Por Isabelle Borges
“Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons.” (Sigmund Freud)
Dona Zilda estava assustada, acabara de receber o diagnóstico de câncer de mama. Sempre teve uma saúde de ferro, nunca havia passado por um internamento e agora teria que enfrentar um procedimento cirúrgico. Mal teve tempo de absorver a notícia, precisou correr atrás de resolver tudo… Estava tentando agilizar, mas era tudo tão lento e por mais que fosse ao posto de saúde todos os dias, demorava a conseguir a vaga para o parecer pré-operatório. Suas filhas, apreensivas, fizeram uma vaquinha e pagaram a consulta do cardiologista, que então solicitou um ecocardiograma, afinal dona Zilda já tinha 57 anos e era hipertensa. Deixaram o pedido no postinho e outra espera teve início, dessa vez para o exame, que tem um fila de espera gigante. Após mais algum tempo, o exame finalmente saiu, mas aí os 30 dias a que tinha direito para o retorno com o cardiologista expiraram e dona Zilda não conseguiu o retorno. Eis que nova espera se inicia. À medida que o tempo passava, crescia a angústia das filhas, que não tinham como arcar com esse custo, por mais que soubessem o quanto o tempo fazia a diferença no caso da sua mãe.
Presenciamos um crescente aumento da utilização do ultrassom cardiológico na prática clínica. O chamado Pocus1 tem progressivamente conquistado espaço, com várias aplicações no paciente agudamente enfermo. Com o advento de aparelhos mais portáteis e a característica de não emitir radiação, o ultrassom tem se tornado cada vez mais popular, chegando a receber o título de estetoscópio do século 21. Como ecocardiografista, tendo inúmeras vezes presenciado o exame fazendo a diferença no manejo dos pacientes, assisto a isso com alegria e entusiasmo, mas me preocupa a banalização que o método vem sofrendo. O que originalmente havia sido proposto como uma expansão do exame físico, tem sido usado em substituição a ele.
Quando temos ferramentas em abundância acabamos por não exaurir as mais básicas antes de prosseguir para as mais avançadas, mas isso pode representar uma manobra arriscada, à medida que a utilização inadequada de modalidades mais simples pode levar ao uso desastroso de outras mais sofisticadas. Pular etapas na jornada diagnóstica, com atropelos no raciocínio clínico, tem consequências que vão desde a exposição do paciente a exames desnecessários, cada um com seu risco intrínseco, a complicações que podem advir de forma indireta. Sabe-se que até 15% dos pacientes submetidos a procedimentos de baixo valor apresentam intercorrências adquiridas no hospital, como infecções2. Há ainda o prejuízo por atrasos na investigação, que acaba se afastando do foco, isto é, daquilo que realmente vai fazer a diferença para o paciente.
Os atropelos a que me refiro decorrem do fato de que a maioria dos diagnósticos em medicina é probabilístico3 e acontece como um quebra-cabeça que vamos tentando montar. A cada peça acrescentada aumentamos ou diminuímos a probabilidade do diagnóstico. O exame é apenas uma dessas peças. Ele não é determinístico de doença ou ausência de doença. Não podemos ignorar a taxa de falso positivos e falso negativos que todo exame carrega e que, a depender do contexto clínico, pode ser inaceitavelmente alta. Lembrar disso é essencial antes de solicitar qualquer exame, inclusive para não o fazer com a justificativa de tranquilizar o paciente, pois quando realizado fora de um contexto, ele poder representar apenas uma ilusão confortante e ainda gerar mais angústia e ansiedade. Muitos destes testes não invasivos, como é o ecocardiograma transtorácico, podem levar a testes invasivos subsequentes, cada um com um risco subjacente – e é aí que pode ser desencadeada a cascata da iatrogenia clínica que, uma vez acionada, é dificilmente cessada.
Precisamos ainda ter o cuidado de não perdermos de vista o que realmente importa a quem demanda o exame. Quantas vezes observamos que o método está bem indicado, em conformidade com os guidelines, mas ao olharmos para as particularidades do paciente em questão, constatamos que a requisição é supérflua, afinal quando o desfecho for o mesmo, sendo o resultado do exame negativo ou positivo, ele nem mesmo deve ser solicitado. Esta informação deve permear o pensamento de todos aqueles que solicitam exames.
