O que importa na travessia – a propósito do filme “Insubstituível”

julho 17, 2017
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8 min de leitura

Por Carla Rosana Ouriques Couto

Médecin de Campagne

“Ao permanecermos atentos aos problemas do final da vida, ignoramos o mistério do final da vida”. Bevins, M.

Jean-Pierre Werner (o premiado ator François Cluzet) está na fase dos 50 anos, é um médico rural estabelecido numa pequena vila do interior da França. Sua clínica é o único recurso médico da comunidade há 30 anos. Por várias ocasiões o gestor local tenta ampliar os serviços de saúde da localidade, mas o conselho municipal acaba optando por manter a pequena clínica de Jean-Pierre, por razões de racionalidade de recursos e satisfação da comunidade, até então. Esta é talvez a primeira boa questão da história: que modalidade de serviço de saúde atende as necessidades de um determinado território? Como organizar essa oferta?

Tudo está harmonizado entre a comunidade e seu médico, caracterizando a essência maior do filme como uma lição de longitudinalidade, o mais caro dos princípios universais da atenção primária à saúde, e o menos praticado no Brasil, por razões de políticas públicas ineficazes.

O médico rural retratado pratica todos os grandes pilares do movimento slow medicine. Próximo das pessoas, sempre considera seus sentimentos e expectativas ao propor planos de cuidado, ou qualquer intervenção. Analisa criteriosamente o valor de cada exame ou procedimento diante da realidade da vida cotidiana de cada paciente, e reage furiosamente a qualquer proposta que tenha valor empírico apenas, ou que traga em seu bojo interesses econômicos da indústria que se alimenta da doença e da falsa prevenção. Ainda que naturalmente uma pessoa calada, Jean-Pierre é um bom ouvinte e um acurado observador, da vida domiciliar, dos interesses, crenças e valores singulares de cada um. A comunidade retribui à sua presença leal, e por isso se torna um médico “insubstituível” no coração de cada pessoa.

Porém os ventos da mudança sempre sopram…Jean-Pierre adoece gravemente e precisa se ausentar por alguns dias para cuidar de sua saúde, a qual até então colocava em segundo plano. Sua vida é absolutamente guiada pelas necessidades de seus pacientes, e pela responsabilidade para com seu cuidado. É “o” médico de todos: presente do batismo ao velório, e conta com absoluta confiança de seus pacientes, a maioria pequenos agricultores. Este vínculo entre médico e população é o objetivo maior da especialidade de Medicina de Família e Comunidade.

Como último recurso e apoio profissional para o médico “doente” Jean-Pierre, entra em cena a recém-formada Natalie (Marianne Denicourt). Madura e experiente como enfermeira, ainda antes do curso médico, pessoalmente solitária e um tanto descrente de relações afetivas, como o próprio Jean-Pierre, Natalie enfrenta a resistência dos pacientes de Jean-Pierre, e mais duramente, as resistências internas de seu colega, para de fato, entregar em suas mãos, o precioso cuidado daquelas pessoas. Jean-Pierre analisa a qualidade de atenção da médica substituta com detalhes, em especial a anamnese. Numa destas análises, lembra a ela que os médicos em geral levam 22 segundos para interromper o paciente, não permitindo sua expressão. Tal realidade é retratada em vários estudos sobre a abordagem centrada na pessoa.

A relação entre os dois médicos foi interpretada por boa parte da crítica como um clichê das comédias românticas: após um estranhamento e desafio inicial surge um sentimento amoroso. Penso ser essa uma análise superficial. O amor desperta em Jean-Pierre no processo de observação de uma nova forma de relação médico-paciente exercitada por Natalie, uma alma mais leve, bem humorada, equilibrada, mais racional em colocar limites entre si e o sofrimento dos pacientes. A relação afetiva entre os dois é abordada sutilmente, com aspectos de companheirismo, parceria, admiração e raras pitadas de sensualidade, uma dimensão adormecida em Jean-Pierre. Porém, de forma alguma é o foco central do filme.

