Por Elizabete Band:
“Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
Cazuza, 1988
O ano é 2023. Estou no ambulatório estadual de atendimento à pessoas vivendo com HIV/AIDS. Atendimento de primeira consulta. Paciente jovem, vinte e sete anos, um rapaz. Ele está calmo, aparentemente. Responde às perguntas com tranquilidade, todas as difíceis perguntas. E vem aquela que é uma das menos técnicas e mais importantes, e nesse momento sua tranquilidade se quebra e vejo um lampejo de dor em seu olhar.
O ano é 2023, mas de algum modo, para algumas coisas, nossa sociedade continua com a mentalidade dos anos oitenta. O preconceito, os julgamentos morais e o medo permeiam as relações sociais entre pessoas que vivem com HIV/AIDS (PVHA) e o mundo ao seu redor. Estes pacientes ainda perdem empregos, parcerias de vida, famílias, perdem dignidade e oportunidades. Projetos são interrompidos. Mesmo com toda a informação amplamente disponível nestes tempos de hiperconexão digital, mesmo com o sucesso estrondoso dos tratamentos atuais, que bloqueiam a transmissibilidade do vírus e sua evolução para imunodeficiência, mesmo com tanta gente usando profilaxias contra o HIV, mesmo assim não fomos capazes de vencer o medo e a desinformação. Parece que neste caso a máxima “a primeira impressão é a que fica” prevaleceu.
Em 1988 se instituiu o dia 1o de dezembro como o dia mundial de luta contra a AIDS. Essa luta é cotidiana e áspera. Quarenta e três anos depois do reconhecimento da pandemia de HIV, aqueles que se descobrem portadores continuam sendo isolados, marginalizados, vítimas de desrespeito e injustiças, isso quando não se tornam presas de pessoas vendendo falsas promessas de curas milagrosas. Estima-se que quarenta milhões de pessoas já tenham morrido em decorrência da pandemia de HIV, quase metade de todos os pacientes que já adquiriram a infecção no mundo (em torno de 85,6 milhões de pessoas, segundo dados da Organização Mundial de Saúde). Ainda existe, além de tudo, uma imensa desigualdade social, com países em desenvolvimento lutando para ter acesso aos tratamentos e exibindo índices de mortalidade maiores do que os de países ricos. E a erradicação do HIV passa necessariamente pela redução dessas desigualdades. Por isso precisamos urgentemente de uma medicina Slow: sóbria, respeitosa e principalmente justa.
Prestar assistência às pessoas que vivem com HIV traz desafios constantes. Muitas vezes a infecção é adquirida devido a vulnerabilidades socioeconômicas – hoje não falamos mais de grupos de risco, mas de populações-chave, segmentos populacionais mais vulneráveis à infecção. Muitas vezes estes pacientes já sofrem com discriminações cotidianas, violências diversas e dificuldade de acesso a aconselhamento e prevenção em saúde. Por isso é fundamental desenvolver uma relação profissional-paciente sólida, pautada em confiança e respeito, sem julgamentos, para que a vinculação aos serviços de saúde e a adesão ao tratamento sejam, senão garantidas, ao menos facilitadas. Acredito que os princípios da Slow Medicine são perfeitos para construir esse caminho de confiança e levar a melhores resultados no tratamento destes pacientes.
Primeiro, o tempo. Precisamos de tempo para ouvir, acolher. Tempo para perguntar, identificar as vulnerabilidades, e entender quais serão as nossas prioridades no cuidado. Para poder mergulhar nas histórias, muitas vezes tão sofridas, não como juízes, mas como conselheiros que somos, usando nossos conhecimentos em prol da saúde e da dignidade de quem está à nossa frente. Com esse tempo, construímos individualização. Cada paciente é único, e traz em si necessidades próprias, tão diversas quanto o nosso público. Assim podemos desenhar o melhor tratamento, a melhor forma de abordagem, a melhor estratégia para enfrentar os desafios de acompanhar uma doença crônica incurável e estigmatizante, com diferentes impactos na saúde mental e física dos portadores. O que nos leva ao terceiro princípio: Autonomia e autocuidado. Não há como alcançar uma boa adesão a um tratamento para a vida toda (até que uma cura definitiva seja alcançada) se as medicações não se adequarem ao estilo de vida e preferências dos pacientes. E o tratamento não é apenas medicamentoso. Precisamos orientar práticas seguras, sejam sexuais, sejam de uso de substâncias, identificando os riscos, reduzindo danos e envolvendo toda a rede de apoio possível, pois o tratamento do HIV é um projeto que envolve muitos cuidados.
Assim, chegamos ao conceito positivo de saúde, orientando sobre a responsabilidade com o corpo. Muitos destes pacientes carregam nos ombros uma grande culpa pela infecção, e há muito que construir com eles. O diagnóstico, apesar do seu efeito devastador, traz consigo uma oportunidade preciosa de estimular a resiliência: a capacidade de se adaptar às adversidades, de ressignificar a doença da melhor forma possível. É fácil? Não. Requer abertura, tempo e paciência. Mas o tempo, o tempo é um grande remédio. E a relação profissional-paciente também pode ser.