Aproximadamente 70% dos pacientes encaminhados para o cateterismo cardíaco apresentam doença coronariana não obstrutiva2. Estudo brasileiro envolvendo 500 pacientes que realizaram ecocardiograma de forma ambulatorial e que foram classificados como inapropriados, em apenas 3,4% foi encontrado pelo menos um achado relevante4. Examinar esses dados nos leva a pensar que parece mesmo que não estamos no caminho certo, que talvez precisemos reconsiderar as formas com que os serviços de saúde têm sido oferecidos.
Esta preocupação com a demanda progressiva do método estimulou diversas sociedades a publicarem critérios de adequação para que as solicitações ocorram de forma mais ordenada e criteriosa5. Porém, sabemos que há vários entraves para que isso efetivamente ocorra, como as situações que repousam numa zona cinzenta, ou seja, as intervenções de benefício modesto ou cujo benefício repousa em evidência de qualidade insatisfatória. Nestas situações o julgamento clínico torna-se ainda mais necessário e o processo de individualização ainda mais urgente, jamais de forma automática. Há ainda as motivações financeiras, jurídicas e até mesmo o prevalente viés de comissão, tão enraizado no imaginário dos pacientes e até mesmo dos profissionais de saúde. O viés de comissão consiste na tendência à ação, na incapacidade de ficar inerte, mesmo quando a inação proporciona resultados similares ou mesmo melhores que a ação.
Embora o ecocardiograma dispense o uso de contraste iodado e radiação, ele não é inócuo, podendo causar dano individual e coletivo. Nunca é demais lembrar que absolutamente nenhuma intervenção em saúde é isenta de riscos, nem mesmo um ecocardiograma aparentemente inofensivo. Como vimos, as implicações vão muito além das questões financeiras, que não devem ser negligenciadas, principalmente num sistema de recursos finitos, como é o da saúde. Pensando de forma coletiva, devemos ter consciência que o excesso para alguns anda lado a lado com a falta para tantos com potencial de se beneficiar pela intervenção; são diversos os cenários clínicos em que o ecocardiograma tem grande valor.
É essencial que o médico tenha noção que a informação trazida por um exame, em primeiro lugar não deve ser maléfica, em segundo lugar deve trazer benefício, ou seja, a cascata de ações decorrente do resultado do exame deve reduzir o risco do paciente. No caso de dona Zilda, o ecocardiograma não trouxe nenhum benefício, visto que o melhor preditor de complicações peri-operatórias não é a idade e sim a presença de sintomas6. Um anamnese bem feita detectaria que ela é assintomática. O ecocardiograma só atrasou o procedimento oncológico necessário, com provável impacto negativo sobre o prognóstico da paciente. Mais um dos muitos casos em que nós, médicos, pioramos o que já não estava bom.
1 Díaz-Gómez JL, Mayo PH, Koenig SJ. Point-of-Care Ultrasonography. N Engl J Med. 2021 Oct 21;385(17):1593-1602. doi: 10.1056/NEJMra1916062. PMID: 34670045.
2 Kini V, Breathett K, Groeneveld PW, Ho PM, Nallamothu BK, Peterson PN, Rush P, Wang TY, Zeitler EP, Borden WB; American Heart Association Council on Quality of Care and Outcomes Research. Strategies to Reduce Low-Value Cardiovascular Care: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circ Cardiovasc Qual Outcomes. 2022 Mar;15(3):e000105. doi: 10.1161/HCQ.0000000000000105. Epub 2022 Feb 22. PMID: 35189687; PMCID: PMC9909614.
