Por Jaqueline Doring Rodrigues:
A educação médica, no Brasil, está longe de ser a ideal. Entretanto, há que se enfatizar que nas últimas décadas houve um caminhar, ainda que lento, para uma Medicina centrada mais na pessoa do que na doença. Porém, ainda há dificuldades de treinamento na formação, em virtude de barreiras estruturais institucionais e pessoais que limitam esse processo.
Na Residência em Geriatria e também como aluna da especialização em Cuidados Paliativos(CP), percebo a associação dos princípios do Slow Medicine com a prática clínica. Cada vez mais, sente-se a necessidade de abordar a multidimensionalidade do paciente. Para compor todas essas dimensões há que se valorizar o tempo para uma boa consulta, construir uma boa relação médico-paciente, individualizar e compartilhar as decisões. Sem esquecer que nem sempre fazer mais significa fazer o melhor.
Sabe-se o quanto a educação representa como peça fundamental de uma civilização. Uma boa formação primária faz diferença na vida dos futuros profissionais. Ela representa o momento de aflorar vocações, quando se traçam escolhas que levam ao encontro dos propósitos pessoais. Tal descoberta enseja o embarcar na formação profissional com segurança e estímulo suficiente para fazer com que o caminho, às vezes árduo, seja traçado de forma sólida e prazerosa, como qualquer estudo deveria ser, obviamente incluindo toda a formação médica, que seria então realizada conforme as aptidões pessoais e as necessidades da comunidade. Numa ordem natural e de aprendizado leve, proporcionando enriquecimento duradouro associado a uma devolutiva que inspire os jovens estudantes, os colegas de profissão, os pacientes e as famílias, que são parte do cuidado completo ao doente.
Todas as profissões são nobres, quando exercidas de forma honesta, ao fazerem a diferença na vida das pessoas. Na área da saúde é da mesma forma. Todas as especialidades são dignas e essenciais, e seu exercício de forma justa resgata o sentido verdadeiro de sua existência. Elas surgiram para que se possa oferecer o atendimento necessário àquele que precisa. Na união dos conhecimentos têm- se o cuidado integral de melhor qualidade. A residência em geriatria permite vivenciar em reuniões com a equipe multiprofissional em convivência harmoniosa, capaz de gerir de forma ímpar a interdisciplinaridade nas enfermarias do Hospital. As discussões sobre os casos dos pacientes engloba, entre outros, o contexto familiar aprofundado, a percepção de bem estar físico, emocional e espiritual, dando ênfase à idade biológica em detrimento da idade cronológica. Ah a idade! Esta tantas vezes estigmatizada pelo culto à juventude exacerbado pela mídia, na geriatria idolatrada com um salve aos bons hábitos e sabedoria.
Ao menos uma vez por semana, à beira do leito, as visitas aos pacientes são realizadas conjuntamente pelo preceptor e seus residentes, pelos acadêmicos de medicina, pela enfermeira, pela fonoaudióloga, pela assistente social, pela nutricionista, pela fisioterapeuta, pela dentista e pela farmacêutica. Nota-se a riqueza desse cuidado interdisciplinar que se reflete de forma única no bem-estar do paciente. Essa sistemática somente é possível em instituições que privilegiam a formação de profissionais com os serviços de Residência Médica e Multiprofissional. De outra forma, seria inviável esse formato de assistência. A burocracia que envolve o sistema hospitalar, muitas vezes faz com que as condutas sejam seguir protocolos, alegando-se não haver tempo para uma discussão profunda. A pressa faz com que sejam realizados tratamentos excessivamente onerosos e com resultados duvidosos. Ainda nos falta a consciência dos limites da Medicina, a aceitação do inevitável e o reconhecimento da incerteza. Generalizando, essa é a fórmula contra a Medicina mais tecnicista e menos humanista que temos hoje.
Não há mais espaço para a Medicina centrada somente na cura; deve-se voltar o olhar também para as doenças em estágios terminais. E sendo assim, precisamos nos desvencilhar daquela antiga conduta de que tratar o doente é oferecer somente o medicamento. A futilidade e a obstinação terapêutica não podem mais ser utilizadas como desculpas para a falta de informação tanto científica quanto da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos.
No Brasil são poucos os serviços de CP e menor ainda o número de residências e especializações nesta área. Nas universidades fala-se pouco sobre a morte. Formam-se médicos que não sabem como tratar sintomas associados com o final de vida; aos alunos não se ensina como darem más notícias.
Faz-se necessário ainda, reconhecer os CP como uma especialidade e consolidar na graduação matérias destinadas à formação de profissionais reconhecidos nessa área de atuação. Além do preconceito que os pacientes e familiares trazem, também, em diversas especialidades, nos deparamos com a resistência de colegas. Muitas vezes se confunde essa abordagem com eutanásia. Tal visão equivocada limita a boa prática médica que embasada no sistema que se propõe, já comprovou reduzir os custos dos serviços e, inclusive, aumentar a sobrevida, quando da instituição precoce dos cuidados paliativos.
O processo de treinamento em estrutura da formação médica nos Serviços de Residência deveria resgatar as premissas da educação básica de uma sociedade, primeiramente trazendo os valores da ética e da bioética para as práticas diárias, fazendo espaço para a busca filosófica do sentido da sua formação, ampliando a dimensão do seu propósito. Cada membro precisa reconhecer em si a própria necessidade de cuidados integrais. Desenvolver as qualidades interiores deveria ser um treinamento de ensino primário, mas, comumente se designa a escola da vida para esse aprendizado. Não poucas vezes se entra no mercado de trabalho sem o necessário refinamento dessas características tão necessárias.
Além disso, o formato atual dos serviços de Residência Médica exige um treinamento exaustivo. A própria seleção dos médicos é feita somente por competências e não também pela disposição em ajudar os outros. Como esperar que se aja com compaixão, se o que se cobra o tempo todo é o volume de informação armazenada e a rapidez em atender as necessidades?
A compaixão para com o outro é uma atitude que pode exigir treinamento, e uma forma desse aprendizado é treiná-la consigo mesmo. Desenvolver as próprias virtudes como forma de melhor atender a outrem. Com isso ocorre maior satisfação e equilíbrio emocional no confronto das adversidades diárias.
Portanto, propugnar por uma gestão hospitalar capaz de valorizar mais a forma com que as pessoas são tratadas do que priorizar a redução de custos e a rapidez do atendimento é o modelo de atenção ideal de uma instituição alinhada com o movimento Slow Medicine. Talvez dessa forma, tenhamos profissionais menos dessensibilizados com o hábito e mais humanizados; pessoas mais felizes e residentes que sonhem ser inspiradores das novas gerações. E inspiração é o que desperta nosso potencial criativo para fazermos a diferença. Esse diferencial amplifica o conhecimento, pois ecoa nas salas de aula, nos lares e, mais importante, nos rostos confortados de quem não sente mais dor.
Há que se olhar mais para o outro, mas, para isso é necessário olhar também para si, com compaixão. Dessa forma, nossos olhos acostumados a focar no ”eu” passarão generosamente a enxergar ao “nós”.
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