Por André Islabão:
A dúvida é o princípio da sabedoria.
As incertezas fazem parte do cotidiano de todo médico. Ainda assim, lutamos diariamente para evitar a dúvida e agimos como se tivéssemos absoluta certeza de tudo que fazemos. Atribuímos diagnósticos, escolhemos tratamentos e prevemos desfechos como se tivéssemos algum poder especial que eliminasse as incertezas de nossa prática. Porém, bem no fundo sabemos que isso não passa de uma ilusão criada pelos médicos ao longo dos séculos na esperança de manter a autoridade, transmitir segurança e esconder nossas vulnerabilidades.
Dois excelentes artigos publicados recentemente abordam a questão da onipresença das incertezas na vida e na prática médica. O primeiro artigo[1], publicado no New England Journal of Medicine, aborda a questão da importância de se criar uma cultura médica mais tolerante a incertezas desde a formação dos médicos durante a faculdade. Segundo os autores, apesar de os médicos agirem como se a realidade fosse simples como o preto e o branco, a verdade é que temos que tomar decisões em um espaço profissional quase sempre cinzento em suas incertezas. Apesar de nossos protocolos e diretrizes clínicas sugerirem condutas com base em distinções claras entre as alternativas, na prática as coisas não são assim tão simples. Em geral a história clínica apresentada pelos pacientes é incompleta, os resultados dos exames são questionáveis e os efeitos dos tratamentos são imprevisíveis. E a tensão criada entre o preto e branco dos protocolos e diretrizes clínicas e o cinza turvo da realidade com que o médico tem de lidar é fator de estresse profissional adicional, certamente colaborando para os níveis crescentes de burnout e outros problemas mentais entre os profissionais.
Para os autores, existe uma necessidade urgente de se buscar uma mudança de paradigma desde a faculdade de medicina, criando uma nova cultura que seja mais tolerante às incertezas inevitáveis da profissão. Isso passaria por uma mudança de currículo que privilegiasse discussões abertas sobre o tema, que nas avaliações desse preferência para questões discursivas e abertas em vez daquelas em que se escolhe uma única opção entre várias, que falasse de hipóteses em vez de diagnósticos definitivos e que ensinasse aos novos profissionais a maneira mais adequada de comunicar as incertezas aos pacientes sem aumentar a desconfiança e de maneira a buscar uma boa tomada de decisão compartilhada. Para os autores, o bom médico do futuro será aquele que saiba habitar com tranquilidade essa zona cinzenta inevitável das incertezas médicas.
O segundo artigo[2] é da área de Filosofia da Ciência e foi publicado na revista Synthese, se debruçando sobre as questões epistemológicas da incerteza na medicina, principalmente aquela incerteza relacionada à base de conhecimentos que forma a “ciência médica” e que usamos para pautar nossas decisões diárias. Segundo os autores, haveria dois tipos de incertezas inerentes ao nosso paradigma médico atual. As incertezas de primeira ordem se referem ao tipo de “certeza probabilística” que é gerada pelos estudos. Este tipo de certeza é intrinsecamente incerto, caracterizando o que Karl Popper chamava de “certezas diluídas”. As incertezas de segunda ordem se referem às incertezas geradas por problemas como falhas metodológicas nos estudos, vieses e conflitos de interesse, os quais distorcem o conhecimento científico e aumentam ainda mais nosso – bastante negligenciado – grau de incerteza ao tomar as decisões. Ocorre que as incertezas de primeira ordem são inevitáveis e as afirmações médicas costumam ser probabilísticas. O problema surge quando – devido às evitáveis incertezas de segunda ordem – passamos a não ter certeza nem mesmo em relação a nossas incertezas.
De maneira semelhante ao primeiro estudo comentado, os autores sugerem que a melhor maneira de abordar a questão das incertezas inerentes à prática médica seja por meio de maior transparência e do reconhecimento sincero de nossas limitações. Para justificar essa abordagem, os autores citam três tipos de razões: epistêmicas (seria errado mentir mesmo sem termos a intenção de fazê-lo), profissionais (nossa obrigação de agir com honestidade e integridade) e instrumentais (reconhecer o problema pode levar a uma melhor tomada de decisões).