3 https://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/2011/07/utilidade-de-metodos-diagnosticos.html
4 Correia L, Feitosa Filho G, Menezes M, Durães A, Lopes J. O instigante fenômeno do ecocardiograma inapropriado: inutilidade do exame e diferente perspectiva entre médicos e seus pacientes Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. 2018 Apr 13
5 Bennett S, Stout M, Ingram TE, Pearce K, Griffiths T, Duckett S, Heatlie G, Thompson P, Tweedie J, Sopala J, Ritzmann S, Victor K, Skipper J, Robinson S, Potter A, Augustine DX, Colebourn CL. Clinical indications and triaging for adult transthoracic echocardiography: a consensus statement by the British Society of Echocardiography in collaboration with British Heart Valve Society. Echo Res Pract. 2022 Jul 13;9(1):5. doi: 10.1186/s44156-022-00003-8. Erratum in: Echo Res Pract. 2023 Mar 9;10(1):5. doi: 10.1186/s44156-022-00014-5. PMID: 35820954; PMCID: PMC9277869.
6 Finley A. Choosing wisely in perioperative echocardiography. J Am Soc Echocardiogr. 2015 Jan;28(1):A24-5. doi: 10.1016/j.echo.2014.11.005. PMID: 25559479
Isabelle Borges: Sou médica formada pela UFPB, com residência em clínica médica, cardiologia e ecocardiografia. Apesar das sub-especializações, procuro não segmentar o paciente, enxergando-o como ser singular, dono de valores e preferências, que merecem ser ouvidos. Acredito que lido bem com a incerteza que permeia todo o processo diagnóstico e terapêutico que envolve o ato de cuidar. Além da medicina, minha outra paixão é a possibilidade de discussão com os residentes, o que é possível graças aos meus vínculos atuais. Encontrei na Slow Medicine o caminho que desejo para mim e para todos aqueles que amo, o que me move e impulsiona, mesmo que a toda momento pareça estar na contramão.
Minha família é a minha rocha, meu porto seguro de todos os momentos e que agora ficou maior, com a chegada do meu sobrinho, Arthur, nosso xodó.
Brilhante como sempre!
Obrigada, Dr Lauro!! O senhor sempre nos ensinou a enxergar o paciente.
excelente! 👏
Obrigada ☺️
❤️🫶🏼 sem palavras para esse texto
Oww, Fernanda!! Que bom que gostou! 🤗
Excelente texto, reflexo da excelente médica, preceptora, tutora que é Dra. Isabelle! Trazendo sempre esse ponto de visto mais racional e lúcido.
Sempre aprendo com nossas discussões, David!!
Muito bom ! Precisamos de mais artigos assim.
Obrigada 😊
Excelente trabalho,parabéns
Obrigada ☺️
Excelente texto. Obrigado
Obrigada ☺️
Obrigada!!!
Parabéns Dr.Bele pelo texto.
Obrigada ☺️
Maravilhoso, muito bem explicado
Que bom que consegui me fazer entender.
👏👏👏👏👏👏
Obrigada!! 😊
Uma excelente explanação! Necessário à todos nós que muitas vezes somos leigos no quesito chamado saúde, medicina, cuidados necessários à uma boa prevenção e aos cuidados ao diagnosticado por doenças diversas. Mas em especial também à toda bancada médica e seus acessores nessa tão valiosa e necessária luta pela vida do outrem. E de extrema importância aos governantes, a nossa política responsável para a área de saúde, a serem mais relevantes e operantes à inovações de pesquisas e equipamentos mais eficazes e menos ofensivos. O nosso sistema de saúde não precisa de meios paleativos, mas em sua excência com mais eficácia e excelência. Excelente texto! Excelente médica! Por mais profissionais assim! Deus a abençoe.
Muito grata pelas palavras!!! ☺️
Parabéns pelo texto que traz à tona um problema muito relevante e pouco discutido no nosso cotidiano.
Muito obrigada, Dr Almir!!
Excelente texto!!
Obrigada!!! 😊😊
Muito bom!!! Parabéns.
Parabéns, Belle ! Reflexão madura demonstrando especialmente o cuidado com cada paciente! Cada pessoa !
Muito obrigada, Dra Silvia!! Com uma prof dessa, tinha que aprender!
Agradeço a cada um!! Um impulso para seguirmos sendo resistência num sistema com tantos atropelos.
Nós é que agradecemos o ótimo texto!
Excelente texto. Parabéns!!
Obrigada 😉
Excelente!!