O Risco de Cair é Voar

abril 21, 2022
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Por Vera Bifulco:

Mors certa, hora incerta

Resenhar um livro de André Islabão é ao mesmo tempo uma honra e desafio, desafio não menor que escrever sobre morte num momento tão delicado da história, onde vivemos nesses últimos dois anos de pandemia, um luto coletivo, universal.

Soma-se a essa questão o fato de falar, conversar, escrever sobre a morte ser assunto ainda não bem recebido por muitos; como se, afastando-se do tema, a morte também se distanciasse. Ledo engano.

A vida inclui a morte, é o final de um ciclo vital e somos todos sabedores dessa certeza. Excluir essa temática talvez nos desprepare para se chegar a ela da maneira mais digna possível e mais, falar sobre essa temática nos instiga e motiva para ampliarmos nossa percepção da vida e darmos um sentido e significado maior a ela.

Como médico internista, André convive com a morte em seu cotidiano e nessa vivência, impossível não ser tocado por ela. Quem teve ou tem essa experiência nos vários cenários de sua aparição sabe que não se fica alheio às reflexões que o evento morte desvela.

A morte do outro nos depara com nossa própria finitude; hoje foi ele, num tempo próximo ou distante, serei eu. A tão almejada morte serena e tranquila deve ser pensada muito antes de sua aparição. “O fato é que muitas questões relacionadas aos momentos finais de nossa vida podem estar mais sob o nosso controle do que imaginamos”. Esta citação de André entrega a responsabilidade para o leitor, é um convite à reflexão. A vida é um processo de construção e não será nos momentos finais que daremos sentido a ela, mas em todas as fases de nossa evolução.

O risco de cair é voar traça uma viagem do homem frente à questão da consciência de sua finitude desde os tempos dos primeiros pensadores até hoje.

Islabão reflete que a filosofia tem sido o caminho que muitos buscam como representante de um estágio intermediário entre ciência e religião e que, embora os filósofos se dediquem, desde sempre, aos aspectos teóricos da morte, são os médicos que dominam as questões práticas a ela.

Até pouco tempo atrás, nascia-se “graças a Deus” e se morria por “vontade de Deus”. O processo de morrer atualmente está isolado da vida social normal numa medida muito maior que antigamente, mas a necessidade do outro e de afeto continuam intensas e urgentes, uma contradição básica do momento civilizatório que vivemos.

Com o avanço da medicina, principalmente nos últimos cinquenta anos, houve uma verdadeira revolução, e a medicina passou a ser altamente tecnológica, não havendo ainda uma separação nítida entre o “que se pode fazer” e o “que se deve fazer”.

Somente o diálogo franco com pacientes e familiares, compreendendo suas particularidades, fazendo valer a individualização dos cuidados, onde a história biológica da doença se soma à história biográfica do doente, pode reparar essa separação entre o que se “pode” e o que se “deve”, colocando em seu lugar o “melhor” a ser feito. Esse cenário foi muito bem descrito por André quando da morte de seu pai, evitando a morte asséptica e distante dos cenários hospitalares, uma solidão mais mortal que a própria morte em si.

Histórias pessoais vividas pelo autor salpicam a leitura, tornando-a próxima das muitas histórias que povoam as mentes dos leitores, não há como dissociar essas lembranças. Todos os nossos mortos habitam dentro de nós!

Vê-se em toda a trajetória do livro uma congruência com os princípios que regem o movimento Slow Medicine. Não por mera coincidência quem prefacia a obra é o editor do site brasileiro, Dr. José Carlos de Aquino Velho, geriatra de especialidade, humanista por vocação. O porquê desta escolha mostra-se claro na trajetória do livro, como quando o autor faz menção ao novo movimento dos Cuidados Paliativos. É inegável a confluência dos princípios que regem os dois movimentos (Cuidados Paliativos e Slow Medicine), principalmente no que tange ao uso do TEMPO, princípio primeiro da Medicina sem Pressa, que afirma que “….a tomada de decisões melhora quando os médicos dedicam seu tempo e sua atenção ao paciente.

“Há um tempo certo para cada coisa; há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu: Tempo para nascer e tempo para morrer….” Eclesiastes 3 :1-15. Obedecer a esse tempo é permitir que as coisas aconteçam no seu momento oportuno, sem antecipar ou postergar, permitindo que o paciente seja o protagonista de sua história.

Permitir que a história biológica da doença se mescle à história biográfica do doente faz eclodir a individualização do cuidado (princípio segundo da Slow Medicine), tornando-o justo e apropriado, onde o paciente é o foco da atenção e não a doença, e onde seus valores sejam respeitados.

Muito se fala e consta no próprio conceito dos Cuidados Paliativos, oferecer qualidade de vida ao doente e sua família, ambos como uma única unidade de cuidados. Cabe neste contexto destacar o sexto princípio Slow, onde a regra é: fazer mais nem sempre significa fazer melhor. Mais do que investir na quantidade de anos a mais para o doente, deve-se permitir oferecer uma qualidade de tempo de sobrevida. O uso parcimonioso da tecnologia (décimo princípio Slow) lembra que a tecnologia deve servir ao homem e cumprir seus objetivos de auxiliar o doente no autocuidado, além de auxiliar o médico a tomar as melhores decisões para seu paciente, decisões que busquem mais a melhoria de seu tempo restante de vida e não um prolongamento indeterminado de seu sofrimento.

Islabão escreve com a destreza de um escritor seguro de suas colocações, mas alia uma leveza e um certo humor ao tema quando escreve que “ninguém nunca falhou na tarefa de morrer”. Apesar da morte ser uma experiência singular precisamos reconhecer a grande importância da morte para a humanidade e tirá-la dos bastidores da vida.

Finalizo com a célebre frase de um dos meus filósofos favoritos, Sêneca, também citado por André:

“Não é quando se morre que deixa de viver, mas quando se passa a vida sem nada criar”.

Nosso legado, a perpetuação de nossa existência, o não se deixar esquecer repousa na consciência do que deixamos quando não mais nosso corpo físico pertencer a esse mundo.

Como queremos ser lembrados?

Uma boa pergunta para ser feita não nos momentos derradeiros de nossa existência, mas desde já, quando ainda temos tempo de correr o risco de alçar voo.

Deixo por fim o nono princípio da Slow para fechar essa resenha, PAIXÃO E COMPAIXÃO.

Resgatar a paixão pelo cuidar não só do outro, mas o que cabe como responsabilidade a cada um de nós, e o sentimento de compaixão na atenção médica, mas não restrito a ela. Buscar incansavelmente a humanização dos cuidados à saúde, começando pelo autocuidado e expandido esse cuidado para um nível universal.

Enfim, um livro necessário a todos, profissionais da saúde ou leigos, pois a temática atinge a todos nós, seres mortais.

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Vera Anita Bifulco: psicóloga, psicooncologista, mestre em Cuidados Paliativos pelo Cedess/ Unifesp. Teve a oportunidade de conviver e trabalhar com o Professor Marco Tullio de Assis Figueiredo no ambulatório de Cuidados Paliativos, fato marcante em sua trajetória profissional. É co-autora de três livros, “Câncer Uma Visão Multiprofissional” I e II, Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde” e “Cuidados Paliativos – um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais“.

‘….entendo a Espiritualidade como uma maneira de ver, sentir e viver um aspecto não material da vida que pressupõe uma transcendência, um significado e um propósito maior para nossa existência’.

V.A.B.

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O livro está disponível para venda no site da Editora Ballejo Cultura e Comunicação (https://www.ballejocc.com).

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