Por Lívia Callegari
“Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”
(Eclesiastes)
Eram os últimos dias do ano de 2019. Inúmeros planos para o ciclo vindouro. Tudo alinhavado dentro de um roteiro que seria espetacularmente cumprido. Mas não foi bem assim… Tudo poderia mudar, e aquela pretensão toda começava a escorrer pelos dedos.
Momentos de apreensão. Uma ida às pressas ao Pronto Socorro, e a notícia de uma necessária cirurgia de urgência. Após alguns procedimentos, era necessário aguardar pela ambulância para que ele fosse transferido ao hospital. Sirene ligada, eu o acompanhei no trajeto que parecia o mais longo da minha vida. Aquele veículo não era equipado com outros equipamentos de suporte, era apenas um meio de transporte entre as unidades. E, de repente, a profissional que o monitorava gritou: Acelera! Acelera! Logo pensei: está rebaixando… Eu não estou preparada para isso! Em pouco tempo chegamos no local. A ambulância parou e o motorista ligou o som. Começou tocar “We will rock you”. Encarei como um verdadeiro sinal. Na transferência da maca ele reclamou e soltou o habitual palavrão. Pensei aliviada: Então estava tudo bem!
Madrugada insone. Contudo, para um nonagenário raiz – aos 91 anos – descendente de italianos do norte, a cirurgia foi considerada um sucesso. Os fogos do Reveillon eram para ele. Porém, no interregno entre a cirurgia e antes de reintroduzir a alimentação, ainda precisava manter-se em jejum. A queixa relacionada à sede era constante, pouco importando o horário. Algo havia de errado! Não era possível sempre ouvir das profissionais indiferentes: isso é normal, precisa ter paciência! Obviamente não me conformei com isso e, angustiada, pesquisei algum artigo sobre o manejo de sede. Para surpresa, realmente constatei que havia conduta que não estava sendo realizada e esse desleixo na esfera de cuidado leva a sofrimento injustificado. Por esse motivo e por outros, a falta de empatia e técnica daquela equipe de enfermagem, foi algo que me incomodou sobremaneira, sem contar com alguns aspectos que notei relacionados à própria segurança dele. Fiz queixa, pontuando tecnicamente as inconformidades. Era o meu pai, mas poderia ser qualquer um de nós. Era a minha obrigação. Houve troca da equipe, com abertura para conversa e “escuta do paciente/ acompanhante”, revisão processos e de treinamento. Enfim, o caso estava sendo acompanhado de perto.
Por determinação médica, foi reintroduzidas a alimentação. Passamos o meu aniversário juntos, e com a notícia de possível alta, que eu considerava como o meu maior presente. Recebi algumas ligações e, dentre elas, a minha euforia foi colocada à prova. Fui esclarecida que o tempo de recuperação de um idoso não era o mesmo tempo de um adulto de meia idade e, por esse motivo, sempre deveria ser tratado de maneira mais slow. Obviamente, complicações nessa fase de vida têm um percentual aumentado e, por isso, precisávamos nos preparar, pois não era um caso fácil, inclusive pela idade dele. Dentre os pensamentos, deveriam comportar as decisões sobre terminalidade como diálise e intubação.
No dia seguinte, quando da troca de turno com a minha irmã, houve a constatação de complicação e necessária intervenção de emergência. Do preparo para o encaminhamento ao centro cirúrgico, avisei para ele precisava ser intubado, procedimento que ele já havia deixado claro que não queria ser submetido. Mas era necessário para aquele momento e não havia opção. Afastei-me aflita, silenciei-me, e em oração, deixei o destino seguir o seu curso. Estava nas mãos de Deus e dos médicos. Eu sabia que era grave, e talvez fosse aquela a ultima vez que eu o encontrasse com vida, ainda mais pela sabida precariedade de reserva de um idoso, além do fato de que, pela idade avançada, nem sequer existem estudos tão específicos com essa população.
