O movimento Slow Food tem uma capital: ela se chama Bra

junho 6, 2019
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Por José Carlos Campos Velho:

“Abstrações são encantadoras, mas sou a favor de que se deva também respirar o ar e comer o pão.”​​
Hermann Hesse

A Slow Medicine é uma vertente do movimento Slow Food, que se iniciou em 1976, por ocasião de uma manifestação capitaneada por Carlo Petrini, jornalista e ativista italiano, quando da inauguração de um restaurante de ‘Fast Food’ na Piazza de Spagna, em Roma. Tive a oportunidade de conhecer um pouco mais as raízes do movimento Slow Food ao visitar recentemente a Itália. Na província de Piemonte, próximo de Torino, fica a pequena cidade de Bra, que tem uma relação visceral com o movimento Slow Food. As ideias da Slow Food estão em cada esquina, na expressão do rosto de cada pessoa, nos campos em torno da cidade.

Eles vivem, fica evidente para o visitante, uma vida tranquila, onde a passagem do tempo se dá em outro compasso. A viagem de Turim até Bra, pelas estradas vicinais, já nos leva à desacelerar, passando através dos campos cultivados, pequenos povoados e vislumbrando largos horizontes, tendo como moldura os picos montanhosos dos Alpes. Chegando em Bra, fui procurar o restaurante ‘El Boccondivino‘, que me havia sido indicado por Lucia, esposa de Marco Bobbio, como um legítimo representante do modo slow de servir e comer . Ao entrar no restaurante, qual não foi minha surpresa ao ver, sentada em uma das mesas, a chef brasileira Bela Gil. Depois de ser atendido e aguardar a chegada dos pratos – acompanhados de deliciosos pães e as extraordinárias águas minerais italianas, pedi licença por interromper a conversa de Bela Gil com seus parceiros – que trabalham em uma ONG cujo objetivo é o resgate da originalidade do sertão do agreste nordestino tanto do ponto de vista gastronômico como produção alimentar e cultural. Bela foi muito receptiva e simpática; perguntou-me o que eu fazia lá e expliquei que era editor de um site sobre Slow Medicine, uma vertente do movimento Slow Food, para área da saúde.

Ela contou-me que está morando em Bra por um período, fazendo uma pós-graduação em gastronomia.  Depois de uma almoço delicioso, uma pasta com aspargos – é época de colheita de aspargos, e a Slow Food preza muito pela sazonalidade dos alimentos – e o segundo prato com carne preparada com legumes cozidos, tomei um café italiano, intenso, de gosto forte e marcante. 

Ao lado do restaurante encontra-se a loja com produtos de divulgação do movimento Slow Food. Livros sobre o movimento, de sua filosofia, livros de culinária Slow, camisetas, souvenirs, em um ambiente que transpira sustentabilidade e preocupação ecológica e com o meio ambiente. 

O próximo passo foi conhecer um pouco melhor a cidade  e sua arquitetura urbana. Era início da tarde e percebe-se que a cidade tem um ritmo tranqüilo, poucas pessoas na rua, e o tempo passava quase em ritmo de conta-gotas. Conheci então o escritório internacional do movimento Slow Food, que se encontra no segundo andar de uma casa antiga em uma das ruas centrais da cidade. Fui recebido com muita atenção pelas pessoas que lá trabalham. Trata-se de um local onde são coordenadas todas as atividades do movimento  Slow Food no mundo, como as iniciativas “Terra Madre“, a “Arca do Gosto” e outras ações desenvolvidas pelo movimento. Próximo do escritório,  à cerca de duas quadras, existe outro local, outro braço do movimento, cuja objetivo é receber agricultores, produtores e ativistas do movimento por ocasião das feiras alimentares que ocorrem regularmente, relacionadas à essas iniciativas, sendo uma delas o ‘Salone del Gusto’.

O tempo passava rápido, a despeito da intenção de cultivar a lentidão. Para finalizar o meu dia, eu havia planejado conhecer a universidade gastronômica vinculada ao movimento Slow Food. Fui então até o pequeno vilarejo de Pollenzo, onde ela está sediada. Trata-se de um belíssimo lugar, cuja história remete aos tempos da Roma Imperial. O local da universidade é um antigo edifício, que remonta a época medieval e que foi totalmente reconstruído e reformado para sediar a universidade. Qual não foi minha surpresa quando, ao aproximar-me do portal de entrada da universidade, encontro Carlo Petrini, o criador do movimento Slow Food e organizador da manifestação que ocorreu em Roma em 1986!

