Documento publicado no site da Associação Italiana de Slow Medicine em maio de 2021, em comemoração aos 10 anos da existência do Movimento Slow Medicine na Itália. Traduzido para o português por Andrea Bottoni.
O Movimento Slow Medicine foi fundado na Itália em 2011, quando um grupo de profissionais do serviço nacional de saúde e cidadãos, há muitos anos engajados na promoção da melhoria da qualidade das organizações e dos serviços de saúde, elaborou e sugeriu um novo paradigma metodológico e operacional.
O Movimento Slow Medicine Itália nasceu como um movimento de ideias para trazer os processos do cuidado de volta a um contexto mais equilibrado, reconhecendo e sustentando seu valor numa relação de escuta, diálogo e decisões compartilhadas com o paciente. A filosofia Slow Medicine se resume em três palavras-chave: sóbria, porque atua com moderação, de forma gradual e sem desperdício; respeitosa, porque está atenta à dignidade da pessoa e ao respeito pelos seus valores; justa, porque está empenhada em garantir o tratamento adequado com base nas melhores evidências disponíveis para todos
Deve-se destacar que o termo “Slow” não é sinônimo de medicina lenta, mas remete ao conceito de medicina reflexiva e ponderada, que deixa tempo para reflexão, raciocínio e equilíbrio.
A Slow Medicine foi assim delineada como um caminho para um tratamento sóbrio, respeitoso e justo partilhado por profissionais de saúde, pacientes e cidadãos, que visa contrabalançar as dificuldades mais frequentes relacionadas com as formas de prestação de cuidados, comuns a todos os países (utilização às vezes exagerada de exames e tratamentos, sobrediagnóstico, foco nas doenças, conflitos de interesse, desumanização do atendimento, informações excessivas ou imprecisas) integrando a medicina baseada em evidências com uma medicina humanizada, tendo consciência dos limites da medicina e do fato de que a saúde depende da interação de múltiplos elementos: biológicos, psíquicos, espirituais, sociais e ambientais. A saúde é o melhor equilíbrio possível entre esses elementos em um determinado momento e em um determinado contexto; ora um prevalece, ora o outro, mas todos estão sempre presentes e interagindo. Essa oscilação constante, esse equilíbrio dinâmico, nunca definitivo ou estático, é o contexto próprio dos sistemas vivos: um conceito que a Slow Medicine acolhe e faz seu.
O nome Slow Medicine foi escolhido para estabelecer, desde a sua criação, a afinidade ideal com o Movimento Slow Food, que durante décadas promoveu uma agricultura sustentável na Itália e no mundo e a oportunidade, para todos os seres humanos, de Alimento Bom, Limpo e Justo.
A forma associativa era a de uma “rede de ideias em movimento”, ou seja, uma “ágora” na qual as pessoas expressam e confrontam livremente as suas opiniões e colaboram, sem proveito pessoal e sem conflitos de interesse, para difundir conhecimentos e experiências coerentes com este novo paradigma.
Considerando a multiplicidade dos determinantes da saúde humana, do papel crucial da integridade do ecossistema para a sua manutenção e do grande desenvolvimento recente do conhecimento científico e das tecnologias biomédicas, que têm determinado um aumento significativo da complexidade das organizações de saúde, desde as suas primeiras iniciativas Slow Medicine considerou que exclusivamente uma abordagem sistêmica permite o planejamento e a implementação de ações que visem a resolução de problemas de evidente origem sistémica.
Em última análise, o novo paradigma de valores combinou os princípios éticos das profissões da saúde, a ética da responsabilidade de Max Weber e a visão sistêmica da vida de Fritjof Capra e Pier Luigi Luisi.
O primeiro e mais desafiador projeto do Movimento Slow Medicine, iniciado em 2012, foi “Fazer mais não significa fazer melhor”, que deu início, na Itália, à constituição de uma rede de sociedades médico-científicas e associações profissionais empenhadas na identificação e divulgação de recomendações sobre práticas profissionais “nem sempre muito adequadas”, potencialmente desnecessárias e às vezes nocivas, sobre as quais os profissionais e seus pacientes devem falar, para se chegarem a escolhas compartilhadas e conscientes.