De tanto desalento, o meu corpo já não mais respondia. O da minha irmã também não, mas ela mantinha sempre palavras de otimismo e o brilho no olhar, próprio das almas grandiosas que nos estimulam. A temperatura gélida daquela UTI era o maior martírio, mas isso para mim pouco importava, pois estávamos juntos. Por isso, adequei-me, prontamente, aos protocolos de segurança. Com o passar dos dias, as orações na capela do hospital em frente se intensificaram. Afinal, aquela santa de Coimbra sempre me acompanha desde tenra idade. Para aliviar a equipe da minha ansiedade, pedi esclarecimentos técnicos para alguns queridos amigos da área da saúde e orações para outros. Eles nunca me faltaram e sempre se tornaram presentes em ato de generosidade ímpar, pouco importando o lugar do planeta em que estivessem. A minha gratidão sempre será eterna.
Por estar em cuidados paliativos proporcionados, tive contato com o responsável da equipe. Conversamos, e não me foi tirada a boa expectativa. Tive a segurança de que, apesar da idade avançada, ele não seria tratado de maneira utilitarista ou por meio diretrizes não adequadas que visassem à economia do sistema, e, por isso, deixariam de investir nele. Diante de tantas absurdas distorções de conceito com que invariavelmente nos deparamos no contexto desta tão necessária estratégia, eu tinha um grande temor sobre o que instituição entendia sobre Cuidados Paliativos. Fui assegurada que os protocolos elaborados eram um norte e que a instituição primava pela individualização no atendimento. Então, aliviada, expus os nossos valores e que não abria mão do mínimo necessário: nutrição, hidratação e manejo da dor. O importante era o conforto. No momento seguinte, porém, houve um ruído de comunicação com o nutricionista, que quis impor um protocolo engessado, mas logo foi sanado.
Passados os dias, a função renal já não respondia da maneira esperada e piorava. Nossa angústia por atualizações era uma constante. Curiosamente, na equipe sempre tinha um médico que nos trazia as notícias não tão favoráveis, e outro que sempre nos trazia esperança. Ambos carregavam grande sensibilidade no olhar e nas atitudes.
Durante esse processo, de alguma forma, silenciei por vários momentos para não causar mal a quem estava por perto. Isso porque, a cada dia aumentava a certeza que o desfecho da alta seria muito difícil, apesar da força de vontade. A sedação estava chegando ao fim. Ele dava sinais que iria despertar. Com ele cônscio do que estava acontecendo, eu percebia claramente a sua angústia por estar intubado. Não era esse o combinado! Mas o fato de estar acordado e estar reagindo, encheu o meu coração de alegria. Pena que foi por pouco tempo…
Naquele mesmo dia, de uma amiga de infância e médica, aproveitou-se a presença dela como oportunidade para conversar. Com muito tato, o médico tentava iniciar um processo de comunicação, provavelmente para dar más notícias. Ele não achava as palavras e ela, percebendo a dificuldade do colega, dizia: “Pode falar, doutor! Ela é esclarecida e vai entender”. Passou, então, a informar sobre a piora da função renal, mas era muito arriscada a diálise, por inúmeros fatores. Quando começou a se referir sobre o tubo, eu percebia o seu cuidado em utilizar as palavras. Na tentativa de abreviar o que considerava um tortuoso, o interrompi e apenas disse: “ok, extubação paliativa!” Eu sabia que poderia ser o fim. Quase desfaleci. O médico, por sua vez, espantou-se por eu conhecer o termo com tanta intimidade e, ao mesmo tempo, ficou aliviado por falarmos a mesma língua e o processo de comunicação ter sido mais leve do que ele imaginava. Resolvemos marcar uma reunião com a família e nos alinharmos compartilhando as decisões.
Obviamente, os dilemas não foram poucos, como também a dor excruciante nas tomadas decisão. Durante essa assimilação emocional, coloquei em prática tudo o que li nos livros, tudo o que ensinei e partilho na teoria sobre terminalidade da vida e bioética. Nos meus pensamentos, sempre revisitava e as nossas conversas sobre o que ele, como cirurgião-dentista, me dizia para o seu o fim de vida: “não quero ser intubado, não faça diálise e se parar parou (SPP). Não quero ficar vegetativo”. Enfim, eu era a ambulante diretiva antecipada de vontade dele e por isso deveria ser fiel.
