma janela com intérprete de Libras.

Para alcançar todos os públicos, independentemente de limitações intelectuais e do grau de instrução, usar linguagem clara e simples é fundamental. Nunca é demais lembrar: a maioria da população desconhece o jargão da área médica.

O médico não deve se sentir culpado por não ter cogitado tantos detalhes da inclusão na sua prática profissional. Despertar a consciência dessa necessidade é o passo mais importante, e o aprendizado se faz gradativamente.

Pequenas mudanças em nossos hábitos – gestos de gentileza – podem fazer uma enorme diferença, aprimorando o acolhimento (1) e o respeito à autonomia de pessoas com deficiência. Ao colocarmos esses pacientes no foco da nossa atenção e compaixão, dedicando tempo para entender as expectativas deles, vamos de encontro a alguns dos Princípios da Medicina Sem Pressa.

Por fim, a boa notícia: há vasto material de referência sobre acessibilidade, útil para nos fazermos, de fato, cada vez mais… acessíveis.

Bem-vindo (a) ao universo fascinante da acessibilidade e inclusão. Sinta-se incluído (a).

Juan Miró

Conflitos de interesse: não há.

Aracy P. S. Balbani, médica otorrinolaringologista – CRM-SP 81725, RQE 20933. Egressa da Faculdade de Medicina da USP (graduada em 1994), Doutora em Medicina pela FMUSP e ex-Professora Voluntária Doutora da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP). Atuando como especialista na área assistencial do SUS.

Colaboração da Dra. Susana Rosa Mussoi, médica ginecologista em Santa Maria , RS

Sugestões para saber mais:

Thiovane Pereira. Guia de acessibilidade cromática para daltonismo: princípios para profissionais da indústria criativa. Santa Maria: 2021. 31 p. (Recurso eletrônico). Link na página:

Fonte OpenDyslexic

Fonte Sylexiad

Fóruns Permanentes Unicamp. Fórum “Desafios da Educação para Altas Habilidades ou Superdotação (AH/SD)”, 2022

CREFITO-3. I Fórum de Direitos Humanos, 2023.

Dinorah Ereno. Barreiras transpostas. Revista Pesquisa FAPESP. 2015.

Biografia de Ana Amália Barbosa, um exemplo educativo da arte de viver.

Ana Amália Tavares Bastos Barbosa. Além do corpo – uma experiência em Arte/Educação. Cortez Editora. 2013.

Claudia Matarazzo. Vai Encarar? A nação (quase) invisível de pessoas com deficiência. Editora Melhoramentos, 2009, 216 p.

Universidade Federal de Santa Maria. Revista Arco. Vivências de um professor universitário com dislexia. Outubro de 2022.

Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoa com Deficiência e Pessoas com Altas Habilidades no Rio Grande do Sul. Cartilha Atitudes que fazem a Diferença Com Pessoas com Deficiência.

Bengala Legal. Site criado pelo saudoso Marco Antônio de Queiroz, o MAQ, cego.

Eliane Brum. A cega era eu.

Rubem Alves. A cegueira.

Centro Tecnológico de Acessibilidade – Instituto Federal do RS. Tipos de fonte e acessibilidade digital.

Centro Tecnológico de Acessibilidade – Instituto Federal do RS. Como inserir texto alternativo para imagens em blogs e redes sociais.

Instituto Federal da Paraíba. Textos acessíveis para pessoas com deficiência visual.

Centro Tecnológico de Acessibilidade – Instituto Federal do RS. Comunicação e Acessibilidade Digital: Guia de referências para comunicadores.

Senado Federal; Instituto Legislativo Brasileiro. Plataforma Saberes. Curso Excelência no Atendimento. (Acessado em fevereiro de2022).

Escola Nacional de Administração Pública. Escola Virtual de Governo. Curso Introdução à Audiodescrição. (Acessado em fevereiro de 2023).

Centro Tecnológico de Acessibilidade – Instituto Federal do RS. Audiodescrição.

Blog da Audiodescrição. Lars Grael: Em paz com o corpo e com o mar. TV Brasil – Programa Assim Vivemos – Lavoro Produções.

Câmara dos Deputados. Acessibilidade.

Rede de Acessibilidade. Como construir um ambiente acessível nas organizações públicas.

Câmara dos Deputados. Guia de eventos presenciais com acessibilidade.

Suzana Vieira. A perna quebrada e as muletas do coração. Slow Medicine Brasil. Abril de 2021.

PS: a foto que ilustra o post é do escritor português José Saramago, que escreveu o livro “Ensaio sobre a Cegueira”

2 Comentários

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

2 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Isabela Braga
Isabela Braga
9 meses atrás

Estou muito impressionada com a qualidade dos artigos de vocês, principalmente esss sobre a inclusão, assunto pouco discutido e conhecido entre nós médicos. Obrigada

Aracy Balbani
Aracy Balbani
9 meses atrás

Prezada colega Isabela, gratidão pelo incentivo.
O objetivo deste artigo é justamente compartilhar o horizonte desafiador da inclusão com os profissionais de saúde. Além de sentirmos, precisamos praticar juntos a empatia.
Abraço grande.

Newsletter Slow Medicine

Receba nossos artigos, assinando nossa
newsletter semanal.
© Copyright SlowMedicine Brasil. todos os direitos reservados.
2
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x