O projeto foi inspirado no movimento norte-americano “Choosing Wisely”, promovido no mesmo ano pela Fundação dos Médicos Internistas dos EUA (“Fundação ABIM”) e pela revista para cidadãos “Consumer report”. Nos anos seguintes, movimentos com finalidades semelhantes também nasceram em outros países do mundo: foi criada a rede Choosing Wisely International, coordenada pelo Canadá, que organiza todos os anos, a partir de 2014, encontros internacionais nos quais o Movimento Slow Medicine Itália sempre participou. O movimento Choosing Wisely está agora ativo e presente em 25 países ao redor do mundo, em 5 continentes.
Desde 2016, o projeto italiano recebeu o nome de “Choosing Wisely Italy“. Até agora, aderiram à sua rede cerca de 50 sociedades científicas e associações profissionais de profissionais da área da saúde e foram definidas 265 recomendações.
As recomendações do Choosing Wisely Italy estão contidas no site e na app Choosing Wisely Italy e passaram a fazer parte, há alguns anos, das “Boas Práticas” do Sistema de Diretrizes Nacionais do Instituto Superior de Saúde e da ferramenta internacional de apoio à decisão “Dynamed”. Atualmente o maior desafio é sua disseminação e implementação.
Além deste projeto, o Movimento Slow Medicine Itália, em seus dez anos de atividade, graças ao trabalho voluntário de seus membros, deu origem a inúmeras outras iniciativas: organizou sete congressos nacionais, criou um site, uma página institucional no Facebook, um grupo de discussão específico no Facebook e um boletim informativo mensal.
Participou da organização e realização de um Master Executivo em medicina “slow” no Centro de Formação para Profissionais de Saúde da Região Sicília (CEFPAS) e realizou um curso EaD sobre o mesmo tema para o Hospital Papardo de Messina.
Seus membros publicaram alguns livros, inúmeros artigos em jornais e revistas nacionais e internacionais, e participaram de congressos e eventos em toda a Itália e às vezes até no exterior.
Durante a pandemia de COVID-19, o Movimento Slow Medicine Itália organizou alguns encontros online que contaram com a participação e contribuição de centenas de pessoas e membros do Movimento.
A maior parte das suas atividades foram concebidas e implementadas em parceria com outras organizações ou instituições, incluindo a Federação Nacional dos Conselhos de Medicina e a Federação Nacional dos Conselhos de Enfermagem. Nos primeiros dez anos de vida, graças às suas experiências nacionais e internacionais, o Movimento Slow Medicine Itália demonstrou a solidez dos seus princípios fundadores e a eficácia dos seus métodos de trabalho, ganhando notoriedade e autoridade.
O Movimento Slow Medicine Itália acredita que chegou o momento de um renascimento da atividade assistencial, voltada para o restabelecimento da relação entre os profissionais de saúde e suas comunidades. Esse espaço, merecedor de toda dignidade, precisa ser mais protegido, para permitir que a ciência cumpra seu papel a serviço do homem e para garantir que os profissionais de saúde disponibilizem seu tempo e recursos.
Slow Medicine também acredita que a presença de vínculos de cuidado mútuo entre as pessoas, em seu contexto de vida, é um determinante da saúde. Numa sociedade como a que vivemos, com o problema da solidão crescente, os riscos para as pessoas mais frágeis aumentam exponencialmente e a falta de pessoas de referência em caso de necessidade é um dos fatores que levam a tratamentos inadequados ou internações desnecessárias. Para pensar na necessária reorganização da atenção básica é fundamental envolver todos os atores sociais que possam favorecer responsavelmente um contexto de relações de cuidado.
Também deve ser reiterado o importante papel da prevenção primária, entendida como a manutenção da saúde por meio de hábitos saudáveis de vida (alimento bom, limpo e justo, exercíco física, uso adequado do tempo, cuidado com os seres vivos e com o meio ambiente – ar, água, solo), a aplicação universal e o respeito do princípio da precaução na produção industrial e agrícola, na comercialização de seus produtos e na prevenção do desperdício de matérias-primas e processadas de produtos residuais não reutilizáveis . A produção circular de bens e serviços é uma ferramenta fundamental para a proteção da saúde dos seres vivos e da biosfera. Os serviços de saúde também têm um impacto ecológico significativo, sendo responsabilidade dos profissionais de saúde avaliá-lo e tomar medidas para reduzi-lo.