Àqueles que temem que a transparência em relação a nossas incertezas possa reduzir a confiança na medicina, os autores lembram que nossas expectativas em relação às intervenções médicas estão bastante infladas e que, portanto, reduzir um pouco essas expectativas apenas as traria para algum ponto mais próximo da realidade, o que pode inclusive ajudar a evitar excessos diagnósticos e terapêuticos tão comuns à prática médica atual. Além disso, a confiança no sistema a longo prazo depende de uma adequação entre expectativa e realidade. Se a medicina oferecer intervenções como se fossem milagrosas e elas acabarem frustrando as expectativas das pessoas, é evidente que isso minaria a credibilidade da medicina, independentemente de nossas boas intenções. Neste sentido, os autores lembram o caso da pandemia, onde autoridades de saúde de alguns países fizeram declarações bem-intencionadas em relação a máscaras e vacinas, mas que não se sustentaram à luz das evidências científicas, o que pode estar colaborando para o aumento da desconfiança em relação ao sistema médico e ao abandono de intervenções “sagradas” como as vacinas contra o sarampo e a poliomielite. Talvez uma abordagem mais equilibrada e que reconhecesse as incertezas tivesse sido mais adequada tanto em curto como em longo prazo.
Para o profissional de saúde que adota a filosofia slow em sua prática, reconhecer a onipresença da incerteza no cotidiano não deve ser um problema. Ao praticarmos segundo os princípios da Slow Medicine, tendemos a lidar de forma muito mais saudável com essas incertezas. Permitimos o tempo necessário para o cuidado e isso reforça a relação médico-paciente, permite um diagnóstico mais acurado e uma intervenção mais de acordo com as melhores evidências científicas e as preferências da pessoa que busca ajuda médica. Além disso, individualizamos as condutas, usamos as intervenções de maneira parcimoniosa e prezamos pela segurança em primeiro lugar. Tudo isso reduz o impacto negativo da incerteza sobre os cuidados sem que deixemos de reconhecê-la. Na verdade, de certa forma até usamos a incerteza em favor do paciente e de uma conduta mais adequada.
Enfim, as incertezas são inerentes à nossa profissão e qualquer afirmação em contrário só pode ser feita com alguma dose de arrogância. Há incertezas inerentes aos nossos métodos científicos, incertezas causadas por falhas na produção do conhecimento e incertezas relacionadas à translação deste conhecimento para a prática clínica diária (a distância incomensurável entre eficácia e efetividade). Além disso, existem as incertezas inerentes à própria vida, ao caráter idiossincrático das ações humanas e à natureza estocástica das interações entre os vários fatores que determinam as doenças e os processos de cura. A questão é que todas essas incertezas não devem ser vistas como algo necessariamente negativo, e reconhecê-las pode ter pelo menos dois efeitos bastante positivos sobre a medicina. O primeiro é a recuperação de parte de nossa credibilidade perdida em função de décadas de uma postura arrogante em relação às nossas “evidências” (sim, elas são importantes, mas estão longe de serem imaculadas ou infalíveis). O segundo – ainda mais importante – é reduzir a agressividade e a velocidade da medicina, criando espaço e tempo para um cuidado mais delicado e verdadeiramente humano.
[1] Tolerating Uncertainty — The Next Medical Revolution?
[2] Broad Medical Uncertainty and the ethical obligation for openness
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André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, e em consultório privado. Além disso, é escritor – a obra “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine. Recentemente publicou o livro “O risco de cair é voar“. André é também autor do blog andreislabao.com.br
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A pintura que ilustra o texto é de Paul Gauguin.
Não entendi o comentário sobre máscaras e vacinas, poderiam detalhar melhor?
Oi, Eduardo. Em relação às máscaras, um bom exemplo seria a declaração de Fauci no início da pandemia de que as pessoas não deveriam usar máscaras, algo sobre o que ele mudou de ideia posteriormente e chegou a ser visto usando duas máscaras. Com o passar do tempo, sentimos falta de RCTs robustos sobre o tema (os poucos realizados mostraram efeitos bastante pequenos). Isso não significa que não deveríamos usar máscaras (os médicos as usam independentemente dos estudos!), mas significa que as declarações foram feitas sem reconhecer a escassez de dados e as incertezas relativas à questão. No caso das vacinas, um bom exemplo seria a declaração taxativa da chefe do CDC (Walensky) emdeterminado momento de que as pessoas vacinadas não transmitiam o vírus às outras, o que não tinha sido nem mesmo avaliado nos estudos e foi logo desmentido pela evolução da pandemia. Tal declaração não apenas pode ter aumentado a desconfiança da população, mas também pode ter aumentado a taxa de transmissão da doença na população, já que muitos vacinados (acreditando em Walensky) podem ter reduzido os cuidados e criado o que alguns autores chamam de “compensação do risco” (o eventual benefício de uma pequena redução de transmissão pode ser compensado ou perdido pela maior socialização sem os cuidados necessários). Enfim, a questão é que em nenhum dos casos as autoridades reconheceram a escassez de dados e as incertezas existentes, correndo o risco de aumento da desconfiança e/ou alimentando os movimentos contrários às vacinas de uma forma geral. Abraço!