Por Gustavo Gusso
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.” (Vinícius de Moraes)
Me lembro como se fosse hoje do dia em que conheci Juan Gérvas e Mercedes Pérez-Fernandez. Foi no dia 6 de dezembro de 2003, quando Juan fez uma palestra durante um evento em celebração aos 25 anos da Declaração de Alma Ata em Brasília convidado pelo Ministério da Saúde da Espanha, na qual também estava presente a Professora Barbara Starfield, de cujo departamento na Universidade de Johns Hopkins ele era também professor. Juan havia traduzido o livro dela para o espanhol e se tornado grande amigo e parceiro. Já se passaram mais de 20 anos e, desde então, não houve um mês sem que eu lesse algum artigo ou insightvindo desse iluminado casal.
Posso dizer que foram tutores, mestres, professores, não apenas de medicina de família, mas de vida. Eu queria estar mais próximo e já me interessava pela Classificação Internacional de Atenção Primária (CIAP). Quando soube que ele fazia parte do grupo de trabalho logo quis entrar, o que ocorreu em 2005. E finalmente em 2011 passei a frequentar os Seminários de Inovação em Atenção Primária (SIAPs) que vinham ocorrendo desde 2005. Os SIAPs foram realizados até o final de 2024 em 55 ocasiões durante os quase 20 anos de sua existência, basicamente em Madrid, mas também em Barcelona, Bilbao, Granada, Lleida, Losar de la Vera, Maó, Murcia, Oviedo, Toledo, Valência e Zaragoza (Espanha) e em outras cidades do mundo como Buenos Aires, Cusco, Florianópolis, Lima, Lisboa, Montevidéu, Porto, Oxford, Quito, Rio de Janeiro e Santiago do Chile. E quantos momentos mágicos proporcionaram!
Para quem nunca teve essa experiência, minha primeira sensação é de que se tratava de um grupo clandestino que se encontraria para discutir assuntos proibidos. Claro que não é exatamente este o modus operandi dos países onde ocorreram os seminários, mas a metáfora tem um pé na realidade: ali se poderia tratar de assuntos ditos polêmicos, delicados e com muita sensibilidade.
Logo após a inscrição os participantes são convidados a enviarem um “relato vital” contando um pouco sobre aspectos pessoais além de profissionais. Me lembro que o primeiro contato que tive com um relato vital, foi exatamente através do Juan e se tratava de um texto que ele deixava disponível na sala de espera da sua unidade de saúde. Naturalmente, me inspirei nele e fiz também meu relato vital para os pacientes, afinal “se vamos perguntar sobre a vida deles, eles têm o direito de saber um pouco sobre a nossa”. E sabemos que, em geral, eles são curiosos quanto a isso.
Em seguida, um mês antes do encontro, circulam textos dos palestrantes com alguns aspectos que pretendem abordar e, a partir destes textos, começam os debates virtuais (assíncronos, por e-mail). É impressionante a participação de todos com e-mails que poderiam facilmente serem publicados no formato de artigos científicos. São trocados entre 500 e 1.000 e-mails carregados de experiência e ciência, do cotidiano ao mais avançado em pesquisa. Logo descobrimos que o conhecimento exige sempre um esforço e é preciso virar uma “chave” e compreender que a partir daquele momento não são mais e-mails inúteis ou fúteis que estão caindo na caixa postal pessoal. Quem não consegue virar esta chave fica pelo caminho.
Quando chega a etapa presencial, primeiramente todos se encontram em alguma “taberna” que alimenta o clima de encontro clandestino. Não há nenhum patrocínio ou incentivo financeiro e todos são “autofinanciados”. Mesmo quem não se conhece se sente íntimo “à primeira vista”. É como se fossem da mesma “turma” (ou do mesmo “colégio invisível”, um grupo de profissionais, sem paredes, sem domicílio fixo, que se mantém unidos como grupo através de contatos a distância e de reuniões presenciais). E isso não implica concordar, pensar igual ou ser do mesmo partido político. Bem, a maioria é “de esquerda”, vale dizer. Nos seminários dos últimos anos os mais jovens foram encorajados a apresentar um caso clínico relacionado ao tema do seminário na véspera do mesmo e, para preparar os casos, eram tutorados por médicos de família mais experientes.