A constante procura de métodos de trabalho colaborativos e cooperativos, a convicta referência de valor à ética da responsabilidade dos profissionais e dos cidadãos, a utilização de uma abordagem sistêmica para a análise de questões críticas e a busca de soluções, permitiram-lhe desenvolver o seu próprio caminho de resposta à pandemia, resiliente e sistêmico, e por isso Slow Medicine hoje está pronta para uma escolha abrangente e profunda em prol do bem-estar das próximas gerações e do futuro de nosso planeta.
A pandemia destacou dramaticamente a importância das mensagens de alerta que vários cientistas e líderes responsáveis e esclarecidos lançaram nos últimos anos sobre problemas sistêmicos como as mudanças climáticas, a degradação de ecossistemas, a perda de biodiversidade, as crescentes desigualdades sociais e econômicas e a fragilidade de instituições internacionais frente o excessivo poder dos interesses econômicos quando comparados aos direitos fundamentais da humanidade.
Em um mundo injusto, com incontáveis conflitos armados não resolvidos e desesperadas migrações épicas, a pandemia demonstrou de forma definitiva que não basta pensar em uma medicina sóbria, respeitosa e justa em um único país, e que escolhas sábias devem ser feitas a favor de todos os seres humanos, começando com aqueles que vivem nas nações mais desfavorecidas.
Doravante a Slow Medicine voltará sua atenção e direcionará suas energias para que os princípios e valores universais pelos quais nasceu sejam de inspiração para as escolhas operacionais de cada comunidade humana, da menor à maior, e para que todos os países do mundo adotam sinergicamente políticas colaborativas e cooperativas, que garantam a transição ecológica do maior número de atividades produtivas e sociais no menor tempo possível, de forma a garantir o equilíbrio do ecossistema e a proteção da saúde do ser humano e para todos os seres vivos, cuidando para não exceder na dívida pública, que sem dúvida condiciona o bem-estar das gerações futuras.
Slow Medicine também avaliará os resultados da produção científica de acordo com os princípios da visão sistêmica, da ética da responsabilidade, das evidências científicas, da sustentabilidade (não apenas ambiental) e da participação dos cidadãos, apoiando projetos de pesquisa que respeitem escolhas de sobriedade, respeito e justiça (com particular atenção ao risco de conflitos de interesses) e estimulando o uso de resultados baseados em um conceito dinâmico de saúde e centrado nas necessidades dos pacientes.
O Movimento Slow Medicine Itália promoverá e apoiará todas as iniciativas destinadas a devolver poderes e recursos de estados individuais a instituições supranacionais (em primeiro lugar para a União Europeia, mas também para a ONU e a OMS), de modo que iniciativas coordenadas, oportunas, sustentáveis, eficazes e justas sejam implementadas por eles, visando a proteção da saúde e de todos os outros direitos humanos definidos na declaração das Nações Unidas de 1948 e reafirmada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2009.
Para difundir as suas ideias e propostas, Slow Medicine pretende partilhá-las e elaborá-las envolvendo também os seus parceiros, iniciando com os mais novos, no desenvolvimento de documentos e projetos partilhados, estar presente nos media e participar no debate público nacional e internacional.
Turim, 27 de maio de 2021
PDF do artigo (em italiano): CLIQUE AQUI
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Andrea Bottoni: italiano, nascido em Roma; Médico pela Universidade de Roma “La Sapienza”, com Residência Médica em Nutrologia na mesma Instituição; Revalidação do Diploma de Médico pela UFES; Especialista em Medicina Desportiva, Mestre em Nutrição e Doutor em Ciências pela UNIFESP; MBA Executivo em Gestão de Saúde pelo Insper e MBA em Gestão Universitária pelo Centro Universitário São Camilo; Especialista em Mindfulness, Instrutor de Mindful Eating Aplicado à Promoção da Saúde e Instrutor de Mindfulness Aplicado à Promoção da Saúde pela UNIFESP; Coach de Saúde e Bem-Estar e Coach Ontológico; Título de Especialista em Nutrologia, em Medicina Esportiva e em Medicina Preventiva e Social; Integrante do Movimento Slow Medicine Brasil, Associado do Movimento Slow Food Brasil e Membro do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida; vive no Brasil, em São Paulo, felizmente casado com Adriana, também médica.