Por José Renato Amaral
“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente,
somos habitados por uma memória.”
Celebrou-se em 21 de setembro o Dia Mundial da Conscientização sobre a Doença de Alzheimer. Tenho a impressão que, agora que os adeptos desse tipo de promoção de saúde perceberam que há mais doenças que meses no ano, tem havido a tendência a se elegerem dias específicos para isso. Também tenho a impressão que com o empenho dos envolvidos e com a profusão de novos diagnósticos, em pouco tempo 365 dias serão insuficientes, mas isso já é outro assunto.
Estima-se que mais de 50 milhões de pessoas no mundo sejam portadoras de demência, disfunção neurocognitiva e comportamental cuja causa mais comum é a doença de Alzheimer. A Organização Mundial de Saúde projeta que esse número deva triplicar até 2050. Como sabemos, a doença de Alzheimer é uma das mais temidas pelas pessoas, seja em si próprias, ou naquelas que a cercam, pois invariavelmente, com a progressão de suas manifestações, a doença obriga seu portador a depender do cuidado de terceiros para viver em segurança e com dignidade.
Muito já se sabe sobre a Doença de Alzheimer. Sua etiologia está associada à morte de neurônios em áreas estratégicas do cérebro, e as causas moleculares dessa degeneração já foram bem investigadas. Convencionou-se exigir para o diagnóstico definitivo de doença de Alzheimer a presença da proteína beta-amiloide (BAP, na sigla em inglês). Atualmente, dispomos de biomarcadores (como exames de imagem, de líquido cefalorraquiano ou mesmo de sangue) para a identificação de pacientes com níveis anormais de BAP, o que, diante de um quadro clínico compatível, pode indicar tal diagnóstico. Já há também tratamentos, baseados em anticorpos monoclonais, destinados à remoção da BAP do tecido cerebral e, portanto, à proteção dos neurônios ou mesmo a reversão do dano que ela lhes causa.
Tudo isso soaria muito promissor, não fossem alguns problemas. A meu ver, o primeiro é o risco de falsos positivos ou sobrediagnóstico. Já temos visto casos de indivíduos assintomáticos que foram atrás de biomarcadores (afinal, é bom fazer diagnóstico precoce…) e nos procuram porque um exame apontou o diagnóstico de Alzheimer. Não se deve fazer tal diagnóstico baseado apenas num biomarcador, seja lá qual ele for, porque a discordância entre os achados moleculares e o quadro clínico é gigantesca – cerca de 20% dos casos de autopsia com patologia compatível nunca apresentou quadro clínico de demência. Imagine-se então o quanto de falsos-positivos um biomarcador muito sensível poderá gerar se seu uso for massivo!
Na verdade, o preço de qualquer diagnóstico é o risco de um resultado falso-positivo ou de sobrediagnóstico. Quanto menor a probabilidade pré-teste, maior o risco desses resultados. No caso da doença de Alzheimer, é difícil falar em sobrediagnóstico porque tal termo pressupõe um diagnóstico verdadeiro, porém sem impacto clínico, e o diagnóstico de Alzheimer (ainda) requer algum impacto clínico. Se o uso dos biomarcadores for indiscriminado ou desvirtuado para rastreio, resta-nos a perspectiva de uma alta taxa de falsos-positivos, pois todos os exames de rastreio pecam pela alta taxa de resultados falsos-positivos. O problema da doença de Alzheimer é que não há um exame mais fidedigno que possa validar (ou não) o achado inicial. Por exemplo, quando se faz uma mamografia e seu resultado é suspeito, procede-se à biopsia da mama para confirmar ou não a hipótese; no caso do biomarcador falso-positivo para Alzheimer só restará uma expectativa apreensiva sobre o que poderá acontecer no futuro (é impraticável se biopsiar o cérebro).
Aqui cabe uma ressalva sobre ninguém (ainda) ter proposto o rastreio universal de Alzheimer com biomarcadores: se isso ocorrer, provavelmente será destinado a populações selecionadas, como famílias de alto risco. O problema é que sabemos como isso funciona, enquanto houver gente disposta a fazer todos os exames preventivos possíveis haverá também médicos e laboratórios dispostos a prontamente lhes atender, e muita gente que sequer deveria ter sido testada será diagnosticada a partir de um biomarcador (o que provará sua tese “eu bem falei que era importante fazer o exame”).
A pressão para a incorporação dos biomarcadores à prática clínica tem sido justificada pelo advento da nova geração de drogas para tratamento do Alzheimer, os já citados anticorpos monoclonais. Se a deposição de beta-amiloide for a principal causa da degeneração neuronal do Alzheimer, seria razoável supor que a eliminação dessa proteína anômala resolveria o problema, e que quanto antes se iniciar tal tratamento, melhor (mais abaixo veremos que, na prática, não é bem assim). Nesse sentido, tem sido proposta uma revisão dos critérios diagnósticos para a doença de Alzheimer que pressupõe o emprego rotineiro dos tais biomarcadores, o que veio a público na última Conferência Internacional da Associação de Alzheimer. A Associação Americana de Geriatria (AGS) publicou uma carta bastante corajosa apontando todos os (vários) problemas dessa proposta.
O preço do tratamento é mais complexo, pois envolve a segurança, a eficácia e o custo financeiro propriamente dito. As novas drogas para Alzheimer não primam pela segurança, nos estudos disponíveis houve uma alta taxa de eventos adversos preocupantes como microhemorragias intracerebrais ou edema cerebral, sintomas associados como cefaleia e náuseas, e houve até mortes por essas complicações em alguns estudos. Num esforço em ser elegante, eu diria que a segurança dessas drogas deixa a desejar.
O efeito das novas drogas sobre alguns aspectos estruturais da doença é interessante; nos exames de imagem (PET-CT) observa-se uma “limpeza” dos depósitos de beta amiloide. Todavia, a repercussão clínica é decepcionante: o impacto do tratamento sobre o desempenho cognitivo medido por escalas é muito modesto, semelhante mesmo ao dos inibidores da acetilcolina-esterase (a primeira classe de medicamentos para Alzheimer), como bem destaca um viewpoint no JAMA (JAMA Intern Med. 2023; 183 (9):902-3). Na verdade, a eficácia desses novos medicamentos já era discutível à altura de sua aprovação pelo FDA, que aliás foi bastante criticada.
Embora os imunobiológicos disponíveis promovam uma eficácia modesta aliada a uma alta taxa de eventos adversos potencialmente graves, seu custo é bastante elevado. Há estimativas de que, no Brasil de hoje, o custo anual seria algo em torno de 150 mil reais por ano. Esse custo envolve, além das drogas, a necessidade de infusão, monitoramento e exames sofisticados para o controle dos tais eventos adversos. Quem tem um pouco mais de experiência com tratamentos de alto custo no Brasil já imagina que, se um desses medicamentos for aprovado numa segunda-feira, na terça-feira já haverá alguém peticionando uma liminar contra um plano de saúde ou contra o SUS mesmo, para reembolso do que supostamente lhe é de direito. Se isso prosperar, num cenário onde a sustentabilidade parece cada vez mais impossível, há mesmo de ser uma pá de cal.
Pode-se argumentar que, bem ou mal, um novo caminho foi aberto, e com ele, novas esperanças, e que, ao longo do tempo, o perfil das drogas deva melhorar e seu custo, ser mais acessível. Pessoalmente, acho isso até razoável; talvez haja mesmo subgrupos de pacientes que podem se beneficiar mais ou menos com essa linha de tratamento. Não obstante, sustento a opinião de que, com o que temos para hoje, não há sentido em se perscrutar diagnóstico de demência subclínica ou de se incorporar esses novos tratamentos à rotina.
Todos esperamos que, com o avanço da ciência, consigamos trazer aos pacientes com demência e seus familiares o alívio de seu sofrimento, e à toda a sociedade a perspectiva de um futuro um pouco menos preocupante. Felizmente, avançamos o suficiente no conhecimento para saber que cerca de 40% da carga de fatores de risco para demência são preveníveis, porcentagem essa que, em países de renda baixa ou média, como o Brasil, ultrapassa os 50%. Tais condições incluem fatores de risco cardiovascular (como hipertensão, diabetes, tabagismo), sedentarismo, perda auditiva e baixa escolaridade. Ou seja, há um caminho para se conseguir a redução da incidência de demência num nível populacional, com baixo custo e risco praticamente nulo; na verdade, se uma iniciativa dessas fosse adotada, vários outros efeitos positivos sobre a saúde coletiva seriam esperados.
Em relação ao tratamento dos casos já afetados por transtornos neurocognitivos, sabemos como são importantes as intervenções não farmacológicas, que vão desde educação e acolhimento a familiares e cuidadores até medidas específicas para os sintomas que se vão apresentando no curso da doença, tanto cognitivos como comportamentais. Dentre estes últimos, excetuando-se os sintomas psicóticos, a maioria dos demais costuma responder muito melhor a diferentes estratégias de abordagem do paciente que a medicamentos. Se pelo menos parte do capital que deve ser destinado ao custeio dos novos fármacos para Alzheimer fosse investido na facilitação da adoção dessas medidas, a vida de muita gente já ia melhorar muito.
Sob a ótica da Slow Medicine, podemos apontar 2 questões: uma Medicina Sóbria nos afirma que “…a divulgação e o uso de novos tratamentos de saúde e de novos procedimentos diagnósticos nem sempre são acompanhados de maiores benefícios aos pacientes. Interesses econômicos e razões de caráter cultural e social estimulam o consumo excessivo de serviços de saúde, aumentando demasiadamente as expectativas das pessoas, muito além da capacidade do sistema sanitário em atendê-las” e que uma Medicina Justa “…promove a prevenção, entendida como tutela da saúde; presta cuidados apropriados, isto é, adequados às pessoas e às circunstâncias, e que provaram ser eficazes e aceitáveis aos paciente e profissionais de saúde. Uma medicina justa combate as desigualdades e facilita o acesso à saúde e aos serviços sociais, supera a fragmentação dos tratamentos e promove a troca de informações e de experiências entre os profissionais em uma lógica sistêmica. A Slow Medicine promove cuidados adequados e de boa qualidade para todos.”
Certamente, o declínio cognitivo é um dos maiores receios de quem envelhece. A demência é o oposto da lucidez, palavra que deriva de luz, aquela que ilumina e esclarece, e a capacidade de ter clareza sobre quem somos e sobre o que é bom ou ruim é das mais essenciais características que nos tornam humanos. Na verdade, nem sempre é fácil sabermos exatamente quem somos ou o que é bom ou ruim (a filosofia se dedica amplamente a essas respostas) e, não infrequentemente, pessoas e sociedades supostamente esclarecidas fazem más escolhas. Por isso, se for para discutirmos “conscientização sobre o Alzheimer”, até por uma questão de coerência precisamos ter bastante lucidez sobre o que é bom ou ruim na busca pela preservação da lucidez.
José Renato Amaral é médico (clínico e geriatra) e professor na FMUSP.
Sentimentalmente somos uma memória, por isso somos únicos, e existimos, enquanto temos memória. Estamos aprendendo uma nova forma de morrer por etapas, e o corpo que resta ocupa um espaço comum, que não interage à partir de certo nível de comprometimento neurocognitivo. Mas, ocupa também tempo, e se a saúde não tem preço, a vida têm custos e interessa muito aos vários segmentos que vendem esta “ilusão” de vida em corpos não habitados por memórias. Inadiável se discutir os direitos das pessoas que “habitavam” estes corpos.
Excelente artigo. Parabéns
Parabéns, colega José Renato! Lúcidos, éticos, coerentes e apropriados seus comentários sobre abordagem diagnóstica e terapêutica em pacientes diante da hipótese de Demência.