Nessas horas de enfrentamento das decisões difíceis, parece que o chão se abre. Mas se ocorre preteritamente uma construção de valores onde os anseios expostos por meio de diálogos despretensiosos, apesar da dor que deixa o peito em carne viva em decorrência de uma primeira grande perda, ainda é possível ter um conforto emocional que direciona a uma certeza nos atos. As decisões de fim de vida não devem ser deixadas para o final. Foi, então, que busquei apoio de uma grande paliativista, que me esclareceu sobre todas as possibilidades específicas e eventos que iriam acontecer durante esse processo, fossem bons ou ruins. Enfim, vivenciei na prática que a extubação paliativa é um processo extremamente criterioso e técnico, principalmente, em virtude da segurança que a ele deve permear.
Retornei ao quarto, e ele por gestos e olhares perguntou sobre o tubo. Disse que logo iríamos tirar e que, em breve, iríamos para casa para ele ficar com o gato. Ele balançou a cabeça negativamente. Uma lágrima escorreu no rosto dele e eu desabei por dentro. Disse “tudo bem” (mesmo nada estando) e que eu iria respeitá-lo. Naquele momento, compreendi que há um tempo para lutar, mas também de saber dosar e não avançar diante de certas respostas do organismo. Fato é que nada podemos controlar em absoluto. Por mais que tenhamos todo aporte tecnológico do mundo, é necessário usá-lo parcimoniosamente para não causar o sofrimento ou prolongar um inútil apego material. A tecnologia muito pode, desde que não aplicada futilmente e que não prejudique ou cause mais fragilidade… É necessário ter discernimento e, sobretudo, respeitar a integridade e a dignidade. Deixar partir ao seu tempo e com conforto é a maior forma de amor, principalmente quando se reconhece o limite e se obsta o sofrimento. O ritual da morte não deixa de ser um ritual da própria vida. Isso, inclusive, nos ensina a lidar com as nossas próprias inseguranças e limitações.
Quando atingido o critério de segurança para extubação, queria que todos estivéssemos por perto e unidos. Tudo poderia acontecer. Houve estabilidade por um bom período, mas o processo de morte já era irreversível diante da descompensação que já dava sinais. Entrou-se, então, com sedação paliativa. Durante o derradeiro processo de partida, foram várias as trilhas sonoras, orações e rituais de despedida e de acolhimento. Em um dos atendimentos, uma enfermeira caiu em prantos. Lembrou-se da mãe dela que tinha passado pela mesma situação. Engoli o meu sentimento e fui abraçá-la. A dor dela também era a minha dor. Choramos juntas e compreendi que não deveria ser nada fácil se deparar todo dia com essas situações, e não ter nenhum amparo emocional. Era o tal do luto agudo, que certamente, em algum momento se transformaria em burnout. Era o momento de dar mais carinho, ainda, a quem quer que fosse, não apenas a ele. Fui informada que um dos médicos também não falaria conosco, pois não suporta passar por essas situações de tamanha a dor.
A madrugada avançava. Ele deixaria o plano físico dentro de instantes, de acordo com o que acusava os monitores. Pedi para a minha irmã retornar com urgência porque precisava chegar em casa tomar um banho e pegar as roupas dele. Eu queria estar ao lado dele até o último suspiro.
Em casa, já de partida, o nosso gato se arrepiou por inteiro como em um filme de terror. Era o sinal. Voltamos, imediatamente, ao hospital e encontrei os meus irmãos no corredor. Ele tinha partido há pouco tempo e equipe estava nos preparativos finais do corpo. O seu semblante era de serenidade, esboçando um sorriso, ouso dizer. Certifiquei-me se a boca estava em posição correta antes da rigidez cadavérica, pois ele como dentista, não se conformava com essa falta cuidado em outros enterros. Fiz uma amarração como nunca! Era mais um pedido dele, e eu sabíamos bem sobre a vaidade do escorpiano que acabava de partir. Paradoxalmente, agradeci por ter tido a oportunidade de passar por todo caminho da despedida, momento único, que nem todos conseguem vivenciar. Foi um amor além do imaginado. Havia dor profunda, mas também havia espaço para poesia. Cronologicamente foi tudo no tempo correto. Enfim, tivemos a felicidade de fazer velório e caminhar para o fechamento do luto, situação nem sempre vivida por alguns.
No “luto”, nós “lutamos” muito contra nós mesmos, contra os nossos sentimentos. Mas é preciso mergulhar na dor, partir para o submundo como no mito de Perséfone. Por um momento me desmanchei, mas logo me reergui e resolvi não parar. Era a maneira de continuar por ele e de cumprir o que eu tinha prometido à beira do leito. Por mais que acreditemos em outros planos além do físico, chega a ser fisiológico passar por essa profusão de sentimentos, não há como fugir!