A língua nunca foi uma barreira e profissionais espanhóis, brasileiros, portugueses, peruanos ou argentinos interagem em harmonia como se o mundo fosse uma grande comunidade. Os idiomas são pontes e através delas é possível participar ou mesmo fazer apresentações em quéchua, basco, etc… O seminário presencial em si é um momento mágico. Quem tem algum déficit de atenção passa a ser curado quase que instantaneamente. Juan coordena as atividades deixando uma energia elevada no ar. Há um dinamismo hipnotizante. Cada “ponente” tem 20 minutos para exposição seguido de uma meia hora de debate. Ou seja, todos são encorajados a se colocarem naturalmente. São insights sobre insights sobre insights. Emoção, sobre emoção sobre emoção. A gente lembra por horas que escolheu uma profissão e um caminho apaixonantes e que não está sozinho nas angústias e alegrias cotidianas. Não é raro alguém chorar durante o depoimento.
Eu vi autores famosos em performances inesquecíveis, como se fossem “superstars” tocando para uma plateia diferente e se deleitando com isso. Barbara Starfield, Iona Heath, Muir Gray, Marc Jamoulle dentre outros, já foram “ponentes” dos seminários. Juan também dava espaço para ilustres desconhecidos e principiantes como eu, que tive o prazer de falar sobre ensino da prevenção quaternária no seminário de Barcelona em 2011. Nesta ocasião pude conhecer Vicente Ortun, um destacado economista da Universidad Pompeu Fabra que escreveu com o Juan um artigo sobre o teorema de Bayes aplicado ao sistema de saúde que foi um dos que mudaram minha vida. Os temas abordados são, em geral, negligenciados nas grandes conferências: o paciente que chora e outras consultas sagradas, erros clínicos e fantasias de erros clínicos, prevenção em saúde: entre a eficácia e a arrogância, a ética das pequenas coisas, pessoas invisíveis ou invisibilizadas, a autonomia dos pacientes, a Lei de Cuidados Inversos, e assim por diante.
Após o encontro presencial, é elaborado um resumo coletivamente e todos podem participar corrigindo ou qualificando o texto que é então divulgado. Curiosamente, apesar dos seminários serem chamados de “inovação”, não se trata de tecnologia “dura” ou eletrônica. Os encontros não são clandestinos, mas não passam muito de 250 pessoas no presencial, majoritariamente mulheres, residentes e médicas de família, que se encontram e refletem. Não seria justo classificar como encontros espirituais, mas há uma energia no ar que faz todos os presentes se sentirem conectados com algo maior e entre si. O trabalho em saúde e com o cuidado tem este poder. Não pensar ou refletir com profundidade é um desperdício. Juan e Mercedes aproveitaram todas as oportunidades que a vida deu e promoveram esta capacidade de reflexão e de transformação do mundo em um lugar melhor para se viver. Vida longa aos Seminários de Inovação!
Gustavo Gusso é médico de família e comunidade, quadrúpede (uma pata na gestão, uma pata na assistência, uma pata no ensino e uma pata na pesquisa), pai da Letícia e da Bia, apaixonado por trilhas, inclusive as sonoras.
Gustavo, é uma alegria encontrar você no grupo do SIAP. Sou médica também, com formação pela USP São Paulo, admiradora da sua dedicação aos alunos que reconhecem publicamente seu empenho em medicina de família. Minha participação no SIAP é mais tardia do que sua e certamente reproduzo suas palavras em relação a experiência que vivi
obrigada Gustavo, este texto é uma excelente ferramenta para essa tarefa tão necessária mas tão compolexa que é explicar os SIAP.