Por Marília Ruiz e Resende
“Chora a nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil.”
(João Bosco & Aldir Blanc)
Quinta-feira, 19 de setembro de 2024.
Dia em que quase a totalidade dos pacientes atendidos por mim, em um Centro de Saúde localizado na periferia de Belo Horizonte, choraram em algum momento durante suas consultas.
“O choro é um marcador de sucesso da consulta, pois significa que as pessoas se sentiram acolhidas”, dizia minha professora de Semiologia Médica.
“As pessoas choram pois o capitalismo tardio tem deteriorado cada vez mais suas condições de vida”, disse meu colega de residência em Medicina de Família e Comunidade quando comentei o fato no consultório ao lado.
Pela janela, uma fumaça esbranquiçada (e obscura) pairando na atmosfera da cidade: o colapso climático chegou ao Sudeste do país.
O que seria de mim se não pudesse parar para escutar as pessoas?
Como seria trabalhar em uma agenda de atendimentos que, descoberta da proteção de um preceptor, me obrigaria a olhar para o relógio quando as primeiras lágrimas escorressem do rosto de alguém?
Na era das múltiplas conexões, urge a conexão com o outro e consigo mesmo. Na era da velocidade, urge abrir mão da pressa e demorar-se no silêncio.
“Só uso palavras para compor meu silêncio”, dizia o poeta Manoel de Barros.
“Eu gostaria de agradecer (…) pela sua capacidade de me olhar devagar, já que nessa vida muita gente me olhou depressa demais”, disse o padre Fábio de Melo.
Está posto o capitalismo tardio. Estão postas as emergências climáticas.
A Medicina de Família e Comunidade se propõe a pensar no outro, no planeta, e principalmente a escutar. A escolha pela especialidade foi muito sincera. Como residente, tenho medo de que a prática clínica futura em uma Equipe de Saúde da Família, em meio à pressão assistencial e atendimentos agendados a cada 20 minutos, me prive da experiência da escuta. Isso me afastaria do outro e, de certa forma, de mim mesma. Não poder escutar me deixaria profundamente insatisfeita.
“Não queira resolver todos os problemas dos pacientes em uma única consulta”, aconselham médicos de família e comunidade experientes.
“Uma consulta longa não é necessariamente uma consulta boa”, advertem os bons preceptores sobre o assunto.
Juan Gérvas caracteriza muito bem as consultas sagradas, aquelas de elevado conteúdo emocional, dignas de profundo respeito e às quais não se pode causar dano. Um dos exemplos de consulta sagrada é a consulta em que o paciente chora.
No mesmo capítulo de livro em que trabalha esse conceito, ele acrescenta que cerca de 1% dos pacientes choram durante suas consultas médicas (1).
Isso eu truco. Em nosso contexto é muito maior o percentual de pacientes que choram durante seus atendimentos, especialmente na realidade latino-americana, especialmente nas periferias das grandes cidades, em que são atendidas diariamente pessoas em situação de desemprego, abandono, solidão e diversos outros tipos de injúria e sofrimento.
Milan Dagli, um General Practitioner do Reino Unido, recentemente publicou uma carta no British Journal of Medicine intitulada “GPs’ working schedules: 10 minute madness”. No texto ele ironiza a premissa de que é necessário resolver um problema de cada vez – “ontem, fui ao barbeiro cortar o cabelo; só foi possível cortar metade pois o barbeiro não dispunha de tempo suficiente” (tradução livre) (2).
Se no Reino Unido não está fácil, quantos fragmentos de consulta seriam necessários para remendar as Veias Abertas da América Latina?
Um encontro com o paciente é único, e é sagrado. É preciso falar sobre a ansiedade de não poder abordar o indivíduo como um todo durante o encontro, em uma especialidade que se propõe à prática da integralidade. É preciso proteger o tempo de recuperação emocional do profissional de saúde entre atendimentos que chocam, que impressionam, que demandam e que esgotam. É preciso reconhecer a Atenção Primária à Saúde como porta de entrada e primeiro contato com o Sistema Único de Saúde – mais que isso, por vezes o único contato. É preciso assumir que os ouvidos dos profissionais que atuam nas Unidades Básicas de Saúde podem ser os únicos ouvidos com os quais uma população periférica cansada e vilipendiada pode contar.