Já em meados de fevereiro, rumores da pandemia. “O mundo ia parar”. Realmente, não houve momento para pausas. Fomos todos surpreendidos pela propagação do Sars-Cov 2, um vírus desconhecido, causador da Covid-19. Ninguém imaginava o que estaria por vir e por quanto tempo. Assistimos, com angústia, mortes solitárias, lutos não finalizados, tentativas vãs de acolhimento. Acompanhamos o sofrimento dos profissionais da saúde, que abnegados, colocaram em risco suas próprias vidas em prol do próximo.
E assim, em virtude da ausência absoluta de fórmulas prontas das tais evidências científicas, provou-se, uma vez mais, a importância do cuidado em saúde, do olhar integral, da sabedoria nos atos e da humildade frente ao desconhecido. Além disso, diante da escassez absoluta de recursos, foram colocados em xeque os reais referenciais bioéticos e qual a sua real função prática. Por esse motivo, uma vez mais sobressaiu a necessidade de enraizamento de uma medicina justa, sóbria e respeitosa, conforme dita a Slow Medicine.
Diante das incertezas, que não eram poucas, o período foi fundamental para silenciar, olhar para dentro, abraçar as nossas sobras, trabalhar nossos medos, rever nossos valores, e nos reinventar. O vírus não é individual, mas coletivo e por isso depende de uma colaboração da sociedade como um todo para não se alastrar. Por isso, foi necessário enxergar empaticamente o outro – individual e socialmente -, revisitar conceitos já conclamados e analisar como as nossas atitudes podem representar um grande malefício, não apenas para quem está próximo a nós, mas também a todo o ecossistema.
Mudamos alguns hábitos, resgatamos e reafirmamos conceitos sanitários do início do século passado, tomamos contato com o tal “distanciamento físico”, uso de máscaras, lavagem constante das mãos, álcool em gel, home office, dentre outras medidas, tudo muito diferente do habitual. Assustados, nos “aproximamos”, reformulamos, revisitamos e ressignificamos conceitos, nos adaptamos e enfrentamos os nossos temores em atitude colaborativa. E mais importante: aprendemos muito, nos reinventamos e rimos de nós mesmos. Na falta da presença física, usamos e abusamos da “tecnologia que aproxima”, nos reunimos virtualmente, viajamos para vários lugares do mundo, trocamos experiências, estudamos, aumentamos as nossas redes, amadurecemos alguns pensamentos, trabalhamos mais do que o imaginado e nos esforçamos à exaustão. Produzimos em conjunto e nos empenhamos para extrair as lições e propagar boas reflexões e informações.
Isso nos ensinou que as aflições são as mesmas em qualquer lugar do mundo, pois o que nos une, é o fato de sermos humanos. Somos parte do sistema, e não o sistema em si. A partir do momento que eu me enxergo no olhar do outro, a cura dele é a minha cura.
Porém, infelizmente, a pandemia também trouxe uma lente de aumento para o que já existia: sistemas falhos, politicagem e falta de preparo. Ao que parece, o aprendizado e a introjeção do real significado de tudo isso ainda vai levar algum tempo para tomar corpo, pois, ao que parece, o novo normal não consistirá na alteração positiva do comportamento moral das pessoas, pelo excesso de egoísmo e falta de solidariedade. Assistimos aberrações, egos aflorados, atitudes desprovidas de alteridade e hedonismo.
Ainda um longo caminho a se percorrer. Será denso e intenso, mas que talvez nos leve à maturidade e a uma necessária reconstrução. Não há planos para um futuro distante. Mas SOBRE viver um dia de cada vez.
Lívia Callegari: Sou advogada inscrita no Brasil e em Portugal, com atuação na área do Direito Médico. Fiz especialização em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP. Sou pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Sempre busco reavaliar os meus valores e tomar contato com outras perspectivas. Gosto de viajar e tomar contato com outras culturas e filosofias de vida. Tenho como base a minha família, amigos, livros e artes. Aprecio o cair da tarde. Gosto do silêncio da noite, pela inspiração e a reconexão que me proporciona.