Bons exemplos dos elementos da clínica da Medicina de Família e Comunidade, comparativamente a prática habitual de Jean-Pierre, são a relação de Natalie com um paciente autista, o aconselhamento a uma adolescente, e o alegre convívio que desenvolve com a comunidade. Enquanto Jean-Pierre comparece as festas e permanece sentado observando, Natalie dança com as pessoas…uma metáfora de formas diferentes de ver a vida e por consequência, formas diversas de ser médico. Essa nova visão, de uma medicina pessoal, contamina Jean-Pierre, que passa a ter sobre seu próprio tratamento oncológico, novas percepções e decisões.

Na travessia conturbada de Jean-Pierre, pelo câncer, pela chegada de Natalie, pela perda de seu poder xamânico na comunidade, pela aceitação de seus próprios limites como humano, pelo retorno do filho, os momentos do filme que trazem claramente os fortes elementos da Slow Medicine, são os que mostram a relação do médico com um paciente de mais de 90 anos, Sr. Sorlin, em fase terminal de uma doença respiratória. Tal como a metáfora descrita pelo Dr Dennis McCullough em sua obra My Mother Your Mother (2008), Jean-Pierre promete ao velho paciente, acompanhá-lo em sua “Balada de Narayma”. E isso inclui, para ambos, NENHUMA internação, e nenhuma tecnologia dura que lhe prolongue a vida, mas lhe tire a capacidade de interação com o mundo.

Porém, numa das ausências de Jean-Pierre para a quimioterapia, Natalie, após se debater em dúvidas técnicas e existenciais, interna Sorlin. No retorno de Jean-Pierre ocorrem as cenas mais emocionantes do filme, do ponto de vista dos Cuidados Paliativos – “ciência da promoção da qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida” (OMS,2002). No hospital, a dor de ver seu velho amigo e paciente naquele cenário traz de volta a decisão de lhe proporcionar uma morte digna. O que ocorre depois, é a concretização de um plano de cuidados, que ao envolver profissionais, familiares e amigos, demonstra que é possível oferecer a morte digna e confortável, cercada de tudo que é caro ao velho paciente. A casa de Sorlin, é transformada então num hospice, no sentido original do termo: refúgio, abrigo. E ali termina serenamente a história entre médico e paciente. Uma história de cuidado ético, centrado na pessoa, racional, no sentido de evitar procedimentos desnecessários e afetivo no sentido do suporte, solidariedade e lealdade.

“Insubstituível” ao tratar da jornada pessoal de um médico de família rural diante de uma grave doença, traz a lição da possibilidade de uma medicina sem pressa, ao ritmo da comunidade, no compasso do afeto, onde a busca relevante é pelo sentido de porquê estar aqui e de como partir. A nós médicos, foi dado o privilégio da presença na chegada e na partida de outros seres humanos. A melhor forma de honrar esse privilégio é o respeito pela forma que cada um decide embarcar no último trem. Temos apenas o “bilhete” de acompanhante de um viajante, o protagonista de sua própria travessia.

                         “Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações.”  Clarice Lispector.

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Ficha Técnica:

Data de lançamento 9 de março de 2017 (1h 42min)

Direção: Thomas Lilti

Elenco: François CluzetMarianne DenicourtIsabelle Sadoyan

Gênero Comédia dramática

Nacionalidade França

Título original: Médecin De Campagne

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Carla Rosane Ouriques Couto:  Especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador e Educação Médica. Mestre em Psicologia Social. Médica de Família e Comunidade. Docente da Universidade José do Rosário Vellano em Alfenas/MG.

Livros consultados:

-O Médico, seu paciente e a doença. Michael Balint, Ed Atheneu.2005.

-Medicina Centrada na Pessoa- transformando o método clínico. Moira Stewart et al. Artmed, 2ª edição. 2010.

-My Mother Your Mother – embracing “slow medicine”, the compassionate approach to caring for your aging loved ones. Dennis McCullough. 2009.

-Aprendendo a Viver. Clarice Lispector. Editora Rocco. Rio de Janeiro.2004.

-Cuidado Paliativo.  Coordenação Institucional de Reinaldo Ayer de Oliveira.  São Paulo, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2008. Partes 1 e 4.

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