Em suma, é preciso cuidar dos ouvidos dos profissionais da Atenção Primária.
É preciso falar de prevenção quinquenária e, mais do que isso, aplicá-la.
Atendimentos agendados a cada 20 minutos, no contexto da Atenção Primária à Saúde, espantam profissionais que escolhem por seus pés em territórios menos privilegiados, profissionais que se dispõem a atender as Marias e Clarices do solo do nosso Brasil.
E o espanto é justificado.
Referências Bibliográficas:
1) Gérvas, J; Pérez-Fernández, M. A consulta sagrada (de alto conteúdo emocional).
Dohms M, Gusso G. Comunicação clínica: aperfeiçoando os encontros em saúde. Porto
Alegre: Artmed; 2021.
2) Dagli M. GPs’ working schedules: 10 minute madness. BMJ. 2024;384
Marília Ruiz e Resende: Apanhadora de desperdícios, tal qual o poema de Manoel de Barros. Atualmente residente em Medicina de Família e Comunidade no programa do Hospital das Clínicas da UFMG.
Que sensibilidade é delicadeza, que afago no coração calejado! Depois de 20 anos de atenção primária no sus, continuo estendendo as consultas o máximo possível, muitas vezes saindo mais tarde ou desvestindo um santo quase nu pra vestir outro nu e esfolado. Que a prática diária, apesar de nos endurecer, não nos torne menos ternos!
Obrigada por partilhar suas percepções, Gabi! Me admira sua trajetória e compromisso em oferecer o melhor de si. Um abraço!
Que texto necessário 👏👏👏👏! Vou repostar ( dando os créditos, claro!)
Obrigada, Poliana! Fique à vontade para compartilhar com quem quiser. Muitos gestores ainda não têm conhecimento dessa angústia.
Excelente texto! 👏👏👏👏
Gostei da ideia de prevenção quinquenária
Obrigada, amigo! Aprendemos juntos sempre
Que texto lindo! Obrigada!
De nada, Luana! Eu que agradeço pela leitura.
Quanta razão e emoção em um texto. Tradução em palavras de cabeças a mil e coracoes taquicárdicos de milhares de MFC’s.
Parabéns
Obrigada pela troca, Gabriel. Suas palavras me fazem lembrar que nossa luta é coletiva, o que traz uma força!
Conheci você, Marília, no ambulatório de pneumoped, quando tive o privilégio de ser sua preceptora. E aquele encontro foi um verdadeiro presente para mim, pois me proporcionou uma sensação acolhedora, de poder ser quem eu sou, com toda a minha essência. Sei que, muitas vezes, não consigo ser rápida nas consultas, e acabo estendendo meu horário. Não consigo me contentar em receber apenas fragmentos das histórias e angústias das pessoas. Embora o tempo cronológico nem sempre me permita dar todas as respostas, sei que a escuta é fundamental.
Recebi de você e do João um presente precioso: o livro Slow Medicine, que me tocou profundamente e onde encontrei um lugar de plenitude.
Sua sensibilidade é um verdadeiro presente para todos que têm o privilégio de ser cuidados por você. Uma palavra sua tem o poder de suavizar as dores das pessoas. Parabéns pelo seu texto tão lindo, leve e claro, que traz à tona uma realidade que precisa ser repensada.
Obrigada por nos proporcionar essa reflexão tão importante.
Geralda, que alegria ler seu comentário! A prefeitura de BH tem muita sorte de contar com sua imensa contribuição, e por tanto tempo! É notável o quanto você valoriza cada pessoa! O seu consultório é um dos mais lindos que já vi, por trás de cada uma daquelas fotos há uma história de confiança e parceria. Obrigada pela inspiração!
Que texto delicado. Como pisar descalço no solo sagrado que é cada pessoa que chega até nós demandando ajuda.
Que palavras bonitas, Maria! Inspiradoras.
Me identifiquei e me emocionei com cada palavra.
Vamos juntas!