Por André Islabão:
“Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele.”
A obsolescência é, em certa medida, uma desgraça. Digo “em certa medida” porque existe algum grau de obsolescência que chega mesmo a ser desejável para que a humanidade evolua continuamente. Mas este é um processo que exige muita sabedoria, para que se possa evoluir de maneira desapressada, abandonando com segurança tudo aquilo que já não nos serve e, ao mesmo tempo, preservando aquilo que já passou pelo teste do tempo e se mostrou imprescindível à humanidade, sob pena de ameaçarmos nossa própria existência.
Um engano comum é o de associarmos o termo “obsoleto” apenas àquilo que seja velho ou antigo. Ser velho ou antigo não é o mesmo que ser obsoleto. Ser obsoleto é cair em desuso, ser prescindível ou não servir mais aos propósitos de outrora, o que independe da idade ou do tempo de uso. A relação entre tempo e obsolescência é complexa e as coisas não ficam mais obsoletas proporcionalmente ao seu tempo de existência. Pelo contrário, algumas podem até mesmo ficar ainda mais imprescindíveis com o passar do tempo.
O efeito Lindy
Existe até um termo técnico, popularizado por Nassim Taleb[i], que nos ajuda a compreender melhor essa relação entre tempo e obsolescência: o “efeito Lindy”[ii]. Segundo esta ideia, a expectativa de longevidade das coisas não perecíveis – como as ideias ou as invenções humanas – seria diretamente proporcional ao tempo em que elas estão em uso. Assim, por exemplo, uma cadeira é um objeto inventado há muitos séculos e que deverá continuar fazendo parte do mobiliário da humanidade ainda por muito tempo. O mesmo acontece com os livros ou com algumas ideias abstratas como arte, o conceito de gravidade ou a própria medicina, que acompanham a humanidade há vários séculos. Por outro lado, não há nada que indique que o smartphone de última geração que carregamos e manuseamos com todo cuidado estará ainda acompanhando a humanidade daqui a poucas décadas. É bem possível que surjam novas tecnologias mirabolantes que consigam destruir até mesmo essa nossa devoção atual pelos onipresentes smartphones. Em outras palavras, a velha cadeira onde você deve estar sentado agora seguirá firme em nosso cotidiano, enquanto nossos modernos smartphones podem se tornar obsoletos em pouco tempo.
A obsolescência do homem
O que pode ser chocante para alguns é perceber que mesmo o ser humano pode ficar obsoleto. Há algumas décadas, o filósofo Günther Anders publicou uma de suas principais obras, A obsolescência do homem[iii], onde analisou a maneira como as revoluções tecnológicas ocorridas principalmente ao longo do século XX acabaram por se transformar em ameaças para a própria humanidade. Para Anders, os homens teriam perdido a capacidade de compreender o potencial destrutivo das novas tecnologias, o que pode abranger desde a óbvia destruição da humanidade causada pela eventual detonação de uma bomba atômica até a obsolescência do ser humano comum causada pela ampla e descuidada adoção das máquinas modernas, o que poderia incluir, mais recentemente, as tecnologias digitais dotadas de inteligência artificial.
As tecnologias boas e aquelas não tão boas
A medicina pode funcionar como um microcosmos da humanidade. Dentro dela, não temos armas de destruição em massa como a bomba atômica, mas temos uma quantidade enorme de tecnologias de gosto duvidoso, o suficiente para ameaçar a própria continuidade da atividade médica. É preciso reconhecer que nenhuma tecnologia per se é intrinsecamente boa ou ruim, mas o uso que escolhemos fazer delas pode ser um fator determinante para seus eventuais danos ou benefícios para médicos e pacientes. Aquelas tecnologias usadas com parcimônia e que visam complementar a atividade médica sem atrapalhar a relação entre médico e paciente podem ser bastante benéficas. Por outro lado, aquelas que parecem reduzir a importância dos médicos de carne e osso ou que visam substituir os profissionais de saúde deveriam ser desde já evitadas.
Se formos capazes de aplicar as ideias representadas pelo efeito Lindy e pela obsolescência autoinfligida descrita por Anders, não fica muito difícil perceber que o médico obsoleto não é necessariamente aquele que seja mais velho ou que tenha mais anos de prática e menos apreço por tecnologias mirabolantes, mas sim aquele que já não dispõe daquelas qualidades consideradas essenciais para a prática médica. Se entendermos que as qualidades humanas como afeto, empatia e compaixão são qualidades fundamentais para os profissionais de saúde, e que tais qualidades jamais serão igualadas pelas máquinas, fica fácil perceber que o problema da eventual obsolescência médica não é um problema técnico, mas sim relacionado com a perda dessas qualidades humanas cada vez mais escassas. De certa forma, o médico pode correr tanto mais risco de ficar obsoleto quanto mais parecido com as máquinas ele for, o que o tornaria mais facilmente substituível.
