Por: Ana Célia Rodrigues de Souza
“Às folhas tantas do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.”
(Poesia Matemática – Millôr Fernandes)
Atualmente, em função do contexto da pandemia pelo Coronavírus, dentre outros motivos, temos sido “sufocados” (pelo menos, eu me sinto assim!) por números. Números de contaminações, internações, mortes, vacinados, recuperados…e por aí vai!
Isso me faz refletir sobre a matemática da vida, o tempo todo presente nos muitos campos existenciais, sendo os números relativos ou absolutos. Quantas horas dormir? Quantas calorias, vitaminas, carboidratos ingerir? Quanto se exercitar? Quanto gastar ou economizar de moedas, luz, água, gás e demais combustíveis? Até quanto viver? Qual a melhor idade para isso ou aquilo?
Outro dia, andando pela Avenida Paulista, deparei-me com uma instalação artística na Casa das Rosas de “alguns” (poucos ou muitos?) bonecos de tamanhos humanos, pendurados pelo pescoço, no alto de uma estrutura de metal – bastante impactante – representando vítimas da COVID: homens, mulheres, crianças, idosos, brancos, negros, vestidos de muitos modos diferentes, talvez, para nos provocar quanto à diversidade de criaturas que somos.
Então, pensei na ênfase dada pela maioria das mídias nos noticiários ao número de mortos. Não que isso não seja fundamental, pela dor que causa a perda de um ser importante em nossas vidas – toda vida importa! Mas, e o grande número de sobreviventes com sequelas que não são, se quer, contabilizado, muito menos noticiado?
Será mais difícil perder-se de si mesmo na sua higidez? E aí, focamos na perda do outro pela complexidade que seria lidar com outro eu, que não sou mais o mesmo de antes da COVID?
Essa nossa cultura capitalista que preza acima de tudo a produtividade e a eficiência, medida por números, ainda nos traz mais um complicador na Saúde, não só pública como, também, individual, para além da COVID.
A massificação de pessoas singulares por meio de tabelas, gráficos e estatísticas, normatizando patologias e indicações terapêuticas, utilizando-se de índices – ou números, novamente! –, adoece e ultra medica as pessoas, fora de seus contextos de vida, desconhecendo suas crenças e valores mais íntimos, como também por uma relação médico-paciente capturada pela pressa, pela dificuldade de uma escuta ativa do indivíduo que necessita o auxílio com sua saúde.
Eis aí uma das grandes diferenças das propostas do movimento da Slow Medicine. Sem pressa, com sua escuta respeitosa e interessada na pessoalidade singular de seus pacientes, dentro de seus contextos de vida e sistema de crenças, o movimento propõe uma conversa sincera, de alteridade, sem abuso de poder frente ao conhecimento médico, e pronta para adaptar as terapêuticas às demandas individualizadas, não apenas usando números. E isso, em qualquer especialidade, basta visitarmos o site para nos enriquecer com uma amostra significativa de textos que nos levam a refletir profundamente sobre as práticas médicas na contemporaneidade.
Para terminar, fica aí meu convite para essa jornada de leituras dos textos publicados, trazendo-nos propostas para uma medicina mais “humana” (que ironia moderna!).
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Ana Célia Rodrigues de Souza é psiquiatra, analista junguiana que preza pela conservação de valores que talvez só os humanos possam desenvolver, tais como, a reflexão.