Por André Islabão:
“Sentimos que, mesmo depois de serem respondidas todas as questões científicas possíveis, os problemas da vida permanecem completamente intactos.”
Um dos livros mais interessantes e provocativos dos últimos anos na área da saúde é Ending medical reversal, escrito por dois ótimos médicos e autores: o hemato-oncologista Vinay Prasad e o internista Adam Cifu. O livro se concentra nas chamadas “reversões médicas”, as quais ocorreriam toda vez que descobrimos que uma determinada intervenção médica aprovada e amplamente utilizada na prática é na verdade pior que as intervenções previamente usadas naquela mesma situação. Assim, em vez da desejável substituição gradual de nossas intervenções por outras práticas melhores, essas reversões indicam que as intervenções prévias foram substituídas por outras menos efetivas ou cujo maior custo não traz benefícios adicionais, o que representa um grande problema e pode colocar em risco a saúde das pessoas e a sustentabilidade do sistema. Para os autores, essas reversões médicas representariam um dos maiores problemas da medicina atual, indicando falhas graves em nosso sistema de avaliação, aprovação e aplicação da ciência médica.
Entre os exemplos citados no livro estão a reposição hormonal na menopausa, o implante de stents coronarianos em pacientes com angina estável e as vertebroplastias realizadas para alívio da dor causada por fraturas osteoporóticas da coluna, mas existem inúmeros outros. Segundo os autores, quase a metade dos estudos posteriormente realizados para avaliar práticas médicas estabelecidas acabam gerando reversões médicas ao demonstrar que essas práticas não são melhores que as práticas anteriores. Este é certamente um problema bem grande que indica um enorme desperdício de recursos do sistema de saúde em intervenções inúteis. Aqui há um ponto importantíssimo: sempre que demonstramos que uma intervenção é inútil, isso significa que ela já era inútil desde o momento em que foi avaliada pela ciência, aprovada pelas agências reguladoras e implementada pelos profissionais; ela não passa a ser inútil somente a partir da data de reversão. Isso também significa que muito dinheiro foi gasto à toa e que muita gente foi submetida a tratamento ineficazes e, algumas vezes, potencialmente perigosos.
Parte fundamental do combate à epidemia de reversões médicas atual é compreender melhor as suas causas. Entre elas estão a nossa eterna neomania (a insistência em acreditar que toda novidade é boa simplesmente por ser mais nova), o fato de o sistema de pesquisas biomédicas depender cada vez mais do financiamento da indústria farmacêutica e de dispositivos médicos (com todos os vieses e distorções decorrentes dessa prática) e a relativa facilidade para a aprovação das novas intervenções pelas agências reguladoras (as quais exigem apenas um ou dois estudos conduzidos pela própria indústria, admitem desfechos substitutos clinicamente irrelevantes e ainda criam mecanismos para a aprovação acelerada). Além disso, os próprios profissionais de saúde muitas vezes podem facilitar a implementação demasiadamente precoce dessas intervenções por se beneficiarem pessoalmente, seja por elas serem mais bem remuneradas pelo sistema de saúde ou porque a indústria de alguma forma “recompensa” aqueles que adotam precocemente as suas novidades.
A solução do problema não é simples, mas Prasad e Cifu enumeram várias iniciativas que poderiam reduzir muito a prevalência dessas reversões médicas. A primeira delas é aumentar a qualidade das evidências científicas, exigindo estudos da maior qualidade (ensaios clínicos randomizados [ECRs]) realizados por pesquisadores sem conflitos de interesse antes de qualquer aprovação, além de se elevar o nível de exigência para a aprovação das intervenções médicas. Outro ponto importante seria a maior valorização dos estudos de replicação que tentam confirmar ou refutar os achados de outros estudos importantes a fim de aumentar a credibilidade desses achados. Existe ainda a necessidade evidente de que todos esses cuidados sejam tomados antes que as novas intervenções sejam aprovadas e adotadas na prática médica. Conforme os autores, é muito mais difícil comprovar que uma intervenção não funciona após ela ter sido adotada como padrão pelos médicos, e mesmo as intervenções que sofrem reversão algumas vezes demoram muitos anos até serem abandonadas.
Ao contrário do que se pode pensar à primeira vista, reduzir a velocidade da ciência e das aprovações – adotando uma Ciência Sem Pressa ou Slow Science – poderia até mesmo acelerar a evolução das intervenções médicas, pois em vez de andarmos feito bêbados e darmos “um passo à frente e dois para trás”, progrediríamos de forma constante e segura. Além disso, antes da aprovação de qualquer intervenção seria muito mais vantajoso gastar alguns milhões com a realização de ECRs de alta qualidade e independentes visando confirmar ou refutar os estudos potencialmente enviesados da indústria em vez de gastar posteriormente vários bilhões com intervenções inúteis. Esta ideia fica especialmente clara quando pensamos nos novos tratamentos caríssimos e clinicamente irrelevantes para a doença de Alzheimer ou em muitas das novas drogas quimioterápicas usadas contra o câncer, as quais trazem benefícios insignificantes e cujo custo também pode ser indecente.
Em resumo, as reversões médicas são muito mais comuns do que imaginamos e tendem a minar a credibilidade da ciência e da própria medicina. Além disso, essa elevada frequência das reversões indica que muitas de nossas intervenções atuais podem não apenas ser ineficazes como também representar uma ameaça para a saúde das pessoas e a sustentabilidade do sistema de saúde. Acabar com o problema é possível e começa pelo seu reconhecimento mais amplo. O próximo passo deveria ser uma reestruturação em nosso sistema de produção científica, análise crítica das evidências e aprovação das novas intervenções. Além disso, devemos lembrar que a simples aprovação de uma intervenção pelas agências reguladoras não deveria significar a sua imediata implementação na prática clínica diária. Nós médicos temos um papel fundamental – e bastante negligenciado – como gatekeepers nesse processo de translação das novas intervenções para a prática clínica.
É evidente que todas essas ideias estão em plena harmonia com os princípios da Slow Medicine, em especial aqueles que tratam do manejo adequado do tempo, da parcimônia no uso das tecnologias e da segurança dos pacientes. A boa medicina não deve ter pressa na produção de seus achados científicos, nem na aprovação das novas intervenções e muito menos na sua implementação na prática clínica. O médico tem papel fundamental nesse processo todo, seja por fazer a crítica oportuna ou por regular a velocidade com que essas novidades invadem a nossa prática e a vida dos pacientes. Devemos sempre lembrar que para tudo na vida há um tempo justo e necessário. E na medicina isso não é diferente.
André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio.
O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos.
Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta.
É de de impressionar como grande parte da tecnologia médica é baseada nessa esperança dada à população doente , esperança essa nem sempre direcionada com a realidade . Criam-se nichos de conhecimento e a partir de então , aproveitam-se do desconhecimento da maioria da população para obter benefícios individuais ,
Obrigada pelo conteúdo !!
Muito oportuno. Gostei.
Muito bom! Sem falar do quanto tem se voltado e divulgado que frutas, legumes e verduras são mais saudáveis que suplementos, que medicamentos e que alimentos industrializados, enfim q vida verdadeiramente saudável não está a venda.
Obrigado pelos comentários, Janaína, Maurício e Raquel!🤗