Por Ana Carolina Eiris Pimentel
“Tem os olhos cheios de esperança, de uma cor que ninguém mais possui…” (Maria Bethânia)
Penso em escrever sobre o que nos deixa vivo. Genuinamente me lembrei de música e com ela a lembrança de um paciente que cuidei numa enfermaria da cardiologia, que internou por uma insuficiência cardíaca descompensada e no momento devido a uma hiponatremia sintomática apresentava certa lentidão da fala e dos pensamentos.
De forma breve, e intuitiva devo confessar, perguntei a ele que tipo de música gostava de ouvir e ele me respondeu me olhando de forma confusa, não pelo seu estado de saúde, mas creio que pela pergunta inesperada: “gosto de Tim Maia”. Peguei meu celular e coloquei para tocar “Você”. Fiquei ao seu lado durante toda a música, exatos 4 minutos e 49 segundos. Foi o tempo de ele sorrir e balançar a cabeça e os dedos das mãos, apoiadas nas pernas escondidas pelo lençol, sob o ritmo da canção e dizer: “eu gosto dessa música”. Para mim, quanto enfermeira, esse momento foi muito mais que alguns minutos: foi uma análise.
Fui percebendo, enquanto Tim Maia cantava, que todos os sucessivos relatos técnicos dos colegas que diziam que ele se encontrava desorientado, não estavam 100% coerentes e atualizados. É lógico que ele apresentava uma mudança cognitiva, mas ele estava ali, presente, percebia o seu entorno, reconhecia as palavras, gestos e olhares.
Comecei a questionar então o quanto enxergamos dos nossos pacientes. Na Cardiologia analisamos sua função ventricular, perfusão periférica, edemas, pulsos, bulhas… mas quando de fato olhamos através do seu coração? Isso me faz recordar (do latim recordis = RE – passar de novo + CORDIS = coração) de uma cena do filme Patch Adams – O Amor é Contagioso (1998), estrelado pelo grandioso Robin Willians, onde seu personagem ainda internado numa clínica psiquiátrica pergunta a um colega paciente o que tanto ele vê nos dedos das suas mãos, e esse colega animado responde, de forma resumida, que não são os dedos, e sim através deles. E ali Patch enxerga entre os quatro dedos apontados pelo amigo, mais quatro.
De forma simples essa cena me fez refletir pelo o que nós, profissionais da saúde, possibilitamos enxergar através daquilo que pode parecer tão óbvio. Vemos o céu azul repleto de nuvens, mas enxergamos que algumas delas tem formas curiosas? Vemos um mármore antigo com muitas cores e tons misturados, mas percebemos que sua configuração cria formas conhecidas? Vemos o paciente acomodado no leito e percebemos que por trás daquele motivo da sua internação, existe um coração que bate por alguém além da sua aorta?
Enxerguei os pacientes cardíacos de forma mais completa, holística e pude perceber que ao entregar uma tolha para o banho a um deles, por exemplo, ele estava chorando. Nesse momento, ao lhe dar um abraço e ouvir um desabafo, ele me ensinou o que é uma longa internação. Pude olhar para um curativo e aprender que ele pode ser menos doloroso quando se toca uma música de fundo ou se conta uma história divertida.
Na cardiologia, um cuidado mais slow vem sendo cada vez mais necessário (ou na verdade, sempre foi), não apenas pela gravidade a que a doença cardíaca pode chegar, mas também pela alta taxa de morbidade, sofrimento e necessidade de Cuidados Paliativos (CP) que vêm sendo solicitado pelos profissionais. Muitas vezes, a equipe não é especializada em cuidados paliativos, e nesse sentido possuem uma dificuldade de inserir o paciente num momento ideal de atenção ao seu conforto em saúde.
No cenário mundial existem cerca de 40 milhões de pessoas necessitando de cuidados paliativos. Destes, 40% são de doenças cardiovasculares e apenas 10% deles de fato recebem atenção paliativa. Ainda assim, isso geralmente acontece apenas quando se define uma Insuficiência Cardíaca (IC) em estágio terminal, entendido após se esgotarem todas as abordagens terapêuticas possíveis.