Embora seja possível que algumas das novas tecnologias médicas se mostrem imprescindíveis daqui a algum tempo, muitas cairão no esquecimento. Por outro lado, a essência da atividade médica não se perderá e será sempre baseada naquelas necessidades profundamente humanas de cuidar do outro de forma afetuosa, empática e compassiva. É bem possível que a adoção apressada e a crescente dependência das tecnologias modernas por alguns profissionais de saúde, muitas vezes em detrimento das qualidades humanas da medicina, sirvam apenas para apressar sua própria obsolescência. Enquanto isso, aqueles profissionais que conseguirem manter os aspectos humanos bem presentes em sua prática diária, ainda que com algumas pitadas de tecnologia usadas com parcimônia e sabedoria, continuarão sendo imprescindíveis para a boa medicina ainda por muito tempo.
Sobre “desenvolvimento” e “envolvimento”
É muito fácil nos deixarmos deslumbrar pelo brilho da tecnologia e nos esforçarmos para acompanhar e adotar rapidamente todas as novas tecnologias, muitas vezes nos esquecendo dos aspectos humanos e imprescindíveis da atividade médica. Contrariamente à narrativa que nos é empurrada diariamente pela mídia e muitas vezes pelos gestores da área da saúde, o risco de obsolescência do médico não se mitiga com a adoção crescente de tecnologias mirabolantes e de futuro incerto, mas sim com a promoção e a manutenção de nossas qualidades humanas mais básicas e imprescindíveis. Parafraseando Bruno Latour[iv], talvez seja hora de trocarmos tanto “desenvolvimento” tecnológico por um mínimo de “envolvimento” com os pacientes e com nossa própria profissão, e resgatarmos aquelas belas qualidades humanas que têm feito a atividade médica resistir através de tantos séculos e que jamais serão obsoletas
[i] Taleb, N. Antifragile – Things that gain from disorder. New York: Random House, 2012.
[ii] https://pt.wikipedia.org/wiki/Efeito_Lindy
[iii] https://files.libcom.org/files/ObsolescenceofManVol%20IIGunther%20Anders.pdf
[iv] Latour, B. Onde estou? – Lições do confinamento para uso dos terrestres.
Que espetáculo de artigo. Um trabalho dotado de tamanho humanismo onde o autor nāo despreza a modernidade tecnológica mas tenta resgatar o lado “ser humano” tanto dos profissionais da saúde como dos pacientes. Parabéns!!
Obrigado, Mireza. Fico feliz em saber que a ideia foi transmitida com clareza suficiente!
Que bacana ler suas palavras após um dia de trabalho e ver ecoar o que de dentro, o que você escreveu ,certamente, muitos colegas irão se identificar. Num dia em que findo meu trabalho me sentindo realizada por mais um dia atender meus pacientes, reforço meu pensar ,me sinto acolhida em suas frases. Obrigada! Excelente texto!
teste
Obrigado, Tatiana! A satisfação com o bom trabalho realizado é algo bastante humano que jamais deveríamos perder… 🤗
Ótimo texto!!!
Obrigado, Fátima!!
Excelente, parabéns pela reflexão!!
Muito obrigado, Jozélio!
André, ao terminar de ler o seu texto, me senti grata por ter meus cuidados de saúde em mãos totalmente alinhadas ao Slow Medicine. Tive vontade de mencionar quatro médicos nos quais confio totalmente, justamente pelo envolvimeto deles com o meu ser. Coincidência ou não, fiquei mais feliz ainda em saber que você tem um livro escrito a quatro mãos com a Ana Coradazzi, que tive a oportunidade de conhecer em uma de minhas internações aqui em São Paulo. Ela é definitivamente um ponto fora da curva na medicina atual. Enfim, desejo que esses conceitos encontrem eco cada vez mais dentre os profissionais de saúde, para que possamos nos curar – todos nós!
Coisa boa essa história, Sílvia. Toda essa serendipidade não será em vão!
Cuidar é o maior sinal de amor. Quero amar sempre