A universidade gastronômica de Pollenzo é uma instituição com expressão internacional, fundada pelo movimento Slow Food, na região do Piemonte, um dos corações da cultura culinária e vinícola da Itália. O trabalho na universidade é bastante complexo, em termos de perspectivas de estudo das ciências gastronômicas. Abrange desde a formação superior em gastronomia, até cursos de pós-graduação em áreas específicas nas ciências da alimentação. O curso de formação dura 3 anos e busca formar gastrônomos com grande profundidade e amplitude de conhecimento. Os cursos são proferidos em língua inglesa e italiana; trabalham conceitos como biodiversidade alimentar, ecologia humana, sociologia das culturas alimentares, antropologia e microbiologia alimentar, agrossistemas e sustentabilidade;  história da alimentação desde desde a pré-história até à idade média; os entrelaçamentos entre alimentação, saúde, economia e negócios e a filosofia da alimentação. Esse conteúdo teórico é complementado por viagens para vivências do ato de alimentar-se e da produção do alimento em vários lugares da Itália e do mundo. Até o presente momento, desde 2004, data da fundação da universidade, mais de 57 países foram visitados. Pude conhecer a horta e o pomar didáticos, onde os estudantes ganham conhecimentos e experiência no cultivo do alimento – a base de toda a produção alimentar. Além da formação em gastronomia, a universidade oferece vários outras possibilidades de estudo em nível de mestrado, por exemplo, mestrado em gastronomia com foco na criatividade, ecologia e educação; mestrado em cultura alimentar com foco em comunicação e marketing; mestrado em artes culinárias focando em ‘gastronomia aplicada’. Uma outro tipo de interação que o estudante tem é através da visita de chefs famosos à universidade, uma média de 25 ocasiões por ano, participando das atividades acadêmicas, em franca interação com os estudantes. 

O Movimento Slow Medicine não somente se inspirou no Movimento Slow Food. Quando Alberto Dolara escreveu o primeiro artigo em 2002, que cunhou a expressão Slow Medicine, ele trouxe à tona a discussão de que os princípios da Slow Food poderiam ser utilizados na área da saúde, através do desaceleramento do processo de tomada de decisões, com a disponibilização da informação adequada e seu compartilhamento com pacientes e familiares. Desde então, na Itália, os 2 movimentos tem procurado compartilhar caminhos e princípios, buscando estratégias e ações  comum, tendo em vista que o papel da alimentação na promoção da saúde, prevenção e tratamento de inúmeras doenças é inquestionável. Trabalhos publicados em inúmeras revistas médicas de grande expressão e credibilidade tem apontado nesta direção. Carlo Petrini esteve presente no primeiro Congresso Italiano de Slow Medicine e acompanha de perto os desdobramentos de suas atividades e o aumento progressivo do interesse da comunidade médica, dos demais profissionais de saúde, pacientes e cidadãos, em seus princípios e sua filosofia. No próximo mês de setembro de 2019, a Universittá Gastronomica de Pollenzo, juntamente com o Complexity Institute e a Associação Italiana de Slow Medicine irão promover um curso em profundidade sobre alimentação e saúde – Cibo è Salute

Os arredores da Universittá Gastronomica em Pollenzo são bonitos e inspiradores. Na primavera, um enorme roseiral explode em cores e beleza, próximo do restaurante e hospedaria que funcionam no prédio da universidade. De seu terraço se vislumbram as ruínas de uma coluna romana, provavelmente um monumento cerimonial, ao centro de um sítio arqueológico cuidadosamente preservado. Pollenzo ainda guarda outras relíquias de sua fecunda história, nos arredores da faculdade. Divago que de alguma maneira o monumento erguido pelos romanos na antiguidade se vincula ao presente: o sagrado ato de alimentar-se, tantas vezes representado pelo pão, encontra ali um espaço onde esta sacralidade é estudada, reverenciada e consolidada pelo saber. E espalhada pelo mundo.

Entardecia, era hora de voltar para Turim. Antes, resolvi conferir uma última dica de Lucia, a pasticceria Converso Bra. A cidade agora estava viva, as pessoas nas ruas, caminhando, pedalando, conversando nos bares e cafés. A vida que segue, e para nós, humanos, em sua concepção mais original: a convivência. Sim, celulares, Facebook, Instagram, Twitter por toda a parte. Bra é outro mundo, mas é o mesmo mundo. E nisso também está parte da magia: vivemos em um mundo globalizado e conectado, e o que importa é como vivemos nossas vidas; a tecnologia pode nos afastar. Mas pode nos tornar mais próximos…. Frente à uma xícara de chá e uma torta de frutas vermelhas, olhando o ambiente centenário da cafeteria, tive certeza das palavras que são um dos motes da Slow Food. Sim, “comer é um ato político“.

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