Por Érica Motroni
“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora, vou na valsa
A vida é tão rara.”
(Lenine)
Desde que iniciei minha carreira como médica, muito me estranhava – e de certa forma me fazia até sentir “inadequada” a alguns empregos – a forma superficial, apressada, padronizada, muito automática e pouco empática, da prática da medicina com a qual me deparei ao cair na realidade da vida profissional. Por diversas vezes fui chamada à atenção, pois meu número de atendimentos em um turno era inferior ao esperado pela coordenação da instituição – cheguei até a ouvir que ‘vínculo demais’ com os pacientes não era apropriado… Ao final desses dias, me sentia esgotada, desestimulada e tendo a certeza de que eu poderia ter feito algo muito melhor a quem confiava a saúde à mim e, ao mesmo tempo, poderia ter também trazido algo melhor a mim mesma.
Com o tempo, fui deixando para trás alguns desses empregos e tentando, ainda de uma forma quase instintiva, buscar maior satisfação dentro da profissão que escolhi. Cheguei a questionar em alguns momentos se era medicina mesmo a minha vocação. Fui seguindo com resiliência e intuição e naturalmente encontrando os caminhos que acreditava seriam melhores para a minha vida – e para vida de meus pacientes. Nessa jornada, escolhi a Mastologia como especialização, e foi dentro desse vasto mundo do tratamento do câncer e de todas as outras patologias mamárias, entra a luta e o cuidado, o pragmatismo da ciência e a inteligência do afeto, que me encontrei. Pode parecer estranho o termo ‘cirurgiã slow’, mas talvez eu tenha, sem querer (querendo), escolhido a especialidade cirúrgica que mais se tornou ‘slow’ com o tempo.
Olhando a história da humanidade através do tempo, nossa percepção é que evolução, progresso, a melhoria de vida se faz através da aceleração. Mas essa percepção é apenas um instantâneo, parado no tempo, da história das recentes revoluções industriais e tecnológicas da nossa espécie, de um modo de produzir e de trabalhar que, hoje, já sabemos: mais rapidez e mais quantidade não só não são sinônimos de evolução, de eficiência ou de qualidade, como podem – e o planeta esgotado e pandêmico está ai nos avisando – ser algo destrutivo, representar menos saúde, menos vida, menos futuro.
Atualmente temos evidências mais do que suficientes pra dizer que, no tratamento cirúrgico do câncer de mama, quase sempre o menos é mais. A tecnologia realmente avançou em nosso favor, permitindo que entendêssemos os diferentes comportamentos biológicos de cada tumor e, principalmente, fazendo com que entendêssemos que cada paciente – sua idade, condição de saúde, subtipo e tamanho tumoral, tamanho de mama, desejos em relação a estética, valores pessoais e diversos outros aspectos da sua vida – seja considerada e tratada como absolutamente única.
Quem diria que tumores de 10 centímetros poderiam, após a quimioterapia, serem reduzidos a apenas uma área de fibrose, permitindo uma cirurgia conservadora com excelente resultado estético e funcional? Quem diria que a imensa maioria das mulheres, em alguns casos até com linfonodos positivos na axila, poderiam ser poupadas do esvaziamento axilar e portanto de consequências tão negativas como o linfedema? Quem diria que em alguns casos pudéssemos até mesmo poupar pacientes de sequer abordar a axila ou fazer radioterapia como em casos bem selecionados de pacientes mais idosas?
Eu poderia citar mais um monte de evoluções que vivemos na Mastologia recentemente sob o aspecto do repensar quantidade, ritmo, onde o menos se mostrou mais do que mais, mas é conversa grande que já cabe em outro texto. Me traz uma alegria imensa o fato de poder ser médica mastologista nesse momento, no nosso agora, em 2021. Poder oferecer tratamentos oncologicamente seguros, menos mutilantes e menos impactantes em diversos aspectos aos pacientes com câncer de mama é no mínimo o ápice para quem acredita numa prática slow .
Encontrar pelo mundo afora pessoas que compartilham dos mesmos sentimentos , crenças e anseios, vendo a Slow Medicine ganhar força a cada dia, me traz a certeza de que é possível sim fazer aquela medicina na qual sempre acreditei e que sempre soube que existia. Uma medicina com foco no indivíduo, no paciente que busca nossos cuidados.
E falando nessa palavra, ‘paciente’ me vem um pensamento antigo. Sempre tive essa curiosidade linguística, e presumia que sua origem estava no fato que – da pessoa que estava sendo tratada pela ciência e medicina – se demandava paciência, que ela fosse capaz de se acalmar e esperar: pelos resultados do tratamento, pelo tempo da cura, pelo ritmo de resposta do corpo, e do espírito.
Então é bom lembrar que, nos dois lados da mesa do consultório, somos e temos que ser pessoas pacientes. É possível ter uma inteligência rápida e afiada para decisões perfeitamente integrada com um agir e pensar calmo, focado, preciso. Pois já nos ensinava a sabedoria do mestre zen, a respiração do yogue, a letra da música: o mundo pede um pouco mais de calma. Um pouco mais de alma. A vida não para. A vida é tão rara.
Érica Motroni: Sou carioca apaixonada pela minha cidade, médica graduada pela Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro. Minha primeira residência de 3 anos foi no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ) em Ginecologia e Obstetrícia, já com foco desde o início nas doenças mamárias, especialmente no câncer de mama. A segunda residência, em Mastologia, durou 2 anos e foi concluída no Hospital Federal da Lagoa, também no Rio. Em 2019 me tornei membro titular da sociedade brasileira mastologia. Desde os primeiros plantões, ainda como clínica, depois como obstetra, me senti inadequada aos moldes da “fast medicine” atual e passei aos poucos a buscar o meu caminho dentro do universo da mastologia, mas de uma forma desacelerada, mais empática e completa no meu ponto de vista. Atualmente trabalho em clínica privada e no SUS e busco manter a prática slow em todos os meus atendimentos. Descobri recentemente as páginas da Slow Medicine Brasil nas redes sociais e me encantei com a quantidade de excelentes profissionais que passaram e passam por uma trajetória semelhante a minha e buscam resgatar a verdadeira arte do cuidar. Sou entusiasta da medicina integrativa e acredito muito nos benefícios das terapias não convencionais para o auxílio do tratamento de pacientes oncológicos. Como uma cirurgiã apaixonada, sigo medindo o peso da mão do bisturi, priorizando acima de tudo a medicina baseada em evidências, sem exageros ou práticas desnecessárias e a promoção da saúde e da qualidade de vida mesmo no contexto das doenças.Para lidar com as angústias e cansaço do dia a dia, faço exercícios físicos dos mais variados possíveis mas é no surf que encontro a maior identificação e recompensa. Moro no Rio de Janeiro com meu marido Felipe e minha filha Gabi, que dão mais significado à minha vida e formam minha base acolhedora e afetuosa. Meus pais e irmão formaram minhas sólidas raízes que me permitem crescer cada vez mais em busca de uma vida plena e com propósito.