O sal da Terra

janeiro 1, 2024
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Por José Carlos Campos Velho:

“Deve existir algo estranhamente sagrado no sal: está em nossas lágrimas e no mar…”

Khalil Gibran 

Mais um ano começa. O outro terminou ontem. Os planos. As promessas. A mudança. Até quando dura o entusiasmo pelo ano novo? Mas, diria Drummond, em Receita de Ano Novo:

“Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.”

O poema é lindo. Temos nosso poeta maior: Carlos Drummond de Andrade. Felizmente ele está bem acompanhado: Mario Quintana, Tiago de Mello, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira – e poetisas também: Cecília Meirelles, Cora Coralina, Adélia Prado, Hilda Hilst. E o que poesia tem a ver com medicina? Nada. Ou quase tudo. O JAMA publica poesias de médicos sobre variadas situações clínicas – dor, câncer, doença crônica, burnout…. A revista britânica The Lancet tem vários artigos dedicados à poesia  … “Sejamos claros: a poesia não é a cura para o câncer. Os poemas não vão liberar leitos para pacientes internados, nem melhorar os procedimentos laparoscópicos, nem ajudar os estudantes de medicina a obterem notas melhores. Então, por que diabos os médicos deveriam se preocupar com poesia? O falecido poeta médico William Carlos Williams respondeu a esta mesma pergunta com: “É difícil saber de novidades por meio de poemas, mas os homens morrem miseravelmente todos os dias por falta do que ali se encontra”.

Navegar é preciso, viver não é preciso

Pesquisei o tema e fiquei impressionado com o número de publicações – particularmente em língua inglesa – falando dos entrelaçamentos entre poesia e medicina. Em língua portuguesa temos uma produção menor – e um movimento criado em 2023, chamado Médicos Poetas . Manuel Bandeira talvez tenha um dos poemas mais interessantes sobre um flagelo da humanidade: a Tuberculose.

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos,
A vida inteira que poderia ter sido e não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico.
Diga trinta e três.
Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
Respire
O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infiltrado.
Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Pouco conhecidas das pessoas são as chamadas Humanidades Médicas. Elas tratam da aproximação entre as artes latu sensu e a prática médica. Uma disciplina que vem ganhando espaço gradualmente, e que é voltada particularmente para a literatura (embora tenha um olhar para outras artes, como a pintura) é a Medicina Narrativa.

Narrativas….

O termo foi utilizado pela primeira vez na década de 1980, pelo professor de Antropologia Médica da Universidade de Harvard  Arthur Kleinman , que percebeu que, nas doenças crônicas, existe um valor intrínseco no entendimento da estória da doença contada pelo paciente. Mas a principal referência da Medicina Narrativa é a Dra. Rita Charon, da Columbia University, em Nova York. Ela tem uma extensa produção sobre o tema, com livros publicados que se debruçam em profundidade sobre o assunto e vários artigos publicados em revistas médicas de referência como o NEJM . Aqui no Brasil algumas iniciativas foram construídas, como a disciplina eletiva de Medicina Narrativa, coordenada pelo Dr. Afonso Carlos Neves, colaborador do Movimento Slow Medicine Brasil, na Escola Paulista de Medicina. O Dr. Afonso já há muito trafega pelas humanidades médicas, sendo detentor de um vasto conhecimento não só em sua especialidade, a Neurologia, bem como em história da Medicina e nas Humanidades Médicas. Na mesma instituição, o professor Dante Gallian, autor do livro A literatura como remédio, dirige  Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi), que tem como um de seus focos a Medicina Narrativa. No Rio de Janeiro, a Dra. Lorraine Veran publicou um verdadeiro tratado de Medicina Narrativa, contando com inúmeros colaboradores renomados de todo o país, Medicina Narrativa – A arte do encontro.

De onde saiu essa curiosa ideia de falar sobre poesia no primeiro dia do ano em um site que fala de uma Medicina sem Pressa? A proximidade da Slow Medicine com as humanidades médicas é bastante evidente: temos nos debruçado sobre o assunto desde nossas primeiras publicações. A prática médica alicerçada nos preceitos da Slow Medicine é perpassada por um agir e um olhar (quase) poéticos, que se assentam sobre um dos seus pilares – a relação clínica.

O sal da Terra

Um fato bastante prosaico me despertou a vontade de escrever sobre o tema: artigo recente do JAMA reafirma que moderação do consumo de sal contribui para a redução dos níveis pressóricos. Onde está a poesia por trás disso? Foi então que Beto Guedes me ajudou.

Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Para melhor construir a vida nova
É só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora
Para merecer quem vem depois

Deixa fluir o amor
Deixa crescer o amor
Deixa fluir o amor
O sal da terra

José Carlos Campos Velho é médico.

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Ana Carolina Eiris Pimentel
Ana Carolina Eiris Pimentel
11 meses atrás

Saber que estamos no caminho certo e não estamos sozinhos em enxergar verdadeiramente as pessoas através da melhor arte que podemos ter: a vida! A poesia existe para nos ajudar a entender a humanidade…. Obrigada professor, me senti acolhida. 
Feliz ano novo!

Maria Teresa de Campos Velho
Maria Teresa de Campos Velho
11 meses atrás

Belo texto!
As “associações livres” que chegaram e apontaram o tema foram perfeitas! Fluiu…..engajou! Sal, lágrimas, mar, pressão arterial…..! Trouxe leveza e profundidade ao escrito! Coisa de poetas? De médicos escritores e/ou poetas?

Ana Lucia Fiebrantz Pinto
Ana Lucia Fiebrantz Pinto
11 meses atrás

Simplesmente maravilhoso seu texto. O zelo no traçado, a escrita gentilmente disposta num misto de poesia, literatura e medicina arte e ciência e, mesmo a narrativa, palavra um pouco comum em tempos atuais , tomaram um certo encanto nas linhas elevadas da arte de escrever Dr. José Carlos.
Começou o Ano como poucos.
Feliz 2024! Que venham mais textos, prosas poéticas, poesias e poemas que tocam a alma e sensibilizam fazeres.
Gratidão por nos presentear com o resultado do tempo dedicado a esta contrução única!
❤️😍

Mauricio Francelino Aragão
Mauricio Francelino Aragão
11 meses atrás

Parabéns ao Dr. José Carlos!
Grato pelo texto. Bom ano de 2024 para todos.

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