O médico colonizador

janeiro 21, 2025
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“Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro.” (José Saramago)

Mumbuca é uma pequena comunidade quilombola no estado do Tocantins. No final dos anos 90s, seus moradores foram surpreendidos pela visita de centenas de jipeiros participantes do Rally dos Sertões, que pela primeira vez tinha incluído Mumbuca em seu trajeto (1). Atrás dos pilotos, vieram as câmeras de televisão, numa extensa cobertura jornalística que culminou na reportagem que mudaria a vida da comunidade. Ao observar que Mumbuca não tinha luz elétrica em pleno século XX, um dos jornalistas fez um trocadilho que contrapunha a principal atividade dos moradores (o artesanato com capim dourado e seu brilho luminoso) com a falta de acesso à energia elétrica: “Um povo que não tem luz, mas o que eles fazem com as mãos reluz.” Aparentemente, o governo do Tocantins viu no trocadilho uma crítica à sua gestão. Pouco tempo depois, a comunidade foi invadida por postes de luz, e por tudo o que normalmente se segue à chegada da energia elétrica: geladeira, televisão e, mais tarde, internet. 

A vida em Mumbuca mudou completamente. Seus habitantes passaram a ir dormir mais tarde, a desejar coisas e experiências que não imaginavam existir e, claro, a consumir. Mas o que mais mudou na vida de Mumbuca foi o fato de que eles passaram a ser percebidos, não eram mais um povo invisível cuja rotina não incomodava ninguém, e isso não foi necessariamente bom para todos. Desde então, a comunidade tem se visto numa luta constante para não ser retirada de suas terras e para manter sua autonomia quanto à forma de viver. Pode parecer um tanto surpreendente que o povo de Mumbuca não tenha sido minimamente consultado quanto ao seu desejo ou necessidade de ter acesso à energia elétrica, visto que é algo que transformaria profundamente sua vida, suas escolhas e sua cultura. Mas o fato é que não temos o hábito de questionar o progresso tecnológico: ele é “obviamente” desejável por todos e para todos. Será?

Ouvindo a história de Mumbuca e seus desfechos atuais, é bastante fácil fazer um paralelo com a forma como estruturamos toda a nossa sociedade. Somos um povo colonizado e, mesmo séculos depois dos primeiros colonizadores terem fincado suas botas por aqui, balizamos nossos atos pela lógica deles: a de que uma cultura é, necessariamente, superior à outra. Pessoas que pensam, vivem ou entendem o mundo de forma diferente da maioria devem ser “convertidas” e, se isso não for possível, eliminadas ou ignoradas. Não é surpreendente que a saúde tenha funcionado com a mesma lógica. É claro que todo o conhecimento construído nos últimos séculos oferece uma base importante para sejamos capazes de viver mais, evitar doenças que causem sofrimento e curar condições que nos levariam facilmente à morte precoce. A questão é que talvez nem todas as pessoas vejam as doenças com o horror que nós vemos, e talvez nem todas acreditem que viver mais tempo seja o grande objetivo da vida. Para algumas pessoas, continuar vivendo como sempre viveram pode significar conforto, beleza, significado e até respeito pelo legado de seus familiares. Talvez o pastel frito por imersão numa abundância de óleo, que a ciência considera pouco saudável e associa a um maior risco de dislipidemia, represente para elas o carinho e a abnegação com que suas mães ou avós cozinhavam nas tardes de domingo. Pode ser que a realização de exames periódicos não faça nenhum sentido para elas, porque preferem viver o dia de hoje e aceitar o que o futuro lhes reservar com resignação. É possível que a prática regular de atividades físicas, tão valorizada pelos profissionais da saúde, lhes seja uma tortura (tanto física quanto mental), permeada de desconforto e culpa. Mesmo um tratamento de eficácia inquestionável (uma terapia oncológica, por exemplo) pode ser uma ameaça tão grande ao estilo de vida que algumas pessoas o considerem pior que a própria doença, preferindo o risco de morrer. O fato é que as pessoas têm o direito de escolher como querem tocar suas vidas, ainda que suas escolhas nos pareçam uma afronta, uma ignorância, um descalabro. E durma-se com um barulho desses.

Os esforços incansáveis dos profissionais da saúde para que seus pacientes adquiram hábitos mais saudáveis, façam exames preventivos e tratem condições que possam lhes comprometer a saúde é, claro, louvável. É parte da nossa tarefa informar, educar e auxiliar as pessoas para que vivam mais e melhor à luz do que sabemos por meio da ciência. A questão é que nosso papel em suas vidas tem um limite, que se delineia a partir dos valores e expectativas de cada um. Não nos cabe impor o que sabemos e o que julgamos ser o melhor (e sim, ainda existem profissionais que se recusam a acompanhar pacientes que não sigam suas instruções, ou que até os destratam…). Como educadores, nossa função é ajudar as pessoas a terem a vida mais feliz, plena e significativa possível, e talvez isso esteja em total desacordo com o que a ciência preconiza. A armadilha aqui é nossa tendência histórica a agirmos como colonizadores do corpo e da vida alheios, impondo a eles as verdades absolutas que aprendemos nos livros. Nenhum conhecimento é soberano.

É sempre bom lembrar o que nossos colonizadores fizeram: eles violentamente substituíram toda uma cultura já existente, secularmente construída por nossos indígenas, por sua própria cultura, destruindo todo um sistema humano como se dele nada se pudesse aproveitar. Me pergunto como teria sido se, em vez de exterminar nossas crenças, conhecimentos e valores originais, os colonizadores tivessem agregado sua bagagem cultural ao que já tínhamos aqui, construindo uma nova cultura possível. É provável que estivéssemos hoje vivenciando uma realidade mais respeitosa, saudável e única. Não seria uma realidade mais respeitosa, saudável e única o que desejamos para nossos pacientes?

Já é passada a hora de repensarmos nossa forma de lidar com as pessoas. Em vez de tentar “catequizá-las” para que se adequem às orientações que julgamos corretas, deveríamos compreender seus contextos e desenhar com elas hábitos e estratégias que façam sentido dentro do que elas desejam e valorizam. É preciso cultivar a humildade para compreendermos que as pessoas têm o direito de escolher, ainda que adotem “más” escolhas. Mais que isso: precisamos manter pulsante uma profunda reverência pela vida, que nos permita acolher, auxiliar e respeitar todos aqueles que nos procuram, sem julgá-los por suas decisões e, principalmente, sem perpetuar nosso ímpeto colonizador. O século XIX já terminou faz tempo. 

Referências:

  1. Podcast Rádio Novelo Apresenta, episódio O progresso chegou, publicado em 30/05/2024. Acessível em: https://open.spotify.com/episode/1wki31Blx8bWzVMSGLKA51?si=NGl4HGjsRWqnO1F_Kmh88A.

Ana Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Oncologia Clínica e pós-graduada em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor, O Médico e o Rio (com Lucas Cantadori), De Mãos Dadas: o olhar da Slow Medicine para o paciente oncológico, Slow Medicine: sem pressa para cuidar bem (com André Islabão) e, mais recentemente, O médico sutil.

*A imagem que ilustra o texto é do médico e cartunista LOR.

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Maria Jose Finatto
Maria Jose Finatto
5 minutos atrás

Maravilhoso texto.

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