Quando conseguimos forjar uma relação sólida e estreita com nossos pacientes eles se tornam grandes parceiros para promover os dois próximos princípios, que andam juntissimos: prevenção e qualidade de vida. Apesar da terapia antirretroviral de alta potência ter virado o jogo na evolução natural pela infecção pelo HIV, a persistência do vírus no organismo, mesmo que controlado, ainda causa um processo inflamatório crônico que eleva o risco cardiovascular e as doenças neoplásicas de forma geral. Assim, as PVHA se beneficiam enormemente de uma atenção focada em prevenção (bons hábitos alimentares, atividade física e boa saúde mental) para garantir qualidade de vida a longo prazo, inclusive no envelhecimento. Se antes a infecção pelo HIV equivalia a uma sentença de morte precoce, hoje a expectativa de vida geral dos infectados é muito próxima da global, e o planejamento para a manutenção de uma boa qualidade de vida em todas as suas etapas é fundamental, levando sempre em consideração suas particularidades e limitações, sem expectativas irreais.
“Doutora, ouvi falar em um chá de ervas que cura HIV, é verdade?” Às vezes nos deparamos com questionamentos sobre tratamentos “alternativos” para o HIV. Chás, suplementos, vitaminas, garrafadas, ervas, muita coisa foi e ainda é vendida como panaceia para uma série de doenças, incluindo o HIV. Algumas coisas fazem parte de medicinas tradicionais, algumas milenares e de culturas ancestrais. Outras são apenas charlatanismo. O sétimo princípio da Slow Medicine é medicina integrativa: priorizar tratamentos convencionais consolidados e utilizar medicina complementar se possível e preferencialmente baseada em evidências. É importante respeitar a visão de saúde dos pacientes e seus sistemas de crenças, e incorporá-las ao plano de tratamento. Mas não esquecer o oitavo princípio: Segurança em primeiro lugar, sempre! Não podemos causar o mal – primum non nocere. Todo tratamento não testado e sem benefícios comprovados pode ser potencialmente fatal em pacientes imunossuprimidos, e por ser um vírus que acomete o sistema de defesa o HIV possui uma série de interações complexas e danosas ao organismo, causando diversas vulnerabilidades e disfunções.
Ouso dizer que o nono princípio é fundamental. Paixão e compaixão são os combustíveis do nosso cuidar. Fico feliz em ver que incontáveis profissionais, não apenas infectologistas e não apenas médicos estão envolvidos atualmente na promoção e garantia do acesso à saúde das PVHA. Seja com divulgação de informações, acolhimento, atendimento mais autêntico e humano, dedicam-se, na impossibilidade de curar a infecção, a aliviar seu fardo da melhor maneira possível: compartilhando o peso. O peso da solidão, das decisões, dos medos. O peso de uma existência rotulada.
Esperamos um dia atingir a cura do HIV, uma espera que já dura décadas. Parece uma realidade cada vez mais próxima, mas sabemos que não é fácil. Ainda não entendemos completamente como o sistema de defesa funciona, mas compreendemos melhor a cada estudo, a cada nova evidência, como ele se relaciona com os organismos humanos e como pode ser eliminado. Novos tratamentos surgirão, cada vez mais complexos, possivelmente utilizando imunossupressores e quimioterápicos, em uma estratégia de tratamento similar em alguns pontos com o tratamento do câncer, já que envolve eliminar células infectadas permanentemente pelo vírus – os santuários virais. Aqui cabe lembrar com muita ênfase o décimo princípio da Slow Medicine: O uso parcimonioso da tecnologia. Em nosso afã de curar a infecção precisamos nos manter atentos e não esquecer que os tratamentos precisam servir a nossos pacientes, trazendo a eles qualidade de vida. Para isso é preciso prudência e paciência para não atropelar os processos de desenvolvimento científico. Sim, um milhão de pacientes no Brasil anseiam pela cura definitiva do HIV. Quase quarenta milhões de pessoas no mundo todo sonham com o dia em que não mais precisarão de medicamentos.
É impossível escrever sobre HIV e não lembrar de tantas pessoas que perdemos ao longo da jornada. Pessoas anônimas, pessoas famosas, de todos os gêneros, profissões, classes sociais, lugares. Mas para mim as letras das músicas de Cazuza ecoam fortemente a cada dia de atendimento.
“Mas se você achar que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Por que o tempo
O tempo não para”
Não para, não. E que seja slow, e que continue nos guiando para um futuro melhor, que não repita o passado…
Elizabete Band: nasci em Salvador, a Roma negra. Criança, queria ser bióloga – era o amor pelo mar! – ou escritora; virei médica. Médica, me encontrei no estudo das doenças infecciosas. Me formei na UFBA na virada do milênio quando nos prometiam tecnologias que melhorariam o mundo. A realidade que se desenhou foi outra: excessos, pressa, mecanização de tudo. Após me titular pela Sociedade Brasileira de Infectologia pausei tudo e fui ser mãe do Gael. Com ele aprendi muitas coisas, inclusive sobre o tempo e essa pressa que estava tomando tudo. E fui entendendo que meu tempo é o da calma.
Hoje sou infectologista e também paliativista em construção, após aperfeiçoamento pelo Instituto Paliar em 2018. Trabalho atendendo pessoas que vivem com HIV em um centro de referência estadual e com infectologia geral em consultório. Visito pacientes em domicílio – e com eles aprendi tantas coisas sobre o tempo! Faço parte do SCIH do Hospital Aristides Maltez, centro oncológico que é totalmente filantrópico, 100% SUS e que nunca desde sua criação fechou as portas. Sou apaixonada por histórias e por história, por viagens, conhecimento e movimento constante. E por escrever também.
Tento juntar tudo que fui aprendendo no caminho em todas as minhas práticas – pessoais e profissionais. Acredito na vida e no trabalho calmo, prudente, respeitoso, amoroso. Acredito no um feito de muitos, no cuidado feito por múltiplos olhares. E acredito principalmente na escuta e no poder das palavras como fonte de transformação.
A Dra. Elizabete está de parabéns. Texto muito objetivo.