Devido a esses dados alarmantes, somados a alta taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares e a cronicidade e gravidade da IC, a Organização Mundial da Saúde estipulou em 2015 que a Cardiologia é uma área de prioridade de atendimento pelos CP, passando inclusive as doenças oncológicas. Definindo, juntamente com a Diretriz de IC, a inclusão do paciente e sua família nos CP a partir do seu diagnóstico médico definido, principalmente nos estágios iniciais onde a prevenção de complicações se torna uma conduta de extremo impacto.
Tal cenário se insere muito bem nos princípios que a Slow Medicine defende e aplica, porque nesse sentido não se olha unicamente para o diagnóstico de IC, mas para a pessoa e sua família na totalidade. Conhecemos sua realidade, seu contexto social, sua personalidade, seu ambiente de convívio e dizemos coisas como: “pode respirar, nós estamos aqui”. Ou seja, criamos juntamente com o indivíduo um plano de cuidados que seja compatível com seu dia a dia e com o que ele acredita, desde o início de todo e qualquer tratamento até o luto junto a família. Sem perder o lúdico de estar vivo.
É levar conforto, autocuidado, apoio físico, psicológico, espiritual e familiar. É realizada uma abordagem multidimensional e multiprofissional com objetivo de melhorar a qualidade de vida e adesão ao tratamento. Tais fatores apesar de serem ações simples que dependem, em sua grande maioria, de tecnologias leves e leves duras, possuem alto impacto na redução do número de internações.
Parece tão óbvio, né? E com isso retorno ao que me estimulou a escrever esse texto. Já dizia Pequeno Príncipe: “O essencial é invisível aos olhos”. Precisamos reforçar, junto à ciência e à epidemiologia, um cuidado humano ao ser humano. Num mundo onde a fast production na área da saúde se encontra tão forte, nos esquecemos, até mesmo por um instante, que o simples funciona muito bem, e que por trás daquele grande diagnóstico existe alguém que goste de ouvir… Tim Maia.
Ana Carolina Eiris Pimentel: Enfermeira graduada pela Universidade Federal Fluminense, residente do Programa Cardiovascular da Universidade Estadual Rio de Janeiro vinculada ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, admiradora do movimento slow e eterna aluna apaixonada pelo cuidado.
*Imagem by Ayka Planet
Texto intimista e otimista. Que mais profissionais da área de saúde atuem dessa maneira. Parabéns! Esse tipo de leitura renova nossas esperanças.
Como profissional psi, com tantos anos em hospitais, me encanta ver o surgimento de profissionais que, em todas as áreas, veem o paciente para além dos CIDs, comodidades e sintomas. Sucesso, colega enfermeira! Excelente artigo!
Ana Carolina, fico muito feliz, mais do que com seu texto, com a sua visão sobre o cuidado em saúde e a sua capacidade de exercita-la na sua prática como enfermeira. Receba meus parabéns e admiração. Ah, gosto muito das canções de Maria Bethânia, para o caso de ser necessário, ok?
Abraço forte.
Maravilhoso ver uma jovem profissional com tanta sensibilidade e preocupação com o outro. Grata pela reflexão que seu texto provoca … desacelerar é preciso para estarmos verdadeiramente presentes no contato com o outro!
Uma lindeza de relato. Obrigado
Parabéns Ana, com esse pensamento correto, atitude correta, ação correta , caminhamos para um mundo melhor” Os cães ladram mas a caravana passa” W.Ch.
Ana Carolina, gratidão por imensa empatia com a vida.
Chorei ao ler seu texto sensibilizador e inspirador. Um cuidado mútuo com a certeza do cumprimento da sua função. Que essa semente brote no coração de muitos profissionais. Abraço afetuoso
Me toca profundamente esse relato. Como o cuidado pode ser transformador quando realizado de coração, de forma compassiva. Esta é a atitude que todos devemos ter ao atender. Parabéns.