O mundo complexo das demências e a Slow Medicine

abril 21, 2019
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Por Rafael Thomazi:

Segundo estimativas da Alzheimer`s Disease International (ADI), federação que representa mundialmente 85 entidades, as demências afetam mais de 47 milhões de pessoas em todo mundo. No Brasil, são estimados 55 mil novos casos de demências todos os anos, a maioria decorrentes da moléstia de Alzheimer. Pensando em saúde pública e otimização do manejo do transtorno cognitivo leve e da doença de Alzheimer, é fundamental que se mude o modelo de assistência atual para tratamento das demências, desenvolvendo ações interprofissionais que melhorem a funcionalidade e qualidade de vida desses pacientes e seus familiares. Diante do rápido incremento populacional e estimativas alarmantes a respeito das síndromes demenciais, urge incremento de ações preventivas (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia).

Alguém já parou para pensar o que representa para um paciente receber o diagnóstico de demência? Que oferecer cuidados para essas pessoas não tem pausa, férias, horário de almoço; são 24 horas por dia convivendo com múltiplos desafios. Questões físicas, psicossociais, econômicas, espirituais e ambientais estão entrelaçadas e o entendimento desse contexto é fundamental tanto para pacientes e cuidadores quanto para os profissionais de saúde envolvidos no cuidado.

Como ajudar os pacientes e cuidadores (na maioria das vezes familiares) a lidar com uma doença incurável e progressiva na qual há perda de funcionalidade e autonomia?

Mesmo com o avanço da medicina, os tratamentos farmacológicos das demências são muito limitados e as perspectivas são pouco animadoras. Ao mesmo tempo, na maioria das vezes, o manejo clínico é baseado no aumento ou troca de psicofármacos, culminando com a intensificação da polifármacia, aumentando o risco de cascata iatrogênica e consequentemente quedas, broncoaspiração e delirium. A epidemia silenciosa do uso de benzodiazepínicos e o uso indiscriminado de neurolépticos em pacientes com demência são grandes exemplos disso. Como reduzir essa lógica de multiplicação de medicamentos no decorrer de um quadro demencial

Para responder tantas interrogações inicialmente precisamos “aterrissar” no mundo das demências, ou seja, precisamos entender onde estamos “pisando” e para isso é obrigatório avaliar todas as questões entrelaçadas citadas no início do texto. Nesse contexto, ouvir o paciente e os cuidadores é fundamental. Tempo para ouvir, para entender, para refletir. Tempo para consultar e tomar decisões.  Muitas vezes os profissionais de saúde e a família não dão abertura ao paciente com demência se comunicar. E aí vai mais uma questão importante. Precisamos estudar a arte de identificar outras formas de comunicação além da verbal e deixar o paciente participar dos seus cuidados. Entender sua história, ou seja, a sua biografia, é de grande valia durante o seguimento desses pacientes.

Inserir os cuidadores em serviços ambulatoriais de suporte, informar a comunidade sobre a doença e ouvir as dificuldades de cada família no cuidado são caminhos importantes já que a rotina familiar pode ser alterada de forma abrupta, as relações sociais podem ser enfraquecidas, surgindo problemas de saúde no cuidador como burnout, depressão, doenças osteoarticulares; já vi familiares saírem do emprego para cuidarem dos pais, pessoas mudando de cidade, mudando de casa; pessoas que reduziram seu poder aquisitivo secundário ao custeio desses cuidados (medicamentos, fraldas, recursos humanos, alimentação, mudança de ambiente, internação hospitalar…).

Conflitos entre familiares são comuns e envolvem na maioria das vezes questões delicadas sobre responsabilidades, problemas financeiros, jurídicos; sendo muito desses casos impulsionados pela falta de apoio social e de conhecimento sobre a evolução da demência. Trabalho em equipe multiprofissional com presença de serviço social, rede de apoio psicológico e iniciar planejamento de cuidados desde o diagnóstico da demência são fundamentais nesse contexto.

Os cuidados paliativos são um grande aliado da Slow Medicine para a melhoria dos cuidados ofertados na demência, dando suporte a maioria dos conflitos e questões complexas, já que é uma abordagem múltipla, individualizada e que busca melhor qualidade de vidapara pacientes e familiares de forma humanizada.

Priorizar os valores do paciente, suas expectativas e preferências serve como base para os cuidadosa realização de decisão compartilhada torna-se desafiadora nas demências.Será que o paciente no início da demência pode tomar decisões sobre a sua doença? Como identificar o momento em que é a família que terá o poder de decidir de forma compartilhada com a equipe de saúde?

Como em outras doenças, o Overdiagnosis em demência deve ser debatido. Saber que você desenvolverá demência antes da sua instalação é benéfico ou não? Qual impacto psicológico essa notícia traz ao paciente? Ele conseguirá planejar sua vida melhor ou ficará incomodado e pressionado por saber que sua doença é incurável e progressiva? Diagnosticar demência não é uma tarefa fácil. Muitas vezes demoramos várias consultas ambulatoriais para darmos o diagnóstico provável. Dar o diagnóstico de forma precipitada pode levar a sequelas irreversíveis para o paciente e familiares. Assemelha-se muito a notícia de um câncer, ou seja, o estigma é muito grande. Por isso a cautela e a avaliação criteriosa do quadro tornam-se necessárias. 

Quadros de alteração de humor, alterações metabólicas, infecciosas, deficiência de vitamina B12 são grandes diferenciais. Um erro comum é o diagnóstico de demência ser dado pelas atrofias corticais cerebrais identificadas por um exame de imagem. Muitos idosos apresentam atrofia cortical difusa e permanecem assintomáticos. Exames como tomografia computadorizada e ressonância magnética são ferramentas importantes para descartar diferenciais e causas potencialmente reversíveis de demência, mas não devem ser considerados isoladamente para diagnóstico. Portanto devemos considerar muito além de exames para darmos um diagnóstico provável de uma demência. É preciso a associação de tempo, sensibilidade, empatia, conhecimento técnico, história clínica minuciosa, avaliação de funcionalidade, realização de testes cognitivos. 

A avaliação geriátrica ampla é uma ferramenta muito útil na avaliação dos pacientes com demência. A partir dela conseguimos avaliar domínios importantes para compreendermos as melhores intervenções no contexto de cuidado (avaliação funcional, perdas sensoriais, risco de quedas e tontura, incontinência urinária, constipação, alterações psicológicas e comportamentais, estadiamento da demência, suporte social, fragilidade e desnutrição, medicamentos potencialmente inapropriados, realização de prevenção quaternária…)

 A prática de desprescrição médica também é importante. Na evolução das demências, muitos medicamentos já não fazem o efeito desejável e mantê-los pode ser prejudicial ao paciente, dado o aumento dos efeitos colaterais em pacientes com fragilidade, disfagia e imobilidade. Submeter pacientes com essas características a exames periódicos de rotina e rastreio pode ser prejudicial. Devemos usar o bom senso para evitar tais recomendações. Bom senso que muitas vezes falta ao avaliar o uso da tecnologia e dos benefícios de certos medicamentos para pacientes com demência.

As orientações não farmacológicas no contexto do cuidado das demências são fundamentais. Avaliar o ambiente, as rotinas, discutir as questões alimentares, a forma de se comunicar com os pacientes dementados, resgatando as preferências, os objetos pessoais, as memórias de vida (álbuns de fotografia por exemplo), músicas, aromas, animais de estimação, visitação de locais específicos são formas de se reduzir os problemas comportamentais e estimular a participação do paciente no contexto de sua doença.

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, 
assim calmo, assim triste, assim magro, 
nem estes olhos tão vazios, 
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força, 
tão paradas e frias e mortas; 
eu não tinha este coração 
que nem se mostra. 

Eu não dei por esta mudança, 
tão simples, tão certa, tão fácil: 
– Em que espelho ficou perdida 
a minha face?
Cecília Meireles

Ofertar cuidados de final de vida para pacientes com demência avançada e trabalhar com a família o dia a dia desses cuidados é muito complexo. Temas como hidratação artificial, antibioticoterapia, internação hospitalar, idas ao pronto socorro, cuidados domiciliares e via alterativa de dieta são temas fundamentais a serem discutidos no decorrer da evolução da doença, retomando o que já foi discutido no texto sobre decisão compartilhada, individualização de condutas e cuidados paliativos. 

A tríade filosófica da Slow Medicine, avaliação geriátrica ampla e cuidados paliativos devem servir de alicerce a uma melhor prática de cuidados ofertados no contexto das demências, reduzindo iatrogenias e distanásia, resgatando a paixão pelo cuidar e buscando a humanização dos cuidados à saúde.

______________

Rafael Thomazi, 32 anos, nascido em São Bernardo do Campo, mora em Botucatu desde 2006, onde iniciou graduação em medicina na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP). Médico formado em 2011, fez residência em clínica médica e geriatria pela FMB. Título de especialista em geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia em 2017. Trabalha em consultório como geriatra, realiza atendimento domiciliar na cidade de Botucatu, sendo médico responsável pela enfermaria de geriatria do HC de Botucatu – UNESP, preceptor dos residentes em geriatria. Mestrando no programa de fisiopatologia em clínica médica da FMB. Entusiasta da filosofia slow medicine, da prática de cuidados paliativos e desprescrição médica.

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Laura Berquó
Laura Berquó
5 anos atrás

Adorei o texto.
O tema é cada vez mais importante na medida em que a população idosa cresce no país e no mundo.
Bom saber que temos jovens clínicos dedicados ao tema

Carla
Carla
1 ano atrás

Excelente texto! Importantes informações Dr Rafael, todo seu trabalho na geriatria e com cuidados paliativos são admiráveis! E assim, com mais profissionais nessa área aumenta a possibilidade de maior qualidade na vida e também na finitude, que mais pacientes tenham a oportunidade desses acompanhamentos.

Carla
Carla
1 ano atrás

Importantes informações Dr Rafael, todo seu trabalho na geriatria e com cuidados paliativos são admiráveis! E assim, com mais profissionais nessa área aumenta a possibilidade de maior qualidade na vida e também na finitude, que umais pacientes tenham a oportunidade desses acompanhamentos.

Nadia Placideli Ramos
Nadia Placideli Ramos
1 ano atrás

Excelente texto com importantes e preocupantes questões relacionadas as condutas terapêuticas aos idosos com demência! Na prática o que vivenciamos são famílias desesperadas não sendo orientadas e seus idosos com coquetéis de infinidades de medicações… É urgente a necessidade de cuidados paliativos+slow medicine neste contexto! Parabéns.

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