Por André Islabão
“A inteligência humana só é infalível quando decide sobre o que percebe distintamente.” (René Descartes)
A frase que inspira o título deste texto – “o meio é a mensagem” – foi imortalizada por Marshall McLuhan na década de 1960 em seu clássico livro Understanding Media – The extensions of man [1]. Nele, o autor explora os efeitos sobre a humanidade de várias inovações tecnológicas desenvolvidas ao longo da história, desde a imprensa e o relógio mecânico até o rádio e a televisão. Para McLuhan, esses “meios” criados pelo homem nada têm de neutros ou passivos, pois determinam mudanças significativas na população. Segundo o autor, as pessoas são distraídas pelo conteúdo e não percebem que é o próprio meio que realiza as transformações importantes na sociedade. Longe de ficar encantado com a “aldeia global” que anunciava na época, McLuhan alertava para a importância de se reconhecer esses efeitos nem sempre benéficos causados pelos meios à sociedade.
Mais recentemente, Nicholas Carr deu continuidade às ideias de McLuhan ao discutir as formas como a internet está interferindo e moldando o cérebro das gerações atuais, além dos riscos que isso pode representar para o futuro. Em seu ótimo The shallows – what the internet is doing with our brains [2] ele aborda essas questões e afirma que a internet tem mudado o próprio modo de funcionamento do cérebro humano, em especial das gerações mais jovens. A superficialidade do “surfar” na internet, aliada à imaterialidade do meio, ao excesso de informações e aos hyperlinks que insistem em nos jogar em outras páginas, tornam o raciocínio débil e fragmentado, impedindo – ou pelo menos dificultando bastante – o raciocínio linear, a leitura aprofundada e a elaboração de uma representação mental organizada e duradoura das ideias. Isso sem falar na maneira como os algoritmos das redes sociais moldam – para pior – nossas atitudes em relação às opiniões alheias. Para Carr, o meio criado pela internet molda o funcionamento de nosso cérebro independentemente do conteúdo das ideias disponíveis.
O que esses pensadores vislumbraram antes de muita gente é como esses novos modelos de geração e transmissão de informações podem alterar a própria maneira como as pessoas pensam. A palavra impressa, o rádio e outros meios de comunicação mudaram a maneira de as pessoas agirem e se relacionarem, da mesma forma que a internet faz hoje e como se pode imaginar que o tal metaverso faça daqui a alguns anos. Será que isso tem alguma relação com a ciência e a medicina atuais? Não é difícil imaginar que a medicina enfrente problema semelhante, na medida em que a tecnologia ou o conjunto de ferramentas que compõem seu paradigma atual (Medicina Baseada em Evidências ou MBE) podem ter mudado a forma como os profissionais pensam e se comunicam, independente das qualidades e benefícios do novo paradigma.
A rapidez das buscas eletrônicas, a facilidade da sistematização resumida das evidências, a rigidez das hierarquias científicas e a onipresença de diretrizes clínicas podem ter reduzido muito a riqueza e a profundidade do pensamento médico. Além disso, o tipo de raciocínio binário (significativo versus não significativo; tratamento ativo versusplacebo) inspirado pelos onipresentes ensaios clínicos randomizados (ECRs) pode ter inibido algumas qualidades como a parcimônia, a análise crítica e a própria criatividade entre os profissionais. Perdidos no mar de dados e informações, não percebemos que é o próprio meio da MBE e o formato dos ECRs que podem estar mudando nossa maneira de pensar a atividade médica.
Os ECRs foram uma invenção maravilhosa para a ciência. Porém, como todo experimento científico, trata-se de uma simplificação da vida e da natureza das pessoas. Gaston Bachelard dizia que o pesquisador constrói seu objeto científico extraindo-o de seu meio para poder analisá-lo, e isto se aplica muito bem aos ECRs. Um dos problemas é que a onipresença de ECRs pode ter levado os profissionais a identificarem cada vez mais o ambiente complexo e imprevisível da vida real com aquele artificial e controlado dos ECRs, tentando aplicar de forma cada vez mais automática na vida real o conhecimento proveniente deles. Além disso, o raciocínio binário dos ECRs pode levar à aplicação do mesmo tipo de raciocínio simplista na prática clínica diária, onde as verdadeiras opções tendem a ser muito mais amplas e ricas do que simplesmente “tratar ou não tratar”. Na prática clínica, podemos, além de “tratar ou não tratar” ou de “usar este ou aquele remédio”, simplesmente observar o paciente por mais um tempo em vez de decidir imediatamente a conduta. Podemos (e devemos) tentar descobrir quais são as preferências do paciente. Podemos mudar de conduta ao longo do tempo à luz dos acontecimentos (o que não pode ser feito no ambiente dos ECRs). Podemos, ainda, utilizar intervenções que não costumam ser testadas em ECRs devido à dificuldade de se comparar intervenções de naturezas distintas (p. ex., como a comparação entre uma estatina e uma dieta vegetariana ou o abandono do tabagismo). Na vida real, todos aqueles fatores pretensamente anulados pela randomização podem estar presentes, sendo exatamente o seu reconhecimento adequado que faz a medicina ser tanto uma arte como uma ciência.
Talvez devêssemos lembrar do pensamento transdisciplinar de Edgar Morin e abraçar uma visão mais plural e abrangente para os problemas de seres humanos complexos. Uma das poucas pessoas que externou recentemente uma preocupação com essa visão mais complexa para a pesquisa médica foi Trisha Greenhalgh [3] ao alertar para a incapacidade de se obter respostas para muitos dos problemas enfrentados na pandemia por meio de ECRs. É evidente que ECRs são maravilhosos. Mas eles são maravilhosos para questões bem pontuais, as quais representam apenas uma pequena porção da realidade do ser humano. É preciso reconhecer que a MBE pode ter empobrecido o pensamento clínico e criar novas maneiras de abordar essas questões, deixando o pensamento reducionista e binário para os ECRs tradicionais, mas abraçando um pensamento mais amplo e criativo na hora de lidar com as pessoas na prática clínica. A medicina é tanto arte como ciência. Mas não existe arte verdadeira sem um mínimo de criatividade.
Não devemos confundir o ambiente artificial e controlado de ensaios clínicos com a infinita gama de fatores que interagem de maneira imprevisível para causar ou curar doenças na vida real. A MBE pode ter trazido inúmeros benefícios para a prática médica, mas ela também pode ter mudado – não necessariamente para melhor – a forma como pensamos e lidamos com os problemas de nossos pacientes. O pensamento binário dos ECRs (usar ou não um determinado medicamento) pode empobrecer nosso raciocínio enquanto médicos e nos levar a negligenciar todos aqueles fatores que não podem ser facilmente mensurados ou estudados em ECRs. O meio representado pelo paradigma da MBE, pelo menos em seu formato atual – tão distante da ideia original e com foco exagerado nas evidências científicas mais do que na experiência do profissional e nas preferências dos pacientes –, revela um conteúdo tão amplo que ficamos facilmente perdidos em meio a tantos dados. Encantados com a enormidade de dados, não percebemos o quanto estamos sendo moldados pelo próprio meio da MBE. Mergulhados em um oceano de informações científicas nem sempre confiáveis fica fácil esquecermos de que informação, conhecimento e sabedoria são coisas bem diferentes.
Bibliografia:
1. McLuhan, M. and L. Lapham, Understanding Media – The extensions of man. 1994: The MIT Press.
2. Carr, N., The shallows – what the internet is doing with our brains 2011, Nova York: Norton.
3. Greenhalgh, T., Will COVID-19 be evidence-based medicine’s nemesis? PLsS Med, 2020. 17(6): p. e1003266.
André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio.
O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos.
Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta.
A importância de levar em conta a singularidade na conduta médica e direção do tratamento. Parabéns pelo artigo.
Obrigado, Márcia!