Por Rogério Thaddeu
“Um verdadeiro mestre é um eterno aprendiz.” (Master Yi, em League of Legends)
Algumas experiências na vida nos transformam profundamente, e talvez nenhuma delas seja tão marcante quanto as que envolvem o cuidado com outros seres humanos. Essas transformações podem ser vistas como “melhores” ou “piores” — conceitos que, no entanto, devem sempre ser avaliados à luz dos preceitos éticos e dos valores que orientam nossas práticas em saúde. Sob a perspectiva da Slow Medicine, reconhecemos que é fundamental desacelerar para cuidar, acolher e realmente enxergar o outro muito além de sua doença.
Minha formação médica aproxima-se de sua conclusão em outro país, enquanto minha trajetória como psicólogo já é sólida, construída desde 1999. Nesse intervalo, minha identidade profissional encontra-se em transição — um processo que, longe de ser angustiante, tem sido profundamente enriquecedor. Saber que em breve estarei atuando como médico é uma etapa importante, mas mesmo agora, continuo a enxergar o cuidado através das lentes da Psicologia, algo que guia meu olhar clínico. Essa confluência entre a prática médica e psicológica, característica rara, torna-se ainda mais valiosa quando acompanhamos profissionais que integram competência técnica com empatia, paciência e humanidade.
Tive a oportunidade de vivenciar isso ao lado de um médico que generosamente me permitiu acompanhá-lo em atendimentos na unidade básica de saúde e em visitas domiciliares. Por uma dessas coincidências que desafiam qualquer explicação lógica, esse profissional, com toda sua humildade e acolhimento, foi meu aluno em um curso de graduação onde eu lecionava Psicologia como disciplina complementar. O psiquiatra suíço, discípulo de Freud, Carl Gustav Jung talvez chamasse isso de “sincronicidade”. Após tantos anos, nossos caminhos se cruzaram novamente, e desde então, tenho aprendido, dia após dia, sobre a profundidade das relações humanas, a complexidade das doenças e a delicada variabilidade com que cada pessoa encara a própria realidade.
No dia a dia, percebo como a Slow Medicine se alinha ao cuidado que tanto admiro. Essa abordagem nos convida a olhar para além da queixa inicial, da doença em si, e a escutar verdadeiramente as histórias que os pacientes trazem — mesmo aquelas que, inicialmente, parecem periféricas. Quando, por exemplo, encontro padrões recorrentes em diagnósticos, não os considero apenas como um exercício técnico; vejo como uma oportunidade de integrar teoria e prática de forma mais reflexiva.
Certa vez, enquanto acompanhava o médico, nos deparamos com dois casos de erisipela. As bordas irregulares e o aspecto superficial das lesões me permitiram distinguir essas características de uma celulite infecciosa. Naquele momento, celebrar uma hipótese diagnóstica acertada parecia menos importante do que reconhecer o contexto maior: o sofrimento do paciente, sua história de vida e o impacto da doença em seu cotidiano.
Em uma ocasião na universidade, um colega me sugeriu que deixasse a Psicologia de lado, já que agora estudo Medicina. Felizmente, ignorei o conselho. Não consigo — e não desejo — separar o “psíquico” do “orgânico”. De fato, separar corpo e mente pode facilitar o trabalho técnico, mas as pessoas que chegam até nós, em busca de cuidado, trazem uma integridade que não pode ser dividida. Talvez, estas pessoas não tenham lido Descartes e não se preocupem com essa fragmentação filosófica; para elas, corpo e alma, dores e sentimentos são uma coisa só.
É na escuta atenta, no tempo dedicado ao paciente, que percebo como as maiores dores frequentemente emergem no final da consulta. É como tomar uma sopa quente, que começamos pelas bordas até alcançar o núcleo, onde está o que realmente aflige.
Recordo-me de uma paciente que chegou queixando-se de dor cervical. Durante a consulta, quase como um comentário de última hora, disse: “Doutor, não sei se é importante, mas minha filha notou uma mancha nas minhas costas.” Após o exame físico, surgiu a suspeita de um melanoma. “Doutor, é grave?”, perguntou, visivelmente ansiosa. Com delicadeza, o médico explicou a necessidade de investigação e solicitou uma biópsia. Naquele momento, não era apenas o diagnóstico técnico que estava em jogo, mas o acolhimento emocional dessa mulher, que enfrentava a possibilidade de algo grave.
A Slow Medicine nos lembra que cuidar vai além do tratamento: é uma prática que exige atenção ao todo. Como bem ilustrado no conto O Alienista, de Machado de Assis, o “recanto psíquico” é a morada onde se escondem os conflitos e angústias que precisamos escutar. Diante disso, fica difícil defender a separação entre corpo e mente. O “psíquico” insiste em aparecer e desafia o médico a olhar para além dos sintomas.
Talvez, sendo psicólogo e médico, eu consiga unir essas duas perspectivas para oferecer um cuidado mais integrado e humano. No fim das contas, é esse encontro — entre saber técnico e escuta profunda, entre a ciência e a humanidade — que dá sentido à prática do cuidado.
Rogério Thaddeu é psicoterapeuta e acadêmico de Medicina.
Imagem ilustrativa: Representação européia do médico persa Al-Razi, na obra Recueil des traités de médecine, de